✴ VI - Dália & Amor ✴

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"A conjectura infundada de que daríamos certo, creio eu, talvez tenha sido o prenúncio da tardia ruína..."

- Bárbara Araújo.

✴✴✴

Dália não apareceu pelos próximos quatro dias.

Eu havia enviado trinta e cinco mensagens e ligado vinte e três vezes.

Dália não me respondeu ou atendeu qualquer uma das minhas ligações.

- Talvez tenha sido bom pra você, ela parece ser uma mulher com muitos problemas - murmurou Clara, tomando um gole da Coca-Cola que crepitava em sua xícara.

- Ela parecia uma pessoa legal - dei de ombros, tentando soar complacente.

- Eu sei Taby, mas legal as vezes não é o suficiente - suspirou. - Sem falar no lance da idade, e do casamento de merda dela, e da criança que graças a Deus não morreu.

- Você acha que ela nunca mais vai responder?

Clara pegou o controle no encosto do sofá e pausou a série, virando-se dramaticamente em minha direção, contive o ímpeto de colocar o cacho solto de seu turbante atrás de sua orelha. Me encarou com seus olhos enormes e brilhantes, então pegou minha mão e entrelaçou meus dedos com os seus.

Estávamos na sala de sua casa, todas aquelas plantas espalhadas pela sala davam a impressão que os inquilinos daquele lugar nos observavam. Seu sofá era mais macio que o meu, sua TV também era maior, mas ali era frio, talvez por ser grande demais para tão poucas coisas.

- Taby, você está me ouvindo? - finalmente percebi que havia me perdido.

- Desculpa, o que estava dizendo?

- Estava dizendo pra você se controlar, você deveria saber que isso não daria certo, sinto muito mas tenho de ser realista.

Suspirei, depois soltei suas mãos.

- Só preciso de uns dias, eu nem a conhecia.

Clara sorriu, como se estivesse aliviada.

***

Sempre fui absolvida facilmente por teorias da conspiração. Mas, para mim, a teoria que mais faz sentido é a teoria do caos. Borboletas em geral sempre tiveram um significado meio sobrenatural para mim, e Dália havia tragicamente ressignificado o maldito inseto.

Em dias como este, em que a chuva cai forte lá fora e eu não consigo arranjar nada para fazer, penso em como teria sido se Dália nunca tivesse procurado meu chefe para os procedimentos do divórcio. Eu não a teria consolado, não teria me encantado pela morbidez obscura que transcendia o brilho opaco de seus olhos. Se eu tivesse mudado minha rotina e não tivesse ido beber, não teria presenciado Dália e Victor e ela não terminaria no meu sofá, se eu não fosse uma mulher que sente atração por mulheres, muito provavelmente Dália e eu jamais teríamos tranzado. Eu não conheceria o sabor de seus lábios, nem a dimensão exata da envergadura de seu corpo, nem a tatuagem de borboleta.

Eu não teria me apaixonado.

O engraçado é que durante a adolescência você sempre acha que vai se apaixonar. Que vai conhecer o garoto certo, que terão o primeiro beijo atrás dos muros da escola, enquanto ele te empurra contra a parede e sua blusa do uniforme é manchada pela tinta preta das pichações com dizeres como vadia, cadela e muitos outros adjetivos dispostos de modo pejorativo. Então vocês irão para casa de mãos dadas, tomando cuidado para que nenhum conhecido os veja e conte aos seus pais conservadores o que sua filha faz depois da escola. Quando você pensa em ser adolescente é isso que deveria passar pela sua cabeça, mas coisas assim não acontecem quando você é "diferente".

Eu não faço parte do clichê confuso, desde que descobri o que era um beijo sempre soube que gostaria de beijar uma garota. No início foi algo mais porque, aos oito anos, você costuma ter nojo dos meninos da sua sala que compartilham chicletes, cospem no chão e gritam como animais na maior parte do tempo em que estão juntos (não que isso mude muito com o passar do tempo). Mas, a medida que eu crescia, ainda não via nada de especial naqueles moleques nojentos que mal lavavam as próprias mãos depois de ir ao banheiro, e que se referiam a garotas como pedaços de carne na vitrine de um açougue.

Beijei pela primeira vez aos onze anos, o nome dele era Henrique e eu quase vomitei porque passe pelo menos vinte minutos escovando os dentes depois que cheguei em casa. Minha mãe ficou preocupada e me persuadiu a contar o que havia acontecido, então eu contei. Ela apenas sorriu e disse que ficaria tudo bem, contanto que eu não fizesse mais algo do tipo sem me sentir pronta.

Não beijei ninguém até os quinze anos.

Foi quando Clara se mudou para Peixoto e entrou na minha sala do primeiro ano, ela era a pessoa mais inteligente e perfumada que eu já havia conhecido. Clara me escolheu para ajudá-la quando a professora sugeriu que ela talvez precisasse de uma amiga já que estávamos no segundo semestre. As garotas que me chamavam de sapatão quando eu passava não me olharam com bons olhos, mas nenhum garoto se interessou por Clara, ela não era nada parecida com as outras meninas que costumavam chamar a atenção naquela época.

Eu gostava de como era fácil rir com ela, de como - apesar de ser infinitamente mais inteligente - ela prestava atenção no que eu dizia. Comecei a me esforçar mais, sem saber direito porque eu queria tanto impressionar a garota nova. Passei a ler mais livros do que de costume, a escrever comentários "passáveis" por inteligentes antes de interpretá-los a ela porque Clara não tinha tanto dinheiro para comprar os livros que lançavam. Ia em sua casa aos sábados e recitávamos histórias em voz alta, O Morro dos Ventos Uivantes, Lolita, Drácula, Dom Casmurro. Também líamos Crepúsculo e coisas que as garotas da nossa idade costumavam ler, mas apenas para tirar sarro e convencermos a nós mesmas que éramos mais inteligentes que a maioria da nossa faixa etária.

Os pais de Clara tinham um pequeno comércio, um bar que vendia de tudo, mas álcool só aos fins de semana. Foi num sábado de verão, o nosso primeiro verão, num daqueles quentes como só o Brasil. A gente tinha passado a tarde toda na piscina de plástico que o irmão mais velho de Clara - Roberto - tinha montado pra gente no quintal grande da casa deles.

Os adultos estavam tomando conta da venda e Roberto tinha saído com a namorada simpática dele, então Clara me levou pra dentro e me mostrou onde o pai guardava as bebidas. A gente tinha quinze anos e todos na nossa sala já tinham bebido pela primeira vez, então achamos que devíamos beber também.

Durante muito tempo eu culpei o álcool.

E me surpreendi ao notar que lá estava eu outra vez, culpando o bendito álcool.

Mas não era o álcool, era só eu.

E Dália tinha aquele brilho suspeito que confunde a mente, que me fez crer mesmo sem certeza nenhuma, que poderia ser amor...

Caos • Romance Sáfico [CONCLUÍDO]Where stories live. Discover now