⚜02⚜ HOJE A LUA ESTARÁ CHEIA (KAIRON)

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— Onde vocês estavam? — indagou meu pai, se aproximando. Eu não conseguia parar de encarar as três figuras por detrás dele. Meu irmão Alípio, abraçado a minha mãe, me olhava com reprovação. Não éramos ligados. Passávamos a maior parte do tempo disputando a atenção de todos.

— Eu... É... Estava muito quente. Fomos mergulhar... — respondi de mãos dadas a Laysla, que me olhava aflita.

— Não minta para mim! — gritou meu pai, me acertando um soco no olho. O impacto foi tão grande que senti puxar minha irmã enquanto caía, então a soltei. Imediatamente comecei a chorar. Isso nunca havia acontecido. — Já podem ir — ordenou aos monges. — Ele será castigado — completou, antes de caminhar para a porta e abri-la. Tentei me levantar e novamente se achegou, me chutando a barriga. Foi difícil respirar a partir desse golpe.

— Senhor Roberto, acha mesmo que iremos depois desse teatro? — perguntou o mais velho, com os dedos cruzados na frente do peito. Meu pai ficou em choque, me olhava com os olhos marejados.

— Ele terá o que merece... Vou chicoteá-lo, vou... Vou... — gaguejou ao respondê-lo, nervoso. Minha mãe se apressou e se debruçou sobre mim. Eu não sabia se me erguia ou permanecia fragilmente no chão. — Ele é uma criança, está aprendendo as coisas da vida. Por favor...

— O que deveria ter feito?! — reclamei com a voz alterada, me sentando. Laysla docemente abraçou meu pescoço.

— Por favor, deixe o meu filho em paz. Eu vos imploro. — Minha mãe alisava o meu rosto, em prantos.

— Ele matou um homem. Deve ser julgado pelos seus atos, segundo o mandamento de Deus, através da Igreja. Será levado conosco.

Meu coração estava acelerado, pois já havia presenciado alguns tipos de punições. E apesar da forma com que eu executei o homicídio naquela tarde, eu não tinha estômago para a maioria delas.

Engoli em seco, vendo que se aproximavam.

— Eu vou no lugar dele... — barganhou o chefe do lar, porém, foi ignorado. Todos gritavam enquanto me erguiam e me encapuzavam. A sensação de sair amarrado, tropeçando ao ser retirado de casa, foi traumática. Que julgamento eu teria?

— Foi culpa sua! Foi culpa sua! — Laysla gritava e eu não entendia o porquê. Mas logo depois ouvi o choro de Amice.

A garota me delatara?

— Eu não contei nada, Kairon... Eu juro — falava com dificuldade, pois chorava.

Após me debater, gritar, me ferir ao ser lançado sobre a carroça, me cansei e aceitei o destino: minha morte.

***

— Onde eu estou? Onde eu estou? — Sentia o cheiro de cera e fumaça. Um dos chinelos arrebentou durante a minha agitação. Agora era arrastado, com um pé descalço. Meus dedos ardiam, provavelmente estavam feridos. Entretanto o que eram dedos feridos, já que o resto do corpo brevemente os acompanharia? Comecei a chorar novamente, refletindo.

— Esse será seu quarto — disse um desconhecido, soltando minha mão, me empurrou ao chão. Fiquei prostrado por um tempo, antes mesmo de desensacar meu rosto. Tinha medo do que veria.

O cômodo era pequeno, paredes de pedras. Tinha uma porta de madeira fina e uma janela minúscula no alto. Se eu fosse uns dez centímetros mais baixo, não desfrutaria nem um pouco da vista. Deparei-me com o mar. Havia escutado o som semelhante ao de ondas, contudo, acreditei que fosse delírio.

Andei até uma cama, sobre a qual eu não caberia por completo. Apesar de 18 anos, tinha 1,84 metro de altura. Deitei, olhava para o teto abobadado, imaginando como era ser queimado vivo. Bufei.

Depois de muito sofrer por antecipação, surpreendentemente, peguei no sono. Logo fui acordado com as badaladas estridentes de um sino.

— Ainda está escuro — sussurrei, erguendo o olhar para o vão da janela.

— Exatamente — disse alguém, repousado em um banco no canto do recinto.

— Nossa mãe santíssima! — exclamei, me sentando, chegando para o mais longe possível, indo de encontro à parede. Não consegui enxergar suas feições. — Eu tenho direito a um julgamento. — Tremia.

— Jovem, se fosse julgado, certamente teria sido condenado à guilhotina — falou, calmo. Era um monge.

— O que é tudo isso, então? — Não compreendi. — É um sonho?

O homem alto careca se levantou, ficando com o rosto posicionado no facho de luz da lua que entrava pela grade. Tinha uma cicatriz envesada que saía da testa, passando pelo nariz, findando na mandíbula. Uma pessoa de fato estranha para uma autoridade espiritual.

— Está se perguntando como consegui esse corte na face? — debochou. Fiquei intrigado. O duelo entre saciar minha curiosidade e o medo de não permanecer vivo era intenso. Assenti, sério.

— Existem muitas coisas nesse mundo, além daquelas miseráveis bruxas que a Igreja cisma em apresentar na praça aos domingos. — A forma que pronunciava cada palavra transbordava um mistério cativante. — Aquele homem que esquartejou...

— Não esquartejei — interrompi sua fala, ofegante pela injúria.

— Estávamos à procura dele. O herege fazia parte de uma seita e provavelmente a menina seria o próximo sacrifício. — Caminhou pelo quarto em lentos passos. Fiquei boquiaberto. — Você deveria ser entregue à Inquisição, entretanto, será útil no nosso meio.

— E que meio é esse? — Por algum motivo, senti que não seria algo muito simples.

— Somos a Ordem dos Caçadores e você será meu aprendiz — finalizou, aconchegando-se de novo no mesmo banco baixo. Nada ergonomicamente correto para ele. Fiquei sem palavras. Achei uma maluquice. — O que acha?

— O senhor, quer dizer... Como devo chamá-lo?

— Senhor está de bom grado.

— O senhor lê mentes? Faz algum tipo de magia? — indaguei, preocupado. Não estava interessado no serviço, mas também não queria morrer.

— Se eu fizesse tal coisa, não estaria nesse monastério. Estaria sendo caçado. — Arqueou a sobrancelha extremamente cabeluda, parecia mais um rato. Que nojo! — E para sua sorte, garoto, eu te escolhi.

— E essa Ordem é uma espécie de Clã?

— Clã funciona como família, ou seja, não daria muito certo. Temos critérios sérios a seguir.

— O que acontece se alguém não quiser participar desse grupo? — indaguei.

— Sabe que eu não sei... Ninguém nunca rejeitou. — Fez bico, pensativo.

— Sério?

— Talvez por serem obrigados? Não sei... Prefeririam ser mortos pelo crime que cometeram? — zombou, roendo sua unha. Entendi a "indireta" direta. Semicerrou seus olhos verdes, que me amedrontavam. Respirei fundo.

— O que caçaremos?

— Bruxas, lobisomens, sereias, sugadores de sangue... Qualquer coisa diferente de nós — narrou apressado. Me acheguei na beira da cama, empolgado.

— E quando começamos?

— Hoje a lua estará cheia. — Sorriu, medonho. 

 

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MEU CAÇADOR E EU Where stories live. Discover now