Capítulo 6

4.7K 567 61
                                    

Chegamos a conclusão de que não seria uma boa ideia eu usar a minha magia até que o feitiço fosse quebrado. Eu continuei esperando por julgamento ou repreensão, porém, recebi conforto e ajuda.

A fogueira feita com corpos estala na minha frente, Azriel está ao meu lado, perto o suficiente para que suas asas impessam a neve e o vento de chegar até mim.

-Se eles estão te rastreando pela sua magia é provável que estejam a caminho neste exato momento. Nós temos que nos apressar.

Eu me viro para encara-lo. Não entendo como ele pode querer me ajudar depois de ver o que eu fiz. Se ele ao menos soubesse que aquilo não foi nem metade do que eu já fui capaz, do que eu sou capaz... Penso em contar tudo de uma vez para ele. Dizer quem eu fui, já que não sei quem eu sou agora. Várias imagens passam pela minha cabeça e o buraco ameaça voltar a me corroer, estremeço quando isso acontece, mas ele logo começa a diminuir quando as asas de Azriel se fecham mais ao nosso redor.

-Você está com frio? Temos tempo para que possa se agasalhar melhor.

Continuo olhando seu rosto, o cabelo bagunçado cai sobre a sua testa, enquanto sangue e terra salpicam suas bochechas. Levanto a mão e limpo uma manchinha ao lado de sua boca. Como é possível que ele consiga tapar o buraco que há anos ameaça me corroer? Ele me olha com surpresa e eu tiro minha mão rapidamente.

-Eu estou pronta para ir agora.

Ele assente, então segura forte a minha mão e atravessa. Nós estamos no escuro e de repente não estamos mais. Há muita luz e eu fecho os olhos com força, abrindo e fechando algumas vezes para me acostumar com a claridade.

Vejo uma casa quase escondida por árvores, ao longe eu ouço vozes e risadas alegres, me viro procurando a direção e me deparo com o lugar mais lindo que eu já vi. É uma cidade. Tem um rio, casas de todas as cores, crianças brincando na calçada, feéricos e Grão-Feéricos andando tranquilamente pela rua, e montanhas, quase escondidas no céu limpo e lindo. Eu nunca havia visto um lugar assim.

-Que lugar é esse?

-Essa é a Corte dos Sonhos, também conhecida como Velaris.

-Nunca ouvi falar.

-É mais conhecida como a Corte Noturna.

Meu coração começa a bater mais rápido, minhas mãos tremem e sinto minhas pernas bambas. A Corte Noturna. Eu não devia estar ali. Eu jamais deveria pisar nesse lugar. A mão de Azriel aperta a minha, eu a solto, me afastando. Viro o olhar para as árvores, me apoiando na mais próxima. Respiro fundo.

-Eu não posso ficar. Eu não deveria estar aqui.

-Qual é o problema? - Ele já está atrás de mim.

Conta! Grito pra mim mesma. Abro a boca e tento forçar as palavras a saírem, mas nada. Eu estou cometendo um erro. Eu já errei desde o momento em que aceitei a hospitalidade do macho às minhas costas.

-Você não tem com o que se preocupar. Nada nem ninguém alcançará você aqui.

Como eu poderia explicar que essa não era a minha preocupação? Como eu explicaria que ele acabara de colocar o perigo dentro daquela cidade cheia de pessoas inocentes. Apoio a testa na madeira, sentindo a aspereza e o frio contra a minha pele, minhas mãos trêmulas agarradas ao tronco.

-Venha. Vamos entrar, você está tremendo.

-Eu não posso...

O peso das últimas horas me atinge, passando rapidamente pela minha cabeça, que doi como se uma adaga estivesse cravada a ela, a mesma adaga que eu perfurei tantas vezes o homem há poucas horas atrás.

Me ajoelho, mais uma vez colocando tudo para fora. Uma mão firme segura meu cabelo enquanto a outra acaricia minhas costas. Eu sempre odiei isso. O modo como meu corpo reagia as coisas erradas que eu era obrigada a fazer. Vomito até não ter mais nada para vomitar. Permaneço no chão, deixando toda a culpa me atingir, me permito sentir a dor na costela, o sangue sujando minhas vestes e meu rosto, minhas unhas machucadas e cravadas na terra, a mão de Azriel nas minhas costas. E nem mesmo assim eu consigo chorar. Foi mais uma das coisas que foi tirada de mim.

-Acha que consegue se levantar?

Assinto, forçando minhas pernas a trabalharem, coloco uma das mãos na costela, tentando evitar a dor. Ele vem ao meu socorro antes mesmo de as minhas pernas falharem. Me apoio em seus braços, sem conseguir dar sequer um passo, ele caminha cuidadosamente comigo até a casa.

Eu me surpreendo com o contraste de cores, enquanto o lado de fora é escuro, o lado de dentro é claro e aconchegante. As paredes brancas sem nenhum quadro na parede, a lareira grande entre duas poltronas bege e um sofá na frente da mesma cor, que é onde ele me deita, se ajoelhando ao meu lado.

-Eu preciso ver a sua costela agora, tudo bem?

Nego freneticamente com a cabeça, me lembrando da imagem no espelho, de cada corte e cicatriz espalhado pelo meu corpo. Compreensão ilumina seus olhos e eu viro a cabeça para outro lado, procurando evitar aquele olhar.

-Hey... - Azriel segura delicadamente meu queixo entre o polegar e o indicador, puxando meu rosto para que eu possa encara-lo - Todos nós temos cicatrizes - Ele me estende suas mãos, deixando que eu veja as cicatrizes ali  - Eu as considero como provas de o quão forte nós somos, de como tentaram, e falharam, em nos destruir.

Passo as pontas dos dedos por cada marca e cicatriz, me afastando rapidamente quando ele estremece. Marcas de queimadura. Ódio letal enche meu corpo quando suas palavras fazem sentido para mim. Fizeram isso com ele. O machucaram assim como fizeram comigo. Seguro um rosnado de fúria.

-Quem fez isso com você? - Pergunto com o maxilar trincado.

As sombras a sua volta sussurram em seus ouvidos ao mesmo tempo em que se aproximam de mim, ele acaricia meu rosto antes de afastá-las com a mão e se apoiar em seus joelhos logo depois.

-Eu respondo a sua pergunta e você responde uma minha, ok?

Raiva ainda corre pelas minhas veias quando eu aceito sua proposta, os métodos mais dolorosos possíveis de tortura passando pela minha cabeça. No momento eu não me importo com qualquer que seja a pergunta que ele me fará depois.

-É uma longa história, mas tudo se resume a minha infância sendo em uma cela escura, planejada pela minha madrasta, e torturas pela parte dos meus irmãos postiços.

Fecho os olhos, imaginando uma versão menor e mais nova de Azriel presa em uma cela como a minha, sendo torturado assim como eu fui. A imagem me deixa ainda mais furiosa.

-Eles tiveram o que mereciam. - Abro os olhos e ele abre um sorriso de lado para mim. - Eu entendo o que fez hoje. Não a julgo ou culpo, você certamente tinha seus motivos. Eu mesmo adoraria ter matado lentamente aquele homem se você me dissesse que não queria fazer. - O macho me olha atentamente, o mesmo ódio de horas atrás brilhando em seus olhos. - Todos temos segredos, Lucille. Todos fizemos coisas que não nos orgulhamos, eu fiz e acredito que você também tenha feito. Todos passamos por coisas horríveis e que infelizmente nos seguirão para sempre, mas nós podemos enfrentar esses traumas e aceita-los como parte do passado. Não podemos deixar que eles nos impessam de viver.

Eu não tenho nada para falar, suas palavras me acertaram em cheio, me permito absorve-las, tendo a certeza absoluta de que ele está certo. Mas eu seria forte o suficiente para enfrentar meus próprios traumas e sair bem? O modo como Azriel me olha deixa claro que não importa o quanto seja difícil, eu não estarei sozinha. Não mais.

A Corte de Sombras e EscuridãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora