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Provavelmente você pensa que eu sou o protagonista dessa história. Lamento informar, mas eu não passo de um mero observador. Talvez você faça mais parte de nosso enredo do que eu mesmo faço.

Nossa história começa em uma manhã de primavera na cidade de Nova York. Uma garota pálida e de olhos negros sombreados por uma mórbida névoa caminhava em direção ao Central Park com uma embalagem reciclável de cookies em suas mãos. Os cabelos ruivos ondulados possuíam fios desgrenhados cobrindo-lhe a cabeça. A garota procurou um local confortável dentre a grama verde e macia para sentar. Abriu a embalagem e observou o conteúdo cuidadosamente. Mal sabia que aqueles seriam os últimos biscoitos de chocolate com gotas de baunilha que comeria. Na verdade, ela não fazia ideia de que aquela seria a última refeição de sua vida mundana.

Ayala Bennet. Era assim que a garota ruiva se chamava. Um nome essencial para o desenvolvimento da história. Ayala foi a primeira a ser selecionada naquele dia. Uma garota um tanto audaciosa, se é que devo dizer. Cheia de determinação, sempre gostou de bancar a durona, mas eu podia enxergar sua verdadeira áurea. Você pode enganar a todos, até a si mesmo, mas nunca poderá me enganar. Não se engana a Deus. A verdadeira Ayala era muito diferente da imagem que adquiriu com as cicatrizes de batalha.

Lembro-me bem da última coisa que ela pensou antes de ser trazida a mim. Pensou em seu irmão, que ficaria desamparado ao descobrir que ela tinha sido arrancada deste mundo para sempre. Pensou em sua tia Ruth e em como gostaria de poder entregar o pouco de biscoitos que guardara para ela, como de costume.

Mas o mais importante foi a última lembrança que lhe veio a cabeça: Seus pais.

Eles faleceram em um trágico acidente de avião quando a garota tinha apenas sete anos. Eu estava presente quando os corpos de seus pais - mais conhecidos por Dennis e Francis Bennet - explodiram e dividiram-se em mil pedaços de carne humana. Gostaria de poder dizer que eles ao menos tiveram um enterro digno, mas não foi o que aconteceu. Devido a mutilação de seus membros, a única prova de que os pais de Ayala realmente estavam naquele acidente foram os restos achados: a mão de sua mãe, com um enorme anel de esmeraldas pendurado no dedo anelar e metade da cabeça de seu pai. Tia Ruth concluiu que aquela cena seria forte demais para as crianças. Decidiu então que fariam um velório simples, apenas para a família e sem os corpos. A última coisa de que precisavam depois da morte dos pais era a imagem deles em pedaços.

Dennis e Francis eram mundanos realmente generosos e educados. Gente da melhor espécie. Viviam uma vida simples. Francis era corretora e trabalhava em uma pequena empresa de aluguel de imóveis localizada no Brooklyn. Dennis, por outro lado, sempre tendeu para a área de artes. Atuava como pintor e ganhava uma quantia de dinheiro razoável para bancar as despesas da família. Quando eles se foram, as coisas começaram a ficar mais complicadas. Tia Ruth teve de largar o emprego na cafeteria e se dedicar a cuidar de Ollin, o filho mais novo dos Bennet. Para juntar dinheiro para colocar comida na mesa, ela produzia algumas bijuterias e as vendia no período em que Ollin ia para escola.

Apesar de toda minha admiração pelos Bennet, nenhum deles entrou para meu exército. Nenhum, com exceção de Ayala.

Foram exatos quarenta e cinco minutos depois de terminar os biscoitos de chocolate com gotas de baunilha que a garota ruiva deu seu último suspiro. Tudo aconteceu muito rápido. Em um minuto, ela segurava o embrulho reciclável com o que sobrara dos cookies que ela havia guardado para Tia Ruth,e no outro, o pacote estava dizimado no chão, coberto apenas por umas poucas gotas de sangue, que espirraram quando lhe foi cravado um tiro no seio.

O homem que lhe tirou a vida tinha cerca de uns trinta e oito anos. Tinha um nariz redondo e era alto e magrelo. Não era uma aparência realmente assustadora. Se não fosse pela arma, ele não pareceria nada ameaçador.

Durante toda sua vida mundana, eu e Ayala nos encontramos incontáveis vezes. Eu costumava observá-la desde que a mesma era apenas um feto que jazia no útero de Francis Bennet. Uma criança adorável, realmente. Depois da morte de seus pais passei a cuidar dela e de Ollin com mais frequência. Às vezes ela acordava no meio da noite, suplicando pelo conforto de seus pais. Era nesse momento que eu lhe segurava a mão, mas ela não retribuía. Existem pessoas que preferem ignorar a minha presença e Ayala era uma dessas pessoas. Ela não tinha fé em mim, não tinha fé em meus feitos e muito menos na humanidade. Isso não mudou mesmo após ter sido convocada para ser minha soldada.

Foi assim que tudo aconteceu.

Miguel a encarou por alguns instantes. Ele estava sentado em seu trono, que se localizava entre os tronos de seus irmãos, Rafael e Gabriel. Eram eles quem transmitiam aos escolhidos a minha palavra. A maioria de meus selecionados aceitava a oferta, foi por esse motivo que Ayala se destacara. De primeira, ela recusara.

Recusar a oportunidade de servir a Deus. Hipócrita, pensou Miguel sobre a garota. Gabriel não prestava muita atenção em toda aquela discussão, estava mais ocupado brincando com Ivo, um de seus muitos fantoches de meia. Ele tinha uma extensa coleção de fantoches. Gostava de brincar com eles em suas horas vagas, e até mesmo nas ocupadas. Ele ainda preserva essa coleção até hoje. Ivo era o fantoche favorito de Gabriel. Tinha olhos esbugalhados, a pele avermelhada e dois dentes incrivelmente grandes e pendurados fora da boca.

"Não se precipite Srta. Bennet." Falou Rafael "Há inúmeras vantagens no alistamento. Você foi escolhida dentre bilhões de almas, não acha que é um pouco pretensioso de sua parte recusar uma oferta como esta? Sabe quantas pessoas gostariam de estar seu lugar?"

"Meu lugar era ao lado de meu irmão, até vocês me arrancarem este direito. E agora, o único lugar que me serve é ao lado de meus pais. Podem contar ao seu Deus que eu mandei lembranças e que lamento, mas não quero me juntar a ele e nem a sua porcaria de exército." Respondeu a garota sentindo uma sensação estranha queimar-lhe a epiderme.

Miguel e Rafael se entreolharam. Gabriel soltou uma gargalhada alta que penetrou os ouvidos da menina. Aquilo estava deixando ela cada vez mais insatisfeita.

"Desculpe-me, eu disse algo engraçado?" ela aproximou-se dos tronos com passos altos e barulhentos

"Ela não sabe, não é mesmo?" esta foi a vez de Gabriel se pronunciar.

Miguel o encarou com reprovação. Ele não deveria ter dito aquilo. Não era algo fora do comum, Gabriel sempre falava coisas das quais não era permitido falar. Aquele momento não seria exceção. A garota espremeu os olhos na direção dos arcanjos. Não sabia do que se tratava, mas estava prestes a descobrir. Mais tarde, Miguel faria com que Gabriel se desculpasse comigo em suas preces, mas eu nunca o culpei por ter revelado nosso segredo para Ayala. Se não fosse por ele, ela nunca teria aceitado o alistamento.

"Se você não aceitar entrar para o exército, sua alma terá o mesmo destino que todas as outras." falou Gabriel

"E qual seria esse destino?" tudo parecia ficar cada vez mais incompreensível para ela. A morte nunca lhe parecera tão confusa quanto agora.

"Temo que caso não se torne um membro da hierarquia angelical, você será levada para seu descanso eterno e suas memórias desaparecerão por completo." a expressão no rosto da ruiva fora de irônica para abatida em uma fração de segundos. "Receio que não há como você reencontrar seus pais, Bennet.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 03, 2015 ⏰

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