Capítulo 37

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A casa de Azriel parece pronta para me receber de braços abertos quando eu atravesso. Minhas pernas tremem com a exaustão e eu quase caio novamente de joelhos no chão, sou amparada por mãos fortes e femininas que passam meu braço por seus ombros.

-Nestha? - Odeio como minha voz sai embargada.

-Vi o modo como você estava encolhida contra a parede, imaginei que acabaria fugindo para cá mais cedo.

Nestha abre a porta e me leva direto para o banheiro. Não protesto quando ela solta meus cabelos ou tira minhas roupas, não a afasto quando me guia até a banheira e me ajuda a entrar.

-O que aconteceu em Hybern? - Se encosta na parede de frente para mim.

-Nós esperamos até que os soldados aparecessem e então eu tinha um plano. - Sinto a água quente queimar minha pele e aceito de bom grado. - Queria matar a maioria deles para evitar outra batalha. - Esfrego as mãos no rosto, tirando o sangue. - Perdi o controle, não tenho ideia de quantos eu matei.

-Como se sentiu quando perdeu o controle? Sentiu algo?

-Eu me senti bem, meu corpo estava gostando daquilo, ficando mais forte. - Tiro a mão do rosto. - Como se eu estivesse me alimentando.

Ficamos em silêncio por tanto tempo que chego a pensar que ela foi embora, mas apenas me estuda e respira fundo antes de falar:

-Eu não costumo usar meus poderes.

-Por que não? - Alcanço a bucha para começar a me lavar.

-Eu também perco o controle, como se essa coisa dentro de mim assumisse. - Dá de ombros mas posso ver o medo em seus olhos. - Cassian e eu estamos trabalhando nisso.

Volto a ficar em silêncio, focando em tirar o sangue seco do meu corpo. Uma dúvida brota na minha cabeça.

-Por que você veio até aqui?

-Eu já disse, imaginei que você viria...

-Isso eu já sei. Quero saber por que se importou?

-Quando nos conhecemos eu vi algo em você, algo que lembrava a mim mesma. - Cruza os braços. - Seu queixo estava quase mais erguido que o meu e mesmo assim eu consegui ver algo em seus olhos que eu tinha certeza já ter visto algumas vezes enquanto me olhava no espelho. Seus olhos estavam cheios de dor, medo, auto aversão... - Faz uma pausa. - Ainda estão assim.

Desvio o olhar e encaro a água da banheira, observando meus dedos através dela.

-Você está fazendo algo que eu fiz, está se afastando, se isolando. Até mesmo do seu parceiro.

-Eu não estou isolando Azriel.

-Ah não? Então por que ele não está aqui? Duvido que tenha te visto sair. Ele estava com você quando matou aqueles soldados? - Não respondo. - Ele sabia o que você faria? - Mais uma vez eu não respondo.

-Eu não sei como... - Gesticulo com as mãos tentando encontrar as palavras certas. - Não seu como deixar entrar. - Uso as palavras de Rhysand. - No pouco tempo que cheguei, Velaris quase foi invadida, e agora a rainha de Hybern está ameaçando começar outra guerra por que eu fugi. Eu fugi... - As palavras ecoam em minha mente, me fazendo refletir. - Como eu sempre faço. Estou trazendo problemas para vocês, como eu poderia "deixar entrar"?

-Está enganada, Lucille. Nós sempre tivemos problemas, mais do que você pode imaginar, mas nós enfrentamos juntos. - Descruza os braços e se senta no chão, suspira. - Eu fui arrastada para dentro do Caldeirão pelo rei de Hybern, deixei que Elain fosse arrastada, ele me transformou em algo que eu não queria. É claro que não deixei barato, roubei algo do Caldeirão, esse poder. - Os olhos de Nestha brilham e por um momento penso ter visto o poder ali. - Enfrentamos a guerra e apesar de ter matado o homem que fez isso comigo e Elain, não senti paz ou conforto algum, eu comecei a me deteriorar. Afastei qualquer um que chegasse perto de mim, me afundei em bares, cachaça e homens porque eu não me achava digna de estar entre eles, minha família, eu não sabia como deixá-los "entrar", achava que não queria. - Me encara um tempo antes de continuar. - Vi meu pai ser assassinado pelo mesmo homem que nos deu a imortalidade e apenas assisti. Me apeguei a esses traumas e não conseguia me libertar. - Por um momento acho que ela vai chorar, mais se recompõe. - Eu não estava tentando, estava sozinha, mas a partir do momento em que permiti que minha família me ajudasse, que entendi que eu queria mudar, com um passo de cada vez, o fardo ficou mais fácil de suportar, porque eu não o carregava mais sozinha. - Seus olhos queimam contra os meus. - Vim até aqui porque posso e quero te ajudar a carregar o seu fardo.

Volto a me concentrar na banheira. Lavo meus cabelos enquanto penso em tudo o que Nestha me falou e revelou. Quando termino, suspiro e sustento seu olhar.

-Também vi alguém da minha família ser assassinada, na verdade, a única pessoa da minha família. Minha mãe. - Meus dedos tremem e eu os escondo na água. - Também fui obrigada a me tornar algo que não queria e, por coincidência ou não, pelo mesmo homem. - Rio sem humor. - Fui espancada, estuprada e torturada até que me tornasse o que ele queria, uma arma. Matei muitas pessoas... Inocentes. - Aperto os olhos com força. - Elas imploraram e eu não parei, choraram e gritaram, e mesmo assim, entreguei suas cabeças ao rei de Hybern. Os soldados hoje também imploraram. Antes eu não tinha permissão para parar, não podia, e agora... Eu não queria. - Paro de falar. - Eu sou algo ruim.

-Por que você não queria, Lucille? Era você ou seus poderes?

-Ambos, mas mesmo antes de entrar na barreira eu queria todos mortos. - Engulo em seco.

-E por quê?

-Porque eu sabia que se ao menos um deles vivessem, se juntaria ao exército da rainha e marcharia até aqui. Até vocês.

-Você acha mesmo que "algo ruim" seria capaz de enfrentar seus próprios traumas e pesadelos para proteger outras pessoas? - Seu olhar permanece fixo em mim. - Você não é uma pessoa ruim, Lucille. Tinha tudo para ser, mas não é. - Se levanta e sorri para mim. - Eu gosto de você, isso não é pouca coisa.

Apesar de tudo, sorrio sinceramente para ela. A porta se abre de uma vez e Azriel aparece, seus olhos passeiam pelo meu rosto e corpo, procurando possíveis ferimentos e então surpresa cobre suas feições quando percebe Nestha ali comigo.

-Não se preocupe. Ela ainda é a sua parceira. - Pisca para mim quando caminha até a porta. - Ainda.

O encantador de sombras rosna e ela abre um sorriso bestial, mostrando os caninos. Quando a grã-feérica some, o illyriano vem até mim, se ajoelhando ao lado da banheira.

-Você me assustou. - Sussurra. - Em Hybern.

-Por quê?

-Eu estava observando o outro portão, nada acontecia e então gritos ecoaram por toda a floresta. Procurei por você nas sombras das árvores e não encontrei, puxei o laço várias e várias vezes e não tive resposta, e quando te encontrei você estava... Diferente. - Acaricia minha bochecha com as costas dos dedos. - Achei que tivesse perdido você. Não fisicamente, mas mentalmente. - Coloca meu cabelo atrás da orelha com a mão livre.

Pego sua mão, dou um beijo na palma e a coloco em minha bochecha. Fecho os olhos, aproveitando seu calor.

-Me desculpa. - Sussurro.

Azriel coloca a outra mão também em minha bochecha e aproxima o rosto do meu, colocando testa contra testa.

-Não me deixe de fora de novo. - Pede. - Por favor.

-Nunca mais.

A Corte de Sombras e EscuridãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora