V

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A varanda do edifício central estava iluminada pela luz que passava pelas portas, mas havia sombras negras desenhadas por muros baixos, e manchas fantásticas feitas pelas cadeiras de ferro, caindo sobre um canteiro de gladíolos. Em meio aos vultos que se moviam nos quartos, surgiu a srta. Warren, em princípio de relance, depois claramente definida, quando parou e viu Dick. Ao atravessar a soleira da porta, seu rosto captou a última luz do quarto e trouxe-a consigo para fora. A moça caminhava ritmicamente — durante o dia todo houvera música em seus ouvidos, canções de verão, a respeito de céus ardentes e sombras selvagens. Com a chegada de Dick, a melodia se tornara tão alta que Nicole teria podido cantá-la.

— Como vai, capitão? — falou, desviando o olhar do de Dick com dificuldade, como se tivessem ficado entrelaçados. — Vamos sentar-nos aqui? — Ficou de pé, olhando por um momento de um lado para outro. — Já é praticamente verão — acrescentou.

Uma mulher a acompanhara, criatura atarracada, de xale. Nicole apresentou-a a Dick:

— Senora...

Franz pediu licença para ir-se embora e Dick aproximou três cadeiras.

—Noite bonita — disse a senora.

— Muy bella — concordou Nicole. E depois, a Dick: — Vai ficar aqui por muito tempo?

— Vou ficar bastante tempo em Zurique, se é a isto que se refere.

— Temos hoje a primeira noite verdadeiramente de verão — disse a senora.

— Vai ficar?...

— Pelo menos até junho.

— Junho é um belo mês, aqui — comentou a dama de companhia. — O senhor deveria ficar o mês de junho e ir-se embora em julho, quando esquenta demais.

— E você, para onde vai? — perguntou Dick a Nicole.

— A um lugar qualquer, com minha irmã, a algum lugar excitante, espero eu, porque perdi tanto tempo! Mas é possível que eles achem que eu deva ir para um canto sossegado, em princípio. Talvez Como. Por que você não vai para Como?

— Ah, Como... — suspirou a senora.

Dentro do edifício, um trio começou a Cavalaria Ligeira, de Suppé. Nicole aproveitou-se disto para ficar de pé. Dick teve uma impressão de juventude, que o emocionou grandemente. Ela sorriu, um sorriso infantil e comovente, que lembrava toda a mocidade perdida no mundo.

— A música está forte demais, para se conversar. É melhor darmos uma volta por aí. Buenas noches, senora.

— Boa noite, boa noite.

Desceram os degraus para a alameda. Logo em seguida, passaram por um trecho sombrio. Nicole tomou o braço de Dick.

— Tenho uns discos que minha irmã me mandou da América — disse ela. — Da próxima vez em que você vier aqui, vou tocá-los. Sei de um lugar para levar a vitrola, onde ninguém ouvirá.

— Ótimo!

— Conhece Hindustãol — perguntou Nicole. — Nunca tinha ouvido antes, mas gosto da música. E tenho também Por que Será que os Chamam de Bebês?, e outra: Gosto de Poder Fazer Você Chorar. Com certeza você dançou ao som de todas essas músicas, em Paris.

— Nunca estive em Paris.

O vestido creme de Nicole, que se tornava alternadamente azul ou cinza, à medida que caminhavam, os cabelos muito louros, tudo isso deslumbrava Dick. Sempre que se voltava para ela, notava-lhe o leve sorriso. Viu seu rosto iluminar-se como o de um anjo, quando chegaram às imediações de um poste de luz, na beira da estrada. Nicole agradeceu-lhe por tudo, como se ele a tivesse levado a uma festa. A medida que Dick se tornava menos seguro da intimidade entre ambos, a confiança de Nicole ia crescendo — ela sentia uma excitação que parecia refletir toda a excitação do mundo.

— Tenho bastante liberdade, aqui — disse ela. — Vou tocar para você duas boas músicas: Espere até as Vacas Voltarem para Casa e Adeus, Alexandre.

Dick chegou atrasado na vez seguinte, uma semana mais tarde. Nicole esperava-o num ponto do caminho por onde ele teria que passar, ao sair da casa de Franz. Seus cabelos, penteados para trás das orelhas, tocavam-lhe os ombros de tal maneira que o rosto parecia apenas ter emergido dali, como se naquele momento exato ela tivesse saído de um bosque para um lugar enluarado. O desconhecido entregava-a ao mundo; Dick desejou que ela não tivesse nada atrás de si, não tivesse passado, que fosse apenas uma menina perdida, sem endereço, a não ser o da noite de onde viera. Voltaram para o esconderijo onde estava o fonógrafo, dobraram a esquina da oficina, subiram um rochedo e sentaram-se atrás de um muro pequeno, fitando a vasta escuridão.

Agora estavam na América. Até mesmo Franz, com sua concepção de Dick como irresistível Lotário, nunca teria adivinhado que tivesse ido tão longe. Sentiam tanto, meu bem. Tinham ido ao encontro um do outro num táxi, meu amor. Tinham preferências em matéria de sorrisos e se haviam encontrado no Hindustão, e logo depois deviam ter brigado, pois ninguém sabia de nada e ninguém parecia ligar — e, no entanto, finalmente um dos dois partira e deixara o outro chorando, mas o que se fora também iria sentir-se só, e muito triste...

As melodias suaves, juntando tempos perdidos e esperanças futuras, retorciam-se dentro da noite.

Um grilo mantinha a cena unida, com uma única nota. De vez em quando, Nicole parava o fonógrafo e cantava para Dick.

Ponha um dólar de prata No chão E veja-o rolar Porque é redondo...

Dick levantou-se de repente. — Que aconteceu? Não gosta? — perguntou Nicole. — Claro que gosto. — Foi nossa cozinheira que me ensinou:

A mulher nunca sabe

Como é bom o seu homem

Até o dia em que o manda embora...

— Gosta?

Nicole sorria-lhe, fazendo o possível para que o sorriso reunisse tudo o que havia dentro dela para ofertar a Dick, prometendo-lhe todo o seu ser, em troca de tão pouco, o pulsar de uma resposta, a certeza de uma vibração lisonjeira por parte dele. De minuto a minuto, a doçura nela se infiltrava, saindo dos salgueiros, emergindo do mundo sombrio.

Também ela se levantou e, tropeçando na vitrola, viu-se por instantes contra Dick, apoiando-se no vão de seu ombro redondo.

— Tenho mais um disco — disse ela. — Já ouviu Adeus, Letty ? Com certeza, já.

— Sinceramente, você não compree... não ouvi nada... — "Não ouvi, não conheci, nem cheirei, nem provei", poderia ele ter acrescentado. "Apenas mulheres de rostos encaroçados, em quartos quentes e secretos." As mocinhas que Dick conhecera em New Haven, em 1914, beijavam dizendo: "Ora!" e empurrando com as mãos o peito do homem. Aqui, agora, este destroço mal salvo do desastre trazia-lhe a essência de todo um continente...

Suave é a Noite (1934)Место, где живут истории. Откройте их для себя