Marcada (Mare)

215 7 4
                                    

Todas as pessoas têm uma relação com algum elemento da natureza. Mas, a maioria delas não consegue entender a ligação e acaba ignorando seu chamado. Outras, sentem até demais. Causando um vazio dentro de si que só pode ser preenchido com o entendimento das forças naturais que regem o mundo externo e interno.

Foi em um desses momentos de epifania, durante o chamado em uma tempestade, que fui atingida por um relâmpago que me levou para outra dimensão.

Tinha ouvido histórias sobre o lendário Yggdrasil, e agora, o bilenar carvalho que ligava os nove mundos se estendia gigantesco diante de mim. Flanqueado por nove portais que cintilavam em cores diferentes, a árvore ficava no centro de um pedaço material no meio do universo.

"Deixe seu nome, deixe sua marca, a casca é a pele, o sangue é a seiva. Seja minha e serei seu, abra a porta do seu mundo e outras oito se abrirão. Descubra que não está sozinha, filha do trovão. Thor te convocou, aceitas o chamado?"

As palavras ecoaram na minha mente, a árvore estava me chamando. Só quando cheguei mais perto notei que seu imponente tronco estava marcado por entalhes esbranquiçados, desenhos e palavras que adornavam a casca amadeirada.

Tudo que eu sabia tinha sido obtido através de histórias contadas por bardos enquanto me esgueirava em tavernas na busca de restos de comida ou uma mesa de jogos na qual poderia trapacear para ganhar uns trocados. Nas falas de druidas que viajam pelas cidades contando histórias em praças públicas. Ou durante as festividades, como o da colheita ou dos solstícios, nos quais, por algumas horas, eu era tratada como um ser humano.

Mas, eu estava diante do Yggdrasil e ele tinha me chamado, assim como, teoricamente, o grandioso Thor, deus do trovão. Senti a corrente do raio que me atingiu eletrizando meu corpo enquanto colocava a palma sobre as palavras entalhadas no tronco. Elas pareciam desenhos elaborados perante meu olhar ignorante.

Dezenove anos e só reconhecia algumas letras, as que compunham meu nome.

O carvalho disse para deixar minha marca e, quando pensei nisso, uma adaga se materializou dentro do meu punho. O toque frio do metal me trouxe de volta dos devaneios. Talhei "Mare" toscamente em um pedaço que ainda não tinha sido reclamado e esperei enquanto a seiva quente e espessa caia sobre meus dedos.

Nada aconteceu.

"Deixe seu nome, deixe sua marca, a casca é a pele, o sangue é a seiva", ecoou na minha cabeça como um lembrete. O Yggdrasil queria meu sangue, assim como a seiva que agora se acumulava no nós dos meus dedos. Não hesitei. Durante anos eu não tinha sido ninguém e agora poderia ser a filha do trovão. E isso tudo poderia ser uma ilusão ou um sonho, ou a própria morte, mas era alguma coisa. E, para uma pessoa que nunca teve nada, era o suficiente.

Abri um corte na palma da minha mão e encostei no nome escrito no tronco, as farpas recentes afundaram em minha pele abrindo mais o machucado que sangrava copiosamente, misturando-se com a seiva. Uma dor lancinante tomou conta do meu antebraço enquanto quatro letras eram marcadas como brasa em minha pele.

Um nome. Assim como eu tinha deixado o meu cravado na pele da árvore.

O processo doloroso cessou rapidamente seguido por uma onda de alívio enquanto eu examinava atônita a cicatriz que agora adornava minha derme. Não percebi quando se aproximou, apenas senti uma mão tocar levemente o meu ombro e, quando virei, lá estava ele.

Quase humano se não fosse pelos olhos de um rosa brilhante e o cabelo despretensiosamente bagunçado que ia de do turquesa ao verde, como as lindas luzes do norte, que tinha visto alguns anos antes em um inverno excepcionalmente gelado.

"Estou te esperando faz um tempo", disse me encarando. Quando não respondi, ele gentilmente segurou o meu pulso e me guiou para um dos portais que reluzia em uma cor parecida com a de seus olhos. "Vamos, já estamos atrasados", disse se virando para mim, falando de uma forma calorosa e animada, como se fizéssemos parte de algo muito maior e importante, naquele momento tudo que eu queria era confiar nele.

"Eu sou Gale, a propósito.", disse enquanto desaparecia pela entrada do túnel brilhante.

Gale. Um nome. Quatro letras.

Demoraria um tempo até eu descobrir que o nome escrito no meu braço na verdade era Loki.

O Chamado do TrovãoWhere stories live. Discover now