Cozinhar era algo que me distraía facilmente e eu estava precisando pensar em algo que não fosse à noite de hoje. Festa. Barulho. Adolescentes suados passando vergonha na pista de dança. Eu realmente queria esquecer um pouco disso tudo e ocupar minha mente cozinhando era uma ótima alternativa.

À medida que eu ia acrescentando os ingredientes na tigela a tensão ia diminuindo, quase como mágica. Era muito satisfatório ver os ingredientes se misturando e formando uma pasta escura. 

Fechei o forno e fui em direção a estante de madeira da sala de estar em busca de algum livro que ocupasse a minha mente enquanto o brownie não ficava pronto. Eu estava me esforçando para deixar minha cabeça ocupada e estava conseguindo. Dei uma boa olhada de cima a baixo no móvel velho à minha frente. Ele pertencera ao meu pai e já devia ter os seus vinte anos preso naquele mesmo lugar. Passei os olhos pelas prateleiras vagarosamente. Havia uma quantidade considerável de poeira espalhada por ela me lembrando de que eu devia limpá-la o mais breve possível.

Iniciei a procura por Orgulho e Preconceito, o clássico de Jane Austin, o qual eu adorava. Passei os dedos pelos livros e a poeira ficou grudada em suas pontas, mas eu a ignorei. Encontrei o livro no canto superior perfeitamente conservado, como se o efeito do tempo não tivesse o atingido. Parecia um livro recém-comprado.

"Em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui. Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e a amo ardentemente", eu havia sublinhado essa parte no livro. Sr. Darcy sabia como deixar uma mulher caidinha por ele. Já havia se passado mais de duas décadas da publicação desse clássico e ele ainda conseguia mexer comigo.

Tirei o brownie do forno, abocanhei alguns pedaços, guardei alguns outros para mamãe e voltei para a sala com a intenção dar continuidade a minha leitura, mas outro livro, verde e de capa dura, que estava um pouco mais a frente dos demais enfileirados ao seu lado, me chamou atenção. 

Tirei-o e o folheei. A poeira invadiu minhas narinas e eu espirrei. Bom, definitivamente eu precisava limpar aquela estante. 

O livro era bem velho, com algumas palavras sublinhadas em páginas aleatórias. Eu nunca havia reparado nele antes e, levando em consideração que somente eu tinha interesse no que se encontrava naquela estante, aquele livro devia está ali há muito tempo. Um breve conto introduzia a estória. Era sobre um menino que nasceu com grandes asas como as de uma Condor-dos-Andes, e que por isso vivia isolado do mundo no centro de uma floresta tropical, se escondendo da vista de todos. À medida que ia crescendo mais o garoto almejava conhecer o mundo, era um desejo profundo e incontrolável como o vício em uma droga. "Os humanos são perigosos. Não estão preparados para alguém como você", sua mãe avisou, mas ele não deu ouvidos. A estória termina com o menino fugindo de casa e sendo morto depois que moradores de uma aldeia o capturaram e o cozinharam junto com as demais aves na noite da festa lunar.

A leitura me deu arrepios. Eu havia me arrependido de ter aberto aquele livro. Porque raios aquilo se encontrava na minha estante?

Pus o livro de volta e fui para o meu quarto me arrumar para a festa. Rebeca já havia me enviado um monte de mensagens me perguntando sobre o seu look da noite. Respondi que o vestido de bolinhas era o melhor, mesmo sabendo que no final ela iria ignorar a minha resposta e escolher o que mais lhe agradara.

Alcancei o vestido vermelho de mangas bufantes que havia comprado e o vesti. Calcei minha bota preta e resolvi passar uma leve maquiagem. Após alguns minutos, já estava pronta. Olhei o meu reflexo no espelho, eu havia me arrumado mais do que eu normalmente me arrumaria. É, eu realmente estava ficando parecida com Rebeca.

Minha amiga, por incrível que pareça, já estava pronta quando eu cheguei. Ela apareceu com um vestido justo rosa e com um salto nude. Resolvi não comentar do milagre dela não ter se atrasado e ela também não levantou o assunto.

Sangue LealWhere stories live. Discover now