Capítulo 9

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"Via-se, à margem oposta, a casa do guia, o teto hospitaleiro onde o viandante sempre encontrara boa acolhida e a abundancia de tudo."

— Visconde de Taunay

Chegaram exaustos à margem do rio Miranda, depois do qual estava a fazenda Jardim, propriedade do guia Lopes. Como já era noite e não saberiam atravessar a correnteza na escuridão, decidiram acampar por ali e fazer a travessia na manhã seguinte.

Adormeceram.

Zé Alves acordou com a impressão de ter ouvido uma voz chamando. Ao seu lado, o alferes Joaquim e Isabel dormiam. Antônio e Francisco pareciam despertos. No entanto, Lopes e seu cavalo não estavam mais ali. O céu estava claro, a mata escura como o breu.

— O que foi? — perguntou o músico num sussurro.

Zé Alves não sabia. Estava começando a ficar com medo quando viu uma luz andando no campo, perto das árvores. Ele ficou em pé e, sem tirar os olhos daquele movimento estranho, preparou seu fuzil.

— Tem alguma coisa ali — ele disse se virando para trás, e seu susto foi grande ao perceber que não havia mais ninguém por perto. Todos os companheiros que estavam deitados ao seu lado desapareceram como fantasmas.

Suas pernas não se moviam mais. Ele soltou involuntariamente a arma, mas não a ouviu caindo no chão. Seus sentidos estavam voltados para uma presença às suas costas. Dali vinha um calor radiante e uma voz.

— Vem comigo, José.

O anspeçada sentiu o mundo girar e perdeu a noção do chão. Tudo o que percebeu foi a presença da Loira do Mato diante dele, estendendo a mão e mostrando um sorriso sincero. Sua mente estava presa no transe entre o acordado e o dormindo, por isso ele notou de relance a travessia de uma ponte e a aproximação de uma casa pequena. Quase percebeu que flutuava no gramado de uma chácara, e que a luz fraca que vinha de uma das janelas da casa desenhava um quadrado no chão.

Zé Alves se sentiu atraído por aquela casinha como se fosse arrastado pelas águas de um rio muito profundo. Ele viu a janela se aproximar e não percebeu quando atravessou a parede. Em um momento estava lá fora, no outro chegava a uma sala pouco iluminada. No centro havia uma mesa com pessoas sentadas ao seu redor.

— Que lugar é este? — ele perguntou quando o mundo parou de se mexer. Teve a estranha sensação de que sua voz não era a sua, mas a de uma mulher.

— Você está entre amigos, agora — respondeu um homem sentado à mesa. — Pode nos dizer o seu nome?

— José Alves Barboza, anspeçada do Batalhão n.º 20 de Infantaria e Voluntários da Pátria.

— Seja bem-vindo, José. Nós o resgatamos e vamos encaminhar você para um lugar em que receberá tratamento.

— Tratamento? — Zé Alves estava confuso, apesar de sentir muita paz. — Eu fui ferido?

— Tudo será explicado na hora certa — respondeu outra mulher com sotaque diferente.

— Podem contar tudo a ele — disse o guia Lopes em algum canto da sala. Zé Alves não conseguia vê-lo, mas soube que ele estava ali. — Ele já está preparado.

A mesma mulher que tinha forte sotaque espanhol explicou.

— José, você foi um dos combatentes brasileiros que invadiram o Paraguai em 1867 a partir do Mato Grosso. A infelicidade daquela guerra tirou a sua vida na Fazenda Laguna, de onde você nunca voltou. Desde então, da mesma maneira que outras centenas de pessoas, você ficou preso na ilusão do combate por muitos anos.

Zé Alves ficou surpreso, mas não chocado. Alguma coisa naquele ambiente o deixava calmo o suficiente para entender sua situação.

— Você quer dizer que eu morri?

— Morreu o seu corpo — disse o homem. — Acredito que foi em 8 de maio de 1867. Depois daquilo, nosso guia teve muito trabalho para achá-lo e trazê-lo até aqui, como fez com os outros.

O combatente lembrou-se do dia em que levou um tiro pelas costas, de como perdera a consciência e acordara no meio do mato da Fazenda Laguna.

— Isso foi há quanto tempo?

— Estamos em 2013... Você ficou perdido por 143 anos, amigo.

O espírito Zé Alves chorou como uma criança, foi consolado pelas pessoas sentadas à mesa e, por fim, agradeceu o resgate.

Terminada a sessão mediúnica, a loira, chamada Márcia, voltou do transe e tomou um gole de água.

— Nossa! — ela disse. — Hoje foi pesado!

— É verdade — comentou o homem chamado Demétrio. Ele recolheu alguns livros. — Mas ainda vamos ter um bom trabalho pela frente.

Ao todo seis pessoas estavam na mesa. Todas se levantaram e se prepararam para ir embora, inclusive Anita, a paraguaia. Ela religou seu iPhone, digitou a senha de segurança e iniciou uma ligação.

— Tem certeza que não quer dormir aqui, Anita? — Márcia, a dona da casa, ofereceu.

— Não posso, Ma — respondeu a outra com o aparelho no ouvido. — O Murilo já comprou uma pizza e amanhã cedinho vamos atravessar a fronteira. Vai ter uma festa de aniversário de um amiguinho do Yago em Bella Vista. ¡Hola! Murilo...

Todos se despediram e foram embora em carros, deixando Márcia sozinha em sua casa na cidade de Jardim, local onde ficava a fazenda do guia Lopes no século XIX. Ela estava cansada, mas sentiu que seu trabalho ainda não havia terminado. Voltou para a mesa e fechou os olhos, sentindo a presença do guia.

— Fizemos um bom progresso hoje — disse a voz de Lopes —, mas ainda existem centenas de flagelados esperando por resgate.

— Eles ficam muito assustados comigo. Até me deram o apelido de Loira do Mato. O que podemos fazer?

— Nada além do que já fazemos — Lopes suspirou. — Aquelas almas ainda estão tão presas ao momento do combate que não podemos simplesmente dizer a elas que a guerra, assim como suas vidas neste mundo, acabou. Atadas à ilusão, ainda sofrem as dores dos ferimentos e as doenças que as levaram à morte, travando lutas sem fim com os paraguaios que também morreram no conflito... Semana que vem vamos resgatar mais alguns.

— É uma pena. Quase 1.700 soldados, além de mulheres e índios, invadiram o Paraguai naquele ano. Voltaram setecentos para o Brasil.

— Sim — disse o guia com visível tristeza na voz. — E, infelizmente, a maior parte que morreu continua travando a guerra do lado de cá.

Os Espectros de LagunaWhere stories live. Discover now