🐟 CAPÍTULO 1: IMPRESSIONANTES ESCULTURAS DE LAMA 🐟

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Todas as criaturas que vivem no manguezal são prisioneiras da Ordem e precisam superar as injustiças do Progresso para sobreviver. Só há uma maneira de mudar isso: cedendo aos desejos do Caos.

Sábio Camarão

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O desejo do peixe teimoso mudou a ordem das coisas. Ele odiava ter que nadar junto ao cardume e estava cansado de ser apenas mais um peixe no mar. Por isso, decidiu que nadaria sozinho até os rios.

— Meu filho, água doce não é lugar de peixe pensante. — Alertou Iemanjá. Mas o peixe não queria conselhos, a teimosia estava encarnada em suas escamas.

Não foi fácil nadar contra a correnteza. Mais difícil ainda foi tentar respirar na água doce. Levou um dia inteiro para se acostumar com a grossura das águas de Oxum. E quando finalmente conseguiu, adormeceu.

Vítima do cansaço, lá estava o peixe e seu desejo, dentro da boca de um jacaré.

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Na escola, todos diziam que o pequeno Talilo tinha olhos de peixe morto. Tales de Lima Lopes era seu nome completo, mas odiava ser chamado assim. Durante a chamada, quando a Tia Laura insistia em chamá-lo pelo nome de batismo, o menino não pensava duas vezes antes de retrucar:

— Tales? Quem é esse? Meu nome é Talilo! — Dava um sorriso debochado e batucava o ritmo de alguma música do Chico Science, contagiando a turma toda com a vibe da anarquia.

Filho do Seu Galileu e da Dona Tassia, Talilo cresceu com os pés enfiados no manguezal de Afogados, um bairro lamacento da cidade do Recife.

Seu Galileu era o melhor pescador da região, e tentou ensinar tudo o que sabia ao filho. Porém, mesmo depois de passar meses praticando, Talilo não conseguia sequer abrir uma rede. Para Dona Tassia, a falta de aptidão do menino não era um problema, pelo contrário, ela queria que Talilo estudasse para ser "alguém na vida". Galileu, por outro lado, não conseguia lidar com a própria frustração. Queria muito ter um filho pescador.

E guiado pelos desejos conflitantes de seus pais, Talilo tornou-se um adolescente cheio de pensamentos caóticos.

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Peixe que dorme, o jacaré come. Sobraram apenas as espinhas e a alma. Sim, a alma. Se um peixe tem desejos, é porque tem alma. O problema era encontrar um lugar onde aquela alma pudesse transcender.

Iemanjá é acolhedora, mas também tem sua face furiosa. Ela não aceitou que a alma de seu filho peixe voltasse para o mar.

Oxum, bela e tranquila, estava ocupada demais cortejando a própria imagem refletida em seu espelho dourado. Não quis lidar com tamanha rebeldia.

Então a alma do peixe peregrinou em busca de um refúgio caótico.

A peregrinação durou alguns dias e algumas noites, até que, na última noite, olhou para o horizonte aquático e pensou que jamais conseguiria transcender. Mudou de ideia quando sentiu o aroma inebriante do manguezal.

A água não era doce, nem salgada. Nem rio, nem mar. Uma mistura de muitas cores psicodélicas e ritmos pulsantes. Havia camarões, caranguejos e outros peixes, além de uma exposição subaquática de impressionantes esculturas de lama.

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Talilo não tinha mesmo talento para pescar, mas dominava a arte de modelar a lama do manguezal. Ele aprendeu sozinho a extrair argila do solo, e tinha orgulho da sua pequena coleção de esculturas. Dona Tassia e Seu Galileu já não eram tão orgulhosos assim. Afinal, quando Talilo passava muito tempo criando arte, pescava e estudava menos. A única pessoa que apoiava o hobby do rapaz era Tia Laura, sua ex-professora, que desde os tempos de escola, construíra uma íntima relação de amizade com Talilo.

Outra arte que o rapaz dominava era a de vender. Ele saía de casa de segunda à sexta-feira, sempre às nove da manhã, com o bagageiro da bicicleta cheio de peixes, camarões e caranguejos. Pedalava sozinho até o mercado de Afogados para oferecer a mercadoria fresquinha às peixarias.

Apesar de ter os olhos de peixe morto, Talilo tinha boa lábia e também um sorriso serelepe que sempre transparecia confiança. O físico de atleta, resultado do trabalho braçal, também ajudava a atrair olhares de possíveis compradores. Mas não gostava de fazer aquele tipo de venda.

Quando percebia que estava sendo cortejado por alguém, cantava para desviar a conversa, porque não tinha interesse na paquera. Queria apenas vender seu peixe.

— Peguei um balaio fui na feira roubar tumate e cibola, ia passando uma véa pegou a minha cenoura. Aê, minha véa! Deixa a cenoura aqui, com a barriga vazia não consigo dormir! — Talilo cantava acelerado para não ouvir a petulância das freguesas inconvenientes que objetificavam seu corpo.

Costumava vender tudo antes da hora do almoço. Sob o sol do meio-dia, pedalava de volta para casa com as caixas vazias e o bolso cheio. Sempre era recebido com um abraço de seu pai. Depois de tomar um banho de cuia, se sentava à mesa para comer o saboroso feijão de Dona Tassia.

Mas naquela quinta-feira chuvosa do dia 11 de junho de 2009, não houve abraço, nem feijão. A pequena casa em que morava estava vazia. Foi até o quintal, que era o próprio manguezal, e viu que a maré estava alta. A tempestade não dava trégua.

— Painho! Mainha! — Gritou, mas ninguém respondeu.

Preocupado, Talilo enxugou o rosto com a barra da camisa. Esfregou bem os olhos, tentando enxergar melhor o horizonte.

Avistou o barco de pesca da família ao longe. Nenhum sinal de seus pais. A embarcação estava emborcada, sendo arrastada pela forte correnteza.

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AFOGADORUM - O Dono do MangueWhere stories live. Discover now