Capítulo Único

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Era uma vez uma sereia. A água era seu lar desde que se entendia como viva: sua memória mais antiga era de ser envolvida por ela como por um útero, protegida. Sequer houve uma transição entre útero e água? A sereia não saberia dizer.

No mundo aquático, viver e nadar eram conceitos que se confundiam em uma forma de existência. Com braços estendidos à frente do corpo, ela ondulava como se fosse ela própria uma onda. Escondida no fundo do mar com peixinhos como suas testemunhas, a sereia sentia a magia fluir pela sua corrente sanguínea. Sua magia.

Todavia, apesar de ser mágica, essa não era a característica que a sereia mais gostava a respeito de si mesma. Não era sua maior qualidade. Não, essa era outra: era sua voz. Ela possuía uma voz como poucos podiam dizer ter. Quando abria a boca todos à sua volta paravam para escutar, fisgados. Era um dom, com certeza. Seu maior orgulho.

Um dia, a sereia estava acima da superfície, tranquilamente flutuando ao sabor das ondas enquanto aproveitava o calor do sol. Seu cabelo secava com o vento, e o gosto de sal na boca estava começando a lhe dar sede, então ela pensava em como logo era hora de ir embora. Foi quando ela avistou um homem. Um homem afogando-se.

Então a sereia agiu rápido. Foi até o homem, passando o braço dele sobre seus ombros, e nadou pelos dois, usando o vigor que tinha de sobra naquele corpo que tinha nascido e crescido dentro da água. O homem viveu, graças a ela. E já na areia, ele se apaixonou. E ela se apaixonou de volta. Havia encontrado seu príncipe encantado.

Porém eles não podiam ficar juntos, não enquanto a sereia vivesse no oceano. Ele precisava dela no seu mundo. E o que quer que fosse necessário para ficar com ele, a sereia estava disposta a sacrificar, pensando que era assim que se amava. Mesmo que tivesse que deixar de ser sereia. Mesmo que tivesse que abandonar seu lar. Mesmo que tivesse que, por fim, não ter mais voz.

Ela não percebeu. As irmãs tentaram avisá-la, tentaram levá-la de volta para casa, no entanto ela não deu ouvidos. Estava com o príncipe, e isso era tudo que importava. O que ela seria sem ele? Ter abandonado a água lhe parecia um caminho sem volta, e ela já não lembrava mais como usar a voz como fazia antes. Mas tudo bem, porque contanto que ele estivesse feliz, ela estava feliz.

E no entanto, ela não estava feliz...mas não sabia ainda. Não sabia ainda que aquilo não era seu final feliz. Não tinha percebido. Que não estava em um conto de fadas, mas em um relacionamento tóxico. Que não estava tudo bem em ter que abandonar seu emprego de mergulhadora e ir morar com ele, ela que nasceu dentro da água num parto humanizado e continuou voltando todas as vezes que pôde. Que não era razoável ter que sufocar sua voz para estar com ele, ela que nunca soube cantar, porém falava de uma maneira que sempre fazia todos escutarem, uma palestrante natural.

Ela não tinha percebido ainda que precisou abandonar todas as melhores partes de si para estar em um relacionamento com aquele homem que nunca tinha sido nem príncipe nem encantado, porém acabou se dando conta, eventualmente. Lembrou de como costumava ser uma sereia. De como costumava ser mágica.

E então a sereia reencontrou-se. Abriu a caixa com a roupa de mergulho no fundo do armário, e essa foi a primeira coisa que colocou na mala quando foi embora. Ela voltou para o oceano, onde se sentia em casa mais do que em qualquer outro lugar no mundo. Então ela soube: tinha a revolta do mar dentro de si, e jamais a abafaria novamente por qualquer outra pessoa.

E a sereia viveu feliz para sempre.

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