XIX

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Abe devia partir da Gare Saint-Lazare às onze horas. Estava só, sob a suja cúpula de vidro, relíquia da era do Palácio de Cristal; suas mãos, que tinham a vaga cor acinzentada que só aparece após vinte e quatro horas de vigília, estavam nos bolsos, para esconder a tremedeira. Assim sem chapéu, via-se que seus cabelos somente na parte de cima estavam penteados para trás — os de baixo apontavam resolutamente para os lados. Mal se podia reconhecer nele o homem que nadara na praia do Hotel de Gausse, quinze dias antes.

Chegara cedo, examinara a estação de um lado a outro, movendo apenas os olhos; seria necessária uma força nervosa fora de seu controle para mover qualquer outra parte de seu corpo. Valises e malas com aspecto novo passavam por ele, assim como passageiros apressados.

No momento em que estava imaginando se teria ou não tempo para beber alguma coisa, apalpando o úmido maço de notas de 1 000 francos, no bolso, viu Nicole surgir no topo da escada. Fitou-a, notando nela a expressão de auto revelação das pessoas que não sabem que são observadas por quem as espera. Estava de testa franzida, pensando em seus filhos, não para deles se orgulhar, mas, simplesmente, contando-os animadamente — uma gata verificando suas crias com a pata.

Quando viu Abe, instintivamente mudou de expressão. A manhã era triste e Abe, uma figura lúgubre, com escuras olheiras sob a pele queimada. Sentaram-se num banco.

— Vim porque você me pediu — disse Nicole, em tom defensivo.

Abe parecia ter-se esquecido do motivo do pedido e Nicole contentava-se em ficar olhando os viajantes que passavam.

— Aquela vai ser a rainha do navio, a moça com tantos homens que vieram despedir-se dela. Vê por que comprou aquele vestido? — Nicole falava cada vez mais depressa. — Vê por que ninguém mais podia comprá-lo, a não ser a rainha do navio? Vê? Não?... Acorde! Aquele vestido tem uma história... O excesso de tecido conta uma história e alguém, no cruzeiro à volta do mundo, vai sentir-se bastante só para desejar ouvi-la.

Nicole pronunciou apressadamente as últimas palavras; falara demais, contra seus hábitos. Abe achou difícil que alguém, ao ver-lhe a expressão séria, pudesse acreditar que ela tivesse falado. Ele endireitou-se com esforço, ficando numa posição em que dava a impressão de estar de pé, embora continuasse sentado.

— Quando você me levou àquele baile esquisito... sabe?... o de Sainte-Geneviève... — começou Abe.

— Lembro-me. Foi divertido, não foi?

— Para mim, não. Não achei nada divertido vê-los dessa vez, Nicole. Estou cansado de vocês dois, mas não se percebe, porque vocês estão ainda mais cansados de mim; sabe o que quero dizer. Se eu tivesse um pouco mais de entusiasmo, procuraria outras pessoas.

A resposta de Nicole, desta vez, não foi dada com luvas de pelica:

— Acho tolice mostrar-se desagradável, Abe. Além do mais, você não pensa realmente assim. Não sei por que renunciou a tudo.

Abe ficou pensando sobre isto, fazendo um esforço para não tossir e nem assoar o nariz.

— Com certeza fiquei entediado; depois, achei que dava muito trabalho voltar atrás, para tomar outro rumo.

Muitas vezes um homem pode fazer-se de criança desamparada diante de uma mulher, mas quase nunca consegue convencer, quando se sente realmente como criança desamparada.

— Não há desculpa para isso — disse Nicole, secamente.

Abe estava sentindo-se pior a cada minuto; só pensava em coisas desagradáveis para dizer. Nicole achava que a atitude correta, para ela, era ficar sentada, olhando direito à frente, com as mãos no colo. Durante algum tempo, nada disseram, cada qual fugindo ao companheiro, só respirando porque havia espaço azul à frente, um céu não visto pelo outro. Ao contrário do que acontece com os amantes, não tinham passado; ao contrário do que se dá com marido e mulher, não tinham futuro. E, no entanto, até hoje de manhã Nicole gostara de Abe mais do que qualquer outra pessoa (com exceção de Dick), e Abe havia muitos anos tinha por ela um amor tímido, amedrontado.

Suave é a Noite (1934)Where stories live. Discover now