Não sou uma carta

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Me entrego em palavras, mas eu não sou como uma carta para os outros. Cartas são pessoais demais e não ousaria prontamente divulgá-las: nestes papéis amareladas soa a maior possibilidade de você realmente descobrir quem eu sou e talvez eu tema que isso ocorra. Em cartas eu deixo de emoldurar a minha personalidade e saio do disfarce de uma aparência mais convidativa do que a minha estressada existência.

Sou um filme independente. Por que filmes são tudo que eu posso dar para você se esquecer de mim antes do momento dos créditos subir, e não haverá um monte de palavras lhe revelando minhas agressividades.

Em um filme eu posso te enganar com uma trilha sonora maravilhosa feita de jazz, que são o que eu realmente aprecio além do silêncio. Mas se ficar quieto, tu vai me notar.

Chamo sua atenção para o mar e te distraio no momento que o céu está ficando rosa, que é o que eu realmente gosto além das pinturas que os homens tentam copiar, e assim tu não verá meus olhos vermelhos e úmidos com a torrente de emoções que se extinguem como torneiras.

Vou concentrar música de vanguarda e os mestres do modernismo brasileiro. Terá alguém revirando poesia para evitar que seus sensos de entedimento e interpretação se atraíam a mim e aos rabiscos de letras e frases que mantenho em cadernos em forma de prosa.

E se houvesse um filme sobre mim, não seria de mim. Construida por tudo o que eu vejo e tudo o que sinto, tudo que ouço e cada atmosfera que piso.

Por que se eu te fizer saber de tudo que eu gosto, teria que fazer o mesmo todos os dias. Eu já não serei a mesma amanhã. Enquanto houver vida haverá uma procura, é uma "descobre-te" todo dia. Por que eu preciso que tu esqueça-me para que eu possa me apresentar todos os dias novamente, com tudo de novo que eu descobri em mim e de tudo que eu já abri mão. Porém, minha mente é falha e meus pensamentos também. Eu morro todos os dias e no outro acordo como um novo alguém. Todo manhã, nada sei sobre mim. O que se mantém sempre que eu me levanto e mesmo muito me auto descobrindo antes do sol se pôr, é que nada se manterá no dia seguinte.

Não sei o que sou, mas sei o que há em mim: a capacidade de mudar, e isso me basta, pois a pessoa que fui ontem e a qual as pessoas conheceram, já me é estranho. Somos um vazio a ser ocupado, diariamente. A prática é o que leva ao entendimento e assim continua a construção de quem sou no levantar de cada manhã.

Sobre a vida: sim, uma insanidade que não quero compreender, abro mão de meu entendimento para apenas a contemplar, evitando ludibriar o destino na conquista de uma resposta sucinta de sanidade que valerá o inevitável fim. 

Sobre o tempo, aguardo que os dias passem tão depressa, e tão expedito seja o rodar dos ponteiros, que um dia sua presença irá se materializar e poderei concluir um longo diálogo com este magnífico matemático.

Terminam as  cenas.

Sobem os créditos.

As luzem se acendem.

Nem mesmo eu estou na plateia.

Futura Memória da ExistênciaWhere stories live. Discover now