Capítulo 1

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"Vimo-lo olhar fixamente para oeste; de repente, partido de diferentes pontos, rebôou um grito: A fronteira! Da elevação onde se achava destacamento avistava-se com efeito a mata sombria do Apa, limite das duas nações."

— Visconde de Taunay


A noção de tempo já se perdera em algum momento impreciso, sobrando apenas a dolorosa sensação de que era tarde demais. E era o corpo quem lembrava a ele que já estava ali há mais horas do que gostaria, porque o chão de terra era duro. Também o céu conspirava a favor da confusão ao mostrar nuvens iluminadas de vermelho por baixo, sinal de que o Sol estava se pondo no horizonte.

José Alves Barboza, combatente brasileiro, ergueu a cabeça para olhar ao redor e não se impressionou ao ver-se cercado pelo capim alto. Estava em meio a uma das tantas touceiras que cobriam a paisagem da fazenda Laguna, que pertencia ao ditador Francisco Solano Lopes, presidente do Paraguai. Sua única certeza com relação ao tempo era a data, oito de maio de 1867. Quanto às horas, suspeitava que fosse mais de seis da tarde.

Além do vento que agitava o mato, Zé Alves, como era chamado pelos colegas, não ouvia mais nada. Por um lado isso era bom, porque significava que os soldados paraguaios não estavam próximos. Por outro, era um pouco assustador, pois indicava que ou a coluna brasileira havia ido embora ou havia sido dizimada. Mas essa última possibilidade era improvável. Apesar de ter invadido o território inimigo quase sem recursos, a coluna brasileira tinha superioridade de armas e, sobretudo, pontaria. Os paraguaios contavam com vasto conhecimento do território e cavalos para percorrê-lo com velocidade, no entanto carregavam mais espadas do que armas de fogo, e sua mira era péssima. Pesava contra eles também a inferioridade tecnológica do armamento, porque suas balas mais feriam do que matavam.

Esse era o motivo para Zé Alves ainda estar vivo. Atingido pela infantaria do inimigo no começo da manhã, que armara uma emboscada na saída de Laguna, ele caíra no meio do matagal sentindo uma dor insuportável nas costas, na altura do rim esquerdo. A perda de consciência veio como um remédio para o sofrimento, mas teve o seu preço. Algumas horas depois, ele estava sozinho e ferido dentro do território paraguaio, deixado para trás pela coluna que certamente estaria marchando de volta ao Brasil.

A calmaria da fazenda animou Zé Alves a se levantar. Ele sentou no chão e verificou que o ferimento era superficial, apesar do sangue que manchava a camisa. A bala não tinha entrado na carne, talvez pela distância muito grande do tiro. Ele podia se levantar e fugir dali. Se caminhasse a noite toda, poderia reencontrar a coluna.

A noite se aproximava como uma amiga que trazia a escuridão de presente. Se fosse silencioso, Zé Alves nem seria percebido pelos soldados paraguaios. Depois de alguns minutos de espera, ele viu o planalto da fazenda desaparecer no negrume sem estrelas. Para sua surpresa, tênue neblina acompanhou o crepúsculo, aumentando sua segurança, mas reduzindo as chances de encontrar o caminho que o levaria de volta até a fronteira com o Mato Grosso do Sul, por onde a coluna havia entrado.

Movido pela sede, pela fome e pelo desejo de voltar à companhia dos colegas, Zé Alves tomou seu fuzil e abriu passagem no matagal que chegava até sua cintura. Acima dele, a claridade da Lua atravessava com dificuldade a camada de nuvens, banhando o campo com uma luz estranha. Mesmo com pouca visibilidade, ele soube em que direção seguir por causa do lago que ficava na parte baixa da fazenda. Se ele seguisse pelo planalto, deixando a região alagada às suas costas, seguiria o caminho certo.

Zé Alves era um militar experiente. Sua patente era a de anspeçada, que fica acima do soldado e abaixo do cabo. Ele fazia parte do Batalhão n.º 20 de Infantaria e Voluntários da Pátria. Goiano de nascença, ele conhecia bem as regiões pantanosas e as matas, ao menos o suficiente para saber que fora um erro passar com uma coluna de quase mil e setecentos soldados – sem contar os índios, as mulheres e senhoras de idade – pela fronteira do Brasil com o Paraguai sem um número suficiente de cavalos. Por conta desse erro de estratégia, o deslocamento da tropa era lento, cansativo e perigoso.

No entanto, por mais que ele conhecesse a vida no campo, Zé Alves não estava preparado para o que aconteceu naquela noite.

Enquanto caminhava furtivamente, ele ouviu um grito de homem vindo de algum lugar lá atrás. Não era um grito de dor, muito menos o de um soldado que descobre o perigo. Era muito mais um lamento primitivo, um uivo humano a transmitir sofrimento profundo, algo parecido com alguém que voltara à superfície para respirar depois de muito tempo debaixo d'água.

Zé Alves virou com o fuzil em riste, assustado com aquele lamento meloso que vinha da direção do lago. Seria um paraguaio agonizante? Ou será que estariam torturando um dos seus?

Ele ouviu outro lamento demorado, dessa vez acompanhado de movimento de água. De onde ele estava não conseguia mais ver o lago da fazenda, por isso caminhou até encontrar um terreno onde o matagal dava folga. Dali ele viu a lagoa coberta pela estranha neblina brilhante, e custou a entender o que seus olhos focalizaram naquela direção. Sobre a neblina, talvez andando em cima da água, três espectros de brilho frio se moviam de um lado para o outro como se procurassem alguma coisa debaixo da névoa. Zé Alves teve certeza de que não eram pessoas do mundo dos vivos. Já ouvira os causos contados pelos índios, que falavam sobre lugares assombrados pelas almas e de como elas protegiam o espaço em que haviam morado quando vivas.

Com o coração batendo sem ritmo no peito, o anspeçada brasileiro não conseguiu tirar os olhos daquele fenômeno. Mesmo com medo, ele não se moveu um passo de onde estava, até porque se sentia congelado, e não queria correr o risco de chamar a atenção daqueles fantasmas.

Foi quando ele escutou alguém inspirando o ar com força, logo ao seu lado. Zé Alves pensou que o pior que poderia acontecer seria ele se deparar com um soldado paraguaio naquele momento, e foi o que aconteceu. Mas o soldado não era o que ele esperava. Era pior.

Parado no meio do matagal, a poucos passos de distância, um paraguaio olhava fixamente para ele. No entanto, o que mais assombrou Zé Alves foi notar que o soldado inimigo era meio transparente. As roupas rasgadas deixavam ver os ossos do peito, e seu sorriso era o de um cadáver. Dava a impressão de ser um guardião fantasmagórico da fazenda Laguna. E ele não parecia feliz em ver o brasileiro em seu território.

Zé Alves já tinha colocado toda a força possível em suas pernas, e corria a todo fôlego pela capoeira quando o espectro urrou contra a noite.

¡Brasileño! — e o som de sua voz era semelhante a um calafrio percorrendo a espinha.

Não importava mais que ele estivesse em território paraguaio ou que o terreno fosse irregular e perigoso. Zé Alves correu por mais de vinte minutos para se distanciar o máximo possível daquele lugar, sem nunca deixar para trás a horrível sensação de estar sendo seguido bem de perto. Ela era a força que movia suas pernas enfraquecidas, que só pararam quando ele tropeçou em um emaranhado de capim e caiu de joelhos no terreno íngreme que se abriu diante dele. Seu corpo escorregou para dentro de um canal raso e seco, de onde não conseguiu mais se levantar.

Com medo, Zé Alves ficou deitado ali. O fuzil tremia em suas mãos apertadas.

— Que sortilégio é esse? — ele ofegava enquanto murmurava. — Valei-me, Sagrado Coração de Jesus!

Cada som, cada movimento do capim chamava sua atenção, e assim ele passou a noite toda. Em determinado momento, uma voz distante ecoou na escuridão.

¡Ningún brasileño podrá escapar de nuestra ira!

Em resposta àquilo, uivos fantasmagóricos vindos de todos os lados percorreram o campo escuro. Seriam lobos ou os cachorros usados pelas tropas paraguaias? Nenhum deles, porque a ladainha terminou em risadas humanas cruéis e ameaçadoras.

Depois que aquele som medonho se dissipou, Zé Alves ficou parado por quase uma hora. Seus olhos cansados fecharam várias vezes por causa do torpor, mas o medo era tanto que ele se recusou a dormir. Foi então que surgiu no fundo da vala, a dez passos de onde ele estava, uma claridade em forma humana. Ela ganhou formas um pouco mais distintas, se mostrando como uma mulher alta e loira, de cabelos muito lisos e traços faciais insondáveis. Seu vestido longo terminava em uma cortina diáfana, mais transparente do que o resto do corpo.

Aquilo causou um temor tão grande em Zé Carlos que ele se encolheu contra o barranco. Quando a mulher começou a se aproximar de mão estendida para tocá-lo, ele pulou de onde estava e correu para a esquerda, tropeçando e caindo várias vezes. Seus passos incertos tinham o pavor como combustível, mas o coração não ajudou e a respiração não acompanhou aquela emoção forte demais. Sem se dar conta, ele desmaiou e ficou jogado de bruços no fundo da vala.

Os Espectros de LagunaOù les histoires vivent. Découvrez maintenant