IV - Aquilo Que É Retornável

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IV - Aquilo Que É Retornável

Girei a chave do carro, tomei mais alguns comprimidos para a gastrite que acordei com, engatando a marcha e saindo. No banco ao meu lado, haviam páginas arrancadas do caderno de meu pai, os esboços, seriam uma isca. Era um dia bonito, quando há algo errado consigo, e ainda assim permite-se ver o sol, é sempre diferente. Estacionei a uma distância considerável e caminhei até meu emprego, nada lá fiz além de antecipar o passar das horas até o encontro com aquele emissário imundo.

Ele estava lá, do outro lado, esperando-me de pé no bar palco de nossas outras reuniões. Vi-lo sorrir, mirava a porta desde antes que eu saísse. Nutriam, todos, suas esperanças por mim, algo especial para eles, pois sabiam toda a história que somente agora sei. Tentei retribuir a expressão, com um sucesso questionável, mas não importava para ele ou para mim, não seria capaz de imaginar o que de fato se passava por minha mente, passaria por sua cabeça que seria mundano qualquer o meu desconforto.

Por aqueles meros rabiscos, deu-me trinta dólares. Eram já mimos, dados com a intenção de conquistarem-me e agarrarem-me mais e mais; se o dinheiro fala, este deveria ser o canto de uma sereia. Pude ver seu anseio, esse tempo todo esperou por algo além, havia aguardado pacientemente pelo momento em que tudo o que eu poderia oferecer havia se esgotado. "Você não tem mais nada, certo?" Saíram de sua boca como se já houvesse ensaiado-as. "Isso foi tudo." Fingi-me conivente. "Veja, eu posso te oferecer mais do que te ofereci até aqui. Você também é jornalista, pode escrever alguns artigos para nós, coisas que ficarão só entre nosso recluso grupo." E era dessa forma que Ted e outros começavam a trilhar a depravação. "Parece bom, que tipo de artigo?" Evitava falar tanto, do contrário meu nojo seria óbvio. "Nada muito diferente. Como os de seu pai, sobre essa condição..." Enrolou, procurando palavras ou evitando dizê-las de forma a exprimir seu reprimido êxtase, mirou sua visão aos próprios sapatos, virando a cabeça levemente como uma criança envergonhada ao confessar-se. "...Essa condição triste, decadente e deprimente que o mundo tem passado." Voltou a olhar-me nos olhos ao ter dito tudo. "Então, nos vemos amanhã novamente?" Quis encerrar aquilo. "Estarei sempre aqui. E, ah, mais uma coisa." Apoiando e abrindo sua maleta sobre a mesa, tirou dela um envelope gordo, logo dando-me. "São cinco mil dólares, por termos feito negócios juntos até agora. Isso vem de todos da equipe. Espero que possamos continuar com isso." Existia muito intento por trás daquela filantropia.

Esperançosamente esse foi meu último encontro com o mesmo. Andei até o carro, distante o suficiente para que não me notasse ali. Eram cinco mil dólares comigo, sem esforço algum, garantiria uma vida fácil a qualquer pessoa, faz com que eu compreenda como muitos facilmente se venderiam àquilo. - Talvez até mesmo eu, em diferentes circunstâncias, mas nunca nesta que me encontrei. Minha abominação por eles é intensificada em mais valorosa potência pelo destino de meu pai.

Sem que nada bebesse, sem que se sentasse, passaram-se no mínimo vinte minutos até que ele entrasse em seu carro - No mesmo momento, liguei o meu. Parti alguns minutos após ele, escondendo-me o quanto podia atrás de outros veículos que embrenharam-se entre nós naquele curto tempo. Após três horas, o que foi uma jornada até o fim da cidade, estávamos em uma estrada com nada além de árvores em ambos os lados; nesse ponto, o máximo que poderia fazer seria manter certa distância.

Encostou ao lado direito da estrada. Desacelerava para não perdê-lo, e ali por um momento apavorei-me, observando-o quando por acaso meus olhos correram até seu retrovisor, parecia encarar diretamente a mim. Não tive opção senão ultrapassá-lo, em um caminho tão longo e tão repetitivo temia não haver nenhum ponto referencial para que, quando voltasse ali, soubesse onde havia o deixado. Já procurava desesperadamente algum sinal que ajudasse a reencontrar o trecho. Quase como se escondido por seu automóvel, existia uma trilha estranha, larga e limpa, que adentrava aquela mata. Afastado o suficiente, ouvi o som de seu motor religar, as luzes de seu farol escapavam dentre os troncos. Esperou estar só para seguir em frente.

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