Capítulo 18

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{POV. Anna Elis}

- O que você está fazendo aqui? - Anna quebra novamente o silêncio e fuma um pouco mais.
- O que você está fazendo aqui? - Enfatizei pegando a garrafa de vodka quase na metade, para dar um breve gole. Anna o tomou de minhas mãos.
- Bebendo. - Ela deu um gole e sem querer os cantos dos meus lábios se ergueram.
- Gosto de olhar as estrelas quando estou confusa. - Olho para o céu novamente.
- Eu chuto um saco de luta quando estou confusa. - Ela me faz sorrir novamente.

  Há outro silêncio, e então algo queima dentro de mim, como se quisesse pular para fora.

- Minha mãe. - Digo de repente, e sinto o olhar confuso dela sobre mim. - Minha mãe fez a maioria das queimaduras e cicatrizes. - Contar aquilo fez meu coração se partir, mas ao mesmo se sentir aliviado de poder desabafar isso para mais alguém.
- Como assim? - Anna Kariênina parecia horrorizada.
- Você conheceu sua mãe? - Devolvi com outra pergunta.
- Não, ela morreu no meu parto.
- Sorte sua, a minha era uma filha da puta. - Traguei meu cigarro. - Minha mãe era uma mafiosa viciada em drogas que quase acabou com o império que Paul tem hoje, quando ela perdia nos jogos, e eu estava fazendo algo errado quando ela chegava em casa, ela... - Engulo seco. - Me espancava, algumas vezes tão graves com ferros de passar roupas e panelas quentes que ficaram marcas, que nem mesmo Paul pagando os tratamentos mais caros conseguiu reverter. - Meus olhos marejaram mas eu me recuso a chorar. - Eu só tinha 8 anos quando ela morreu, eu ficava toda noite sentada ao pé da escada esperando que ela chegasse dos jogos e falasse comigo, nem que fosse para me bater. Eu procurava maneiras de ainda ter ela perto de mim, foi quando eu comecei a fazer loucuras tendo apenas 9 anos, eu me queimava de propósito ou então me cortava.
- Por quê? - Anna Kariênina parecia tão chocada, que aquela sua capa de arrogância havia ido embora.
- A dor e o amor eram coisas que caminhavam juntos quando se tratava da minha relação com minha mãe, o amor era raro mas a dor sempre estava lá. Sempre. Então se eu sentisse dor, eu conseguia sentir minha mãe mais perto de mim. - Uma lágrima ordinária caiu mas eu logo a limpei.
- Ela morreu como?
- Overdose.
- Então por que chama ela de mãe, e não chama Paul de pai? Ela não era tão melhor que Paul. - Kariênina soa confusa.
- Porque, como eu disse, apesar da dor, ainda havia o amor. Ela não foi má o tempo todo, ela que começou a me incentivar a desenhar, antes de morrer. Lembro dos raros momentos bons com ela, mas jamais algum com Paul. Eu sou um fardo que Paul tem que manter vivo até os 21 anos, por obrigação. - Dou de ombros e olho novamente para o céu, fumando mais, Kariênina faz o mesmo.

  O silêncio caiu e eu quase senti como meu corpo levitasse de tão leve que me senti após desabafar, tudo aquilo que havia dentro de mim estava me sufocando, e nem a pintura conseguia ser o bastante.

- Meu pai foi preso acusado injustamente de assassinato quando eu tinha 10 anos, ele morreu na cadeia quando eu tinha 14 anos. Eu ia visitar ele todo fim de semana escondida com a ajuda dos Borges, jogavamos carteado e ele me perguntava como estava a vida com a nova família, mas era tão estranho para mim no começo estar em uma casa cheia de pessoas. Sempre foi apenas eu e ele, ele queimando a comida porque não sabia cozinhar, e chorava quando eu tinha que comer ela queimada assim mesmo, pois não tínhamos outra coisa. - Anna Kariênina solta um sorriso triste. - Lembro como se fosse hoje da última vez que lhe visitei na cadeia e ele fez aquilo que eu mais gostava, aquilo que nos unia. Ele fez uma trança de raiz no meu cabelo e disse: "Você fica linda de trança, Anna Kariênina." - Sua voz soou triste e eu engoli seco, não disse nada, apenas deixei aquilo me atingir.

  Anna Kariênina não era nenhum monstro sanguinário como eu achei no início, ela tinha cicatrizes intensas internas e externas assim como eu. Nem todos são totalmente ruins, todos temos nossas marcas e dores, acho que isso que nos torna humanos.

- Qual o seu maior sonho, Anna Elis? - Anna Kariênina dispara, enquanto ainda olhávamos as estrelas no céu limpo acima.
- Viver da minha arte.
- Isso não é um sonho, isso é um objetivo. - Anna Kariênina contesta rindo e eu sorrio também. - Me diga algo que você quer muito, mas acha impossível. - Penso por um instante e então algo queima dentro de mim.
- Uma casinha no Havaí, sempre achei muito lindo morar em um lugar onde ninguém poderia reconhecer. Eu ia ter alguém comigo, aquela pessoa que ia me completar todos os dias, eu ia estar pintando minhas telas para enviar as galerias de arte do mundo, e essa pessoa ia entrar em meu ateliê me trazendo uma xícara de chá. O mar na varanda a nossa frente levava tudo de ruim que houve em minha vida, e ali nasceria uma nova eu. - Minha boca conversa com meu coração e sai a coisa mais íntima que jamais contei a alguém, e estranhamente estou fazendo isso com Anna Kariênina.

  Where's My Love - SYML começa a tocar em nossos fones compartilhados e viro meu rosto a Anna Kariênina que ainda está com os olhos no céu.

- E você, qual o seu maior sonho, Anna Kariênina?
- Nunca tive um sonho, sempre um plano de vida.
- Todos temos sonhos. - Ela se vira para mim.
- Posso roubar o seu sonho. - Ela sorrir arqueando uma sobrancelha.
- Sonhos não se roubam, Anna Kariênina, sonhos se compartilham. - Sorrio.
- Então compartilhe o seu sonho comigo, Anna Elis. - Sua voz soa rouca e me sinto paralisada por alguns instantes.

  Nossos olhares não se separam e então percebo que estamos a poucos centímetros uma da outra, nossos ombros se tocam e meu corpo queima. Meu olhar involuntariamente cai a sua boca, ela era tão alinhada e fina, meus lábios se abrem e então meus olhos se arregalam ao sentir aquilo dentro de mim. Engolo seco e viro-me, saindo do edredom.

- Acho... Acho melhor eu ir dormir, amanhã ainda tenho faculdade. - Me levanto rápida e Kariênina faz o mesmo.
- É melhor entrarmos mesmo. - Ela então me entrega o edredom.

  Alguns se passam enquanto nos olhamos novamente e eu então movo minhas pernas para sair.

- Anna Elis. - Sua voz me chama e lhe olho novamente, sinto que Anna Kariênina quer me dizer algo, aquilo estava estampado em seu rosto. - Sinto muito por sua mãe. - É a única coisa que ela diz, mesmo meus institutos dizendo que não era aquilo que passava por sua mente.
- Sinto muito por teu pai, Anna Kariênina. - Sorrio levemente e então entro.
[...]

Continua...

Corpos em Chamas: A vingança de Anna Kariênina (Romance Lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora