Capítulo 3

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"Os cadáveres paraguaios não arrastados pelo laço dos compatriotas foram, todos, achados mutilados e de modo hediondo."

— Visconde de Taunay

Zé Alves acompanhou o fazendeiro por mais de meia légua. Cansado e esfomeado, sentiu sumirem suas forças. Não era de se espantar, visto que a coluna brasileira invadira o território paraguaio contando com o gado das fazendas locais para alimentar as tropas. Ao avançarem, porém, ficava cada vez mais claro que o inimigo retrocedera os animais, impedindo assim que os brasileiros tivessem acesso a suprimentos. A falta do que comer, aliada à escassez de água e a diminuição assustadora da munição, foram os determinantes para a retirada a partir de Laguna.

O anspeçada era a imagem daquela missão. Seu uniforme, sujo e desalinhado, era quase um farrapo. A blusa azul-ferrete de manga comprida perdera todos os botões. A calça branca de brim não era mais tão diferente do capim seco ao redor. Desgrenhada, a barba suja de pó emprestava a ele um ar animalesco, enquanto o quepe ele perdera na noite anterior, quando correu.

— Você quer água? — o guia Lopes o surpreendeu com a pergunta, já oferecendo de braço estendido o cantil de couro.

Zé Alves tomou quase toda a água. Suas forças se renovaram, mas não tardou muito e a sorte pareceu virar de novo. Apesar de saciado da sede, ele viu como o céu escureceu repentinamente.

— Vem mais chuva — disse para si mesmo.

O cavalo do guia ficou agitado. Ambos estavam saindo de campo aberto e se aproximavam de uma região de solo mais acidentado. As árvores dali foram sopradas por um vento que apareceu do nada e varreu os campos.

— Fique por perto! — o guia Lopes subitamente ficou apreensivo. O ambiente ficava cada vez mais escuro debaixo das nuvens que rolavam no céu como as águas furiosas de uma enxurrada.

Subitamente, um grito pavoroso de dor rasgou a campina. Aquilo fez Zé Alves recordar da noite anterior, que ele desejava que fosse apenas delírio de uma mente perturbada pela guerra. Seus temores, porém, tomaram forma quando um cavalo paraguaio apareceu do meio das árvores. Não havia um cavaleiro sobre ele, mas sendo arrastado por ele.

Para evitar que seus corpos fossem corrompidos pelo inimigo, os cavaleiros paraguaios geralmente cavalgavam presos à sela com uma corda. Assim, se fossem mortos, seriam levados para longe pelos cavalos. Zé Alves e o guia Lopes assistiram àquela cena. No entanto, para espanto deles, o cavaleiro paraguaio era um esqueleto vestido de farrapos vermelhos, enquanto o animal mais parecia uma sombra de fumaça a correr pela escuridão. Ele passou bem perto de onde estavam os brasileiros.

Mas o paraguaio se mexia, esperneava e urrava de dor. Ele encarou os intrusos e tentou inutilmente cravar as pontas dos dedos ossudos no solo para fazer o cavalo parar.

¡Te voy a matar! — ele gritou enquanto se afastava. — ¡Brasileños, te voy a matar!

— O que foi aquilo? — Zé Alves voltara ao auge do terror. — O que diabos está acontecendo aqui?

— Este lugar é perigoso! — o fazendeiro fazia força para controlar seu cavalo assustado.

— São os paraguaios, não são? Eles convocaram forças dos infernos para ganhar esta guerra!

Como o guia não respondia, o anspeçada concluiu seu próprio raciocínio.

— Eles devem ter feito um acordo com os índios! Eles conhecem todas as feitiçarias para trazer os mortos de volta! É assim que pretendem tomar nossas terras! Com bruxaria e almas penadas!

O guia Lopes estava ocupado fazendo o cavalo dar uma volta completa, vigiando o perímetro. Ele acabara de notar que não estavam sozinhos.

Sete vultos de fulgor estranho surgiram ao redor do campo, longe deles, mas perto o bastante para mostrarem o brilho de seus corpos em chamas. Eles ardiam um fogo esverdeado, envoltos em sombras de fumaça preta, os rostos contorcidos de raiva e desespero, como se as labaredas fossem uma maldição. Logo depois que eles surgiram, o capim alto foi incendiado.

— Estão tocando fogo no mato! — alertou o guia. — Vamos sair daqui!

Mas Zé Alves não via escapatória. De um instante para o outro estavam cercados de chamas que se alastravam com facilidade no capim seco. Entre uma labareda e outra, ele podia distinguir os fantasmas correndo e dançando perto das touceiras, acendendo-as ainda mais com o fogo que saía de seus corpos cadavéricos. Se ambos ficassem parados, morreriam sufocados e, depois, seriam queimados.

O guia Lopes pegou o anspeçada pelo braço e ojogou na garupa do cavalo com muita habilidade. Sem demora, disparou na direçãodas árvores e passou pelas chamas, desviando das almas que gritavam com voz defornalha. Eles deixaram o clarão do incêndio para trás, mas não a insegurançaque os seguiu pela escuridão da tempestade.


Os Espectros de LagunaWhere stories live. Discover now