Acordou meio grogue e cambaleando se apoiou numa mureta. Olhou para baixo e sentiu vertigem ao perceber que dali não era possível ver o chão. Estava no topo da muralha.

Não demorou muito para que um alçapão se abrisse no chão logo a sua frente, de onde saiu Jorge Mansur, ainda trajando a máscara de Nascár.

-Acho que você não vai querer pular daí, minha filha. Estamos a 25 metros do chão. A queda é longa!

-Aqueles meninos todos no estábulo...

-A essa hora já viraram cinzas! - disse Jorge com uma tranquilidade assustadora.

-Eram apenas garotos! - respondeu Marcela com lágrimas nos olhos.

-É isso que você acha? -perguntou Jorge com um sorriso irônico. -Hoje eles podem parecer inofensivos, mas daqui alguns anos quatro destes mesmos garotos que você viu no estábulo seriam treinados para nos perseguir. Seriam iguais aqueles que mataram a sua mãe. Assassinos inimigos do nosso povo.

-Aqueles garotos são Sentinelas do Leão?

-Ainda não. Mas poderiam se tornar. Você precisa entender como são os Sentinelas... Só existem quatro deles! Mas eles sempre se renovam! Quando o último sentinela morre, uma nova geração é formada.

-Poderiam se tornar? Você está dizendo que matou todos aqueles garotos apenas porque acreditava que quatro deles se tornariam Sentinelas no futuro?

-Para entender a lógica disso, você precisa saber que ninguém nasce um Sentinela. Eles são observados desde a infância e escolhidos quando completam 18 anos. Até o momento em que são convocados pelo Leão, jamais ouviram falar sobre a batalha milenar ao qual irão dar prosseguimento.

-Mas quem é o Leão? -perguntou Marcela intrigada.

-Ele foi o primeiro dissidente. Viveu aqui na ilha há mais de mil anos. Naquela época, todos que aqui nasciam eram imortais. Mas ele não queria fazer parte do nosso povo e desafiou a cobra sagrada para um duelo. E surpreendentemente, venceu o combate. Com isso adquiriu o direito de fugir da ilha mas deixou Nascár à beira da morte. Para salvar a cobra sagrada, nossos ancestrais fizeram o primeiro sacrifício. Abriram mão da própria imortalidade.

-E o Leão por não ter feito parte do sacrifício, manteve a sua imortalidade. - concluiu Marcela.

-Exatamente. E vem perseguindo nosso povo desde aqueles tempos, geração após geração.

-Mas então se o Leão é a raiz desse conflito milenar, não seria mais correto aprisionar ele ao invés de sacrificar garotos inocentes simplesmente por conta de uma suspeita não comprovada de que podem vir a se tornar Sentinelas no futuro?

-Isso só seria possível se soubéssemos quem ele é. Sua identidade é um mistério que ninguém jamais conseguiu decifrar. Até mesmo os Sentinelas nunca o viram.

-Você está dizendo que Os Sentinelas respondem a um total desconhecido?

-Estou! Ele pode ser qualquer um! Pode até mesmo viver entre nós aqui na ilha, nos espionando, sem nunca ter sido desmascarado.

-Isso seria muito improvável! Ninguém conseguiria se esconder assim por tanto tempo.

-Não é tão improvável quando você começa a se perguntar o que faz um dos nossos trair o seu próprio povo e debandar para o lado do Leão!

-O meu avô!

-Eu sei o que está lhe intrigando! Se o seu avô era um Sentinela, não é isso?

-Sim!

-Quando seu avô se tornou um dissidente, ele já não tinha mais idade para se tornar um Sentinela. Para uma nova geração ser formada, todos os membros precisam ter 18 anos. E a geração seguinte só surge quando o último membro da geração anterior morre. Quando o homem que matou sua mãe morreu, deu-se início ao processo de formação da próxima geração de Sentinelas. E esse processo pode levar anos para ser concluído pois tudo começa na infância dos candidatos. Centenas de crianças são observadas em segredo, crescem sem saber que cada um dos seus passos é monitorado, e a grande maioria deles permanece o resto da vida na ignorância. Apenas quatro deles descobrem a verdade. Os quatro escolhidos que recebem o chamado do Leão.

-E como o Leão consegue monitorar os passos de tantos menores ao mesmo tempo?

-Através dos olheiros. Pessoas que sabem da existência do Leão e defendem os seus valores. Eles são como espiões que vivem à espreita, vigiando os candidatos e repassando todas as informações para o Leão. Todo Sentinela foi descoberto por algum olheiro. E seu avô foi um deles.

-Por isso vocês o vigiavam!

-Na verdade não era ele que vigiávamos! Era você! Seu avô estava lhe criando para se tornar uma Sentinela. E isso eu não podia admitir! Você é filha de Jorge Mansur. Minha filha! Nasceu para seguir o meu legado! Ser a líder do nosso povo!

-Então foi tudo minha culpa! Foi por mim que vocês o mataram! - disse Marcela com olhos de cólera.

-Admito que a morte do seu avô foi muito conveniente para nossa causa. Mas nós não o matamos.

-Mentira! Mataram sim! Agora tudo faz sentido! Tem algo nessa história que não se encaixa! Como você se tornou o grande líder de Nascár sem nunca ter sido submetido ao rito de passagem? Sem ter sacrificado o próprio pai? E a maior de todas as perguntas, como você adquiriu o direito de vestir essa máscara hedionda que agora cobre a sua cabeça? Só existe uma resposta possível! Matando o vovô! Afinal devia ser muito humilhante para o grande Jorge Mansur estar impedido de atravessar a muralha. Que grande líder é esse que não podia sequer participar dos rituais sagrados de seu povo?

-Você está enganada. Eu nunca dependi da morte do meu pai para usar a máscara. Esse direito me foi concedido pela própria cobra. O líder do nosso povo que me antecedeu não tinha filhos. Por conta disso não foi sacrificado como prega a tradição. Morreu sem deixar um herdeiro de seu legado. Quando isso acontece, qualquer um na ilha pode se candidatar ao posto. Éramos cinco candidatos. Fomos confinados na jaula de Nascár. Os outros foram devorados pela cobra, um a um. E apenas eu fui poupado! Você entende? Entramos naquela jaula já sabendo que quatro de nós não sairiam de lá vivos. E eu fui o escolhido! Comigo deu se início a uma nova linhagem de líderes do nosso povo. Uma linhagem que você deve dar prosseguimento.

-Eu não sou uma de vocês! Eu sou neta do meu avô! E se um dia eu receber o chamado, irei assumir o destino que meu avô sonhou para mim! Serei uma Sentinela do Leão!

-NUNCA MAIS DIGA ISSO! -gritou Jorge enfurecido! -Você é uma de nós e sempre será! Está no seu sangue!

-O mesmo sangue que corria nas veias do meu avô! -respondeu Marcela com firmeza.

-O que você quer é sair da ilha? Então é disso que você vai precisar. -disse esticando o braço direito para mostrar um amuleto de prata com a imagem de Nascár que guardava no bolso. -A ilha não é um lugar de onde qualquer um possa sair quando bem quiser. Para sair daqui é preciso ter a autorização do líder. Sou eu que digo quem pode sair e quando deve voltar. E para embarcar no navio, é preciso carregar esse amuleto no pescoço.

-Eu vou embora dessa ilha, custe o que custar! -afirmou Marcela avançando com valentia, tentando arrancar a força o amuleto de suas mãos.

-Então você acha que é capaz de me enfrentar? -provocou Jorge.

-Eu só quero esse amuleto! -disse Marcela puxando a mão de Jorge com vontade.

A lembrança do que aconteceu a seguir assombraria a garota nos 3 anos seguintes. No instante em que o amuleto foi arremessado ao ar, Marcela correu para apanhá-lo e empurrou o pai para que saísse de sua frente. Jorge se desequilibrou, tropeçou na mureta e despencou do alto da muralha. Assustada, a menina se apoiou na mureta e desistiu do amuleto, que desapareceu no meio da neblina, em queda livre.

Os Sentinelas do LeãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora