Derriço

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                  Reconheço esses arrepios em meu pescoço, é você, como aquela pobre alma infeliz que me assombrava quando eu era criança, imóvel no canto de meu quarto, banhada por um fraco brilho incandescente, olhando-me com olhos oblíquos, um ursinho de pelúcia branco nas mãos, ali, ao incerto.

Você continua vindo até mim, assombrando meu ser cansado, em seu sono, em seus pensamentos. Estamos banhados por um calor ardente lá fora nestas noites, embora eu não sinta nada com o seu espírito aqui, me abraçando, peito com peito, cantando gentilmente em meu ouvido a melodia daquelas ondas uivantes, dos mares que trouxeram você até mim, o presente eterno de meu ser. Em agonia, você está me trazendo o frio dele. O que eu deveria fazer agora ?

Mãe, por favor, me diga, esta é a maldição da nossa linhagem ?

Por que eles sempre voltam para nos assombrar?

Você sabe que me despedaça pensar em você agora. Ter que controlar tudo o que está dentro de mim. Meu corpo é pequeno demais para minha alma, e estou sangrando mais pelas bordas à medida que envelheço, até que um dia, em um verão equatorial, acabarei me matando, sozinho.
Sou algo indomável com você por perto. Quero marcá-lo, minhas presas em teu pescoço, sentir teu gosto, meu perfume junto ao teu, quero que saibam, que sintam, você em mim, um só.
Mas ele não dá essa sensação, não é
mesmo querido?

Eu estava almoçando com minha família semana passada, um pouco bêbado demais para perceber tudo ao meu redor, mas aquela música que virou filme começou a tocar onde eu estava, uma de suas músicas, meu coração reconheceu primeiro que minha mente e então me lembrei de quando assistimos juntos, distantes um do outro, me veio à mente minha foto favorita sua, aquela que eu desenhei no seu aniversário, seu cabelo castanho cacheado, mais comprido do que está agora, camisa azul de botão aberto, seu peito à vista com o litoral no horizonte, me atreveria a escrever meu nome nele. Eterno. Eu queria estar com você naquele dia.

Quando me deparo a pensar nas intimistas possibilidades de nós dois me perco no desalento de um romance que nunca despertará novamente.
Agora vejo você escrevendo sobre alguém que costumava ser eu.
Você me vê nas palavras que ele lê?
Recuso-me a pensar que você alguma vez usou algumas das metáforas que me descreviam nele. O descreve com o mesmo sentimento de ocitocina ?
Na escuridão total de uma cidade que agora nos pertence, você ainda me sente, meus olhos penetrantes em sua boca, desafiando o princípio vital da natureza humana.

Eles nos observam, de longe.

Sabem.

Você pertence a mim.

Honey Where stories live. Discover now