VI - Um gole de vinho

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Após vistoriar as minas e os carregamentos que iriam para as joalherias da cidade, Urd pôde enfim descansar. Já passavam das oito da noite e seu corpo estava pesado e tenso, mesmo assim não queria ir para casa, precisava de um tempo a sós consigo mesma na – provável – última noite de bebedeira de sua vida.

Encaminhou-se então para o bar "Ganso Serpente", o preferido de Raykk, e sentiu-se estranha por estar ali sem ele pela primeira vez. Depois que ele foi embora, não o viu pelo resto do dia, nem mesmo nas patrulhas da cidade, parecia ter mudado sua rota para não ter de enfrentá-la. Sentia-se razoavelmente ofendida por sentir que ele não acreditava em seu potencial, em sua força para lidar com as coisas que deveria enfrentar em breve. Não haviam histórias de glória sobre as mulheres que se revoltaram e fugiram, apenas histórias de sangue e medo, de trevas. Ela não queria levar a família à ruína, Dalibor – seu irmão caçula – não merecia morrer por seu egoísmo, ela não queria ter de enterrá-lo com sua maldita honra.

A fachada do bar se ergueu, era de pedra e tinha um teto baixo, a porta arredondada lhe dava o mesmo aspecto das tavernas ilustradas nos livros de fantasia que costumava ler quando criança, a placa com o nome escondia-se nos entremeios das gavinhas que pintavam as paredes de um verde claro e vivo. Ali dentro era o único lugar que podia ir onde não seria julgada, as pessoas iam para aquele lugar no meio da floresta para se esconder por algumas horas, e as pessoas que buscavam fugir de si mesmas eram muitas. No entanto, naquele dia em particular – sendo início da semana e véspera do Baile Anual – não havia uma lotação notável, apenas uma dúzia de pessoas, dançarinas e serventes. Então se sentou numa mesa dos fundos para ver o show, sendo servida logo por uma caneca de cerveja e um prato de aperitivos, aos quais agradeceu com um sorriso forçado.

Observou a dançarina por mais um tempo, até sua vista se perder num blur de semiconsciência acentuada pelo álcool forte, só voltando a si quando uma presença se acomodou ao seu lado. Ela demorou um tempo para analisar a figura do homem de ombros largos e casaco de linho nobre bordado com fios de ouro que pareciam verdadeiros, no pescoço usava um colar com um pingente notável feito de hematita pura. Ele jogou os cachos sobre os ombros e se curvou na direção dela, estendendo a mão mediante seu olhar confuso e inquisidor.

— Boa noite, querida, espero que não se importe que eu me sente aqui — ele cuspiu uma voz aveludada que quase acariciou seu rosto.

— De maneira nenhuma — ela segurou a mão dele, sentindo a maciez pela falta de trabalho duro, mas alguma aspereza em pontos específicos, provavelmente pelo porte de armas.

— O que uma jovem tão bela faz sozinha esta noite? Achei que aqui era um lugar apenas para cavalheiros.

— Despedida — murmurou, bebendo sua cerveja.

— Ah, então temos que celebrar — ele ergueu dois dedos no ar e falou com a servente sem emitir sons, e a menina voltou com uma jarra de porcelana. — Por favor, experimente este vinho — ele fez sinal para o copo enquanto a bebida era servida.

O vinho escorreu como o desaguar escarlate de uma artéria ferida em contraste com a porcelana polida.

Urd esperou a menina ir embora e enfim provou o vinho, o azedo e o doce mesclavam-se na língua, entorpecendo-a. Sentia-se ébria com a delicadeza e violência dos sabores, que se fundiam em núcleos saborosos que explodiam posteriormente na garganta e desciam quentes.

— Então? — Ele perguntou ansiosamente.

— Muito bom.

— Acho que não fomos apresentados, mas sou Gawain Ferr — ele estendeu a mão outra vez com um sorriso esperto nos lábios.

De Trevas e Sangue  [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now