V - O amor é para os nobres

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Quando Urd acordou, rojões pareciam estar sendo explodindo em sua cabeça, o sol penetrou suas íris com violência e teve de levantar depressa para puxar as cortinas, impedindo parcialmente a luz de entrar no quarto. Notou a jarra de água na beirada da cama e entornou-a na garganta, um tanto escorreu pela camisa e gelou a pele.

— O que está pensando? — Uma sombra no canto de seu quarto falou e a fez dar um salto no lugar, quase derrubando a jarra de barro.

A mãe surgiu na meia-luz, os antebraços estavam manchados de farinha dos pães e o cabelo crespo perdia-se num emaranhado ao redor da cabeça. Os olhos de escleras naturalmente amareladas a encaravam com afeição e ansiedade, enquanto se aproximava a passos lentos para tocar o rosto da sua filha que era pelo menos vinte centímetros mais alta.

— Do que está falando? — Urd se levantou, se esquivando do toque da mãe, indo até a cortina e abrindo-a outra vez, deixando que o dia invadisse o quarto por mais que a dor explodisse novamente.

— Estou falando sobre o que pensa sobre agir como um cão vadio! Sobre o que pensa de fazer às vezes de homem e arranjar briga em cada maldita esquina, sobre arruinar seu rosto e sua reputação a ponto de não ter encontrado ninguém que a queira em todos estes anos, sobre rejeitar o único homem decente o suficiente para assumir a responsabilidade sobre você.

Urd revirou os olhos e comprimiu a ponte do nariz dolorido entre o polegar e o indicador, o braço direito abraçava-se a sua barriga de forma introspectiva enquanto aninhava-se no abraço solitário com o intuito de se acalmar sozinha.

— Eu não o amo mãe.

— Acha que é disso que se trata? Acha que é sobre amor? Nós não temos este luxo minha querida, nós devemos seguir as tradições, nós não nos casamos por amor, nos casamos porque isto é algo que devemos fazer.

— Isto não quer dizer que precisa ser com Raykk — gemeu, virando-se na direção dela, os braços despencaram ao lado do corpo como galhos de uma árvore morta.

— Isso quer dizer que precisa encontrar um homem ou ficará falada.

— E se eu não quiser um homem? E se eu não desejar um homem?

Uma faísca de fúria cega se acendeu nos olhos escuros de sua mãe que foi até ela, um tapa esquentou-lhe a bochecha direita e sentiu-se viva pela primeira vez naquele dia, tanto quanto morta. O terror que se apossou de seu corpo a fez trincar os dentes e cambalear, não pela força do golpe, mas pela decepção, enquanto o castelo que havia construído por todos aqueles anos desabava aos seus pés.

— Jamais diga isso outra vez! Deve encontrar um homem e se casar, ou eu só terei um filho, e pouco me importará se estará viva ou morta! O amor é para nobres Urd, o amor não é para pessoas fracas como eu e você, pessoas que nem mesmo merecem amor não podem saber sentí-lo por ninguém.

Urd não conseguia falar, os joelhos ainda tremiam, a garganta doía com as lágrimas presas que nunca derramaria. Observou o movimento suave da mãe ao se encaminhar para a saída do quarto, ouviu a voz dela colidir com a voz de outra pessoa no corredor, o riso frouxo e descomplicado de alguém que não parecia ter acabado de brigar com a filha a dez segundos atrás. Sentiu o olho esquerdo – o azul – ardeu e uma lágrima percorreu a bochecha, só teve noção dela quando tocou-a suavemente com a ponta do dedo, ao mesmo tempo em que uma figura invadiu seu quarto.

Raykk apareceu na porta, os cabelos estavam presos, exibindo as laterais raspadas e os brincos grossos na ponta de ambas as orelhas. Ele entrou e fechou a porta, enquanto Urd caminhava em sua direção, até estar tão perto dele que seus peitos se tocavam. Urd colocou-se na ponta dos pés e respirou contra o queixo dele, fechando os olhos enquanto ele se mantinha imóvel, estremecendo apenas quando ela segurou-o pelas laterais do rosto.

— O que está fazendo? — Ele sussurrou, parecia em pânico quando ela o empurrou para que se encostasse na porta.

Urd ergueu o queixo e tocou os lábios dele com os seus, o rapaz enfim se moveu e agarrou-a pela cintura, aprofundando o beijo. Ela tentou sentir alguma coisa mas não sentia nada, seu coração era o motor estático de um barco que em breve naufragaria, mesmo assim alongou o beijo por mais alguns segundos, enquanto sentia o corpo de Raykk cada vez mais tenso.

— Me perdoa, não consigo — murmurou contra a boca dele, que suspirou pesarosamente e empurrou-a por um instante, visivelmente abalado.

Os dois ficaram frente a frente enquanto ele parecia precisar de um segundo a mais para reaver o fôlego.

— Eu achei que podia, mas não consigo, não posso fazer isso com você apesar de estar com você parecer a coisa certa — encarou o chão, o choro que jamais sairia ainda estava preso na garganta.

— Você está errada Urd, não é a coisa certa, é a melhor solução para um problema, escolhas são algo que fazemos com total liberdade, quando temos a chance de escolher por nós mesmos — ele murmurou reflexivo, sentando-se no chão para a encarar.

O quarto sem móveis – além da cama de solteiro e de um baú com roupas que também era sua mesa de cabeceira – parecia pequeno demais com a presença dele. A luz do sol mesclava-se aos olhos claros dele que quase se perdiam na confusão luminosa.

— Eu sinto muito, mas este é meu maior desejo, poder fazer escolhas.

— As escolhas dependem do sacrifício Urd, então deve estar preparada para lidar com eles.

Urd quis rir mediante a fala do amigo que a amava tanto, mas não fazia ideia do quanto estava sacrificando só para manter-se viva. Madd e sua vida não eram sacrifício o suficiente? Achava então que agora tinha todo o direito de sentir-se amaldiçoada, porque estava prestes a perder tudo, então queria ao menos poder fazer algo a respeito disso.

— Acho que após tanto sacrifício então chegou a hora de escolher, porque você não faz ideia.

Raykk ergueu os olhos para ela, sentindo-se visivelmente culpado.

— Me perdoe Urd, eu realmente não faço ideia, eu só queria te proteger.

— Me casar com você não vai me proteger de merda nenhuma.

— Então o que quer que eu faça?! — Ele se levantou, parando diante dela com os braços cruzados.

— Quero que suma da minha frente agora e me deixe sozinha, quero que vá embora! — Empurrou-o.

Ele a encarou com mágoa e deu de ombros, desvencilhando-se do toque dela, então se virou para sair.

— Vai perceber tarde demais que existem soluções bem piores que esta – ele cuspiu, então cruzou a porta, deixando-a enfim sozinha. 

***

N/A: Eu amo tanto essa história! Eu sei exatamente o que mudaria nela, mas não consigo não amar...

Espero que vocês tenham gostado! Não deixem de clicar na estrelinha, bye <3

De Trevas e Sangue  [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now