Prólogo

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Acordar naquela noite foi algo que me deixou completamente assustada. Eu não sabia como iria ser quando abrisse os olhos; se pudesse escolher, não teria aberto.

Uma explosão de luzes entrando por aquela janela velha quase me cegou. A lista telefônica aberta em cima à mesa de madeira estava com todas as folhas soltas. Meu quarto era mais bagunçado do que eu lembrava de um dia ter o visto. Mamãe gritou na cozinha. Uma voz me chamou do lado de fora, mas a janela estava enterrada. Um choro me fez virar para todos os lados possíveis, mas eu não sabia de onde ele vinha. Chorei baixinho enquanto corria para a cozinha. Mamãe chorava e gritava, me mandando voltar para o quarto. Fiz o que ela disse, eu estava com medo.

-Saiam dai! - alguém gritou. - Saiam da casa!

Pensei conhecer aquela voz, parecia vir de uma mulher idosa. Eu queria sair, mas não tinha jeito, íamos morrer antes de chegarmos do outro lado. Eu queria abrir a janela e chamar a quem a voz pertencia, mas eu acabaria me arrastando junto para um mar de completo esquecimento.

Havia uma passagem no guarda-roupa. Corri até lá. Só reconheci o cheiro amanteigado do quarto escondido. Eu não pude deixar de ter lembranças. Novas lágrimas se iniciaram enquanto eu tentava fechar a passagem.

O que eu estava fazendo? Abandonando minha mãe para me manter com vida? Eu não sabia nem mais o que era isso. Desde quando a guerra se iniciará a palavra vida parecia ter perdido o significado.

Minha mãe gritou novamente, mas o quarto só deixou um barulho que mais se parecia com um sussurro. Eu queria correr e dizer a ela que isso ia acabar bem, mas eu não tinha ideia do que poderia acontecer; eu também sentia medo. Tentei correr até a entrada, com uma coragem temporária, pois quando cheguei à porta estava com medo de abri-la. Minha mãe parou de gritar, mas a voz na janela ainda está chamando.

Eu fiz a coisa mais idiota que alguém poderia fazer - ao menos era o que eu pensava naquele momento -; passei pela passagem, percorri o quarto, depois a cozinha. Não vi minha mãe. Outra bomba disparou. Corri para fora da casa e depois em volta dela, até chegar à janela do meu quarto.

Alguém apareceu atrás de mim; uma mão pegou a minha. Eu não queria ir embora dali, mas não disse nada, simplesmente corri para onde quer que estivesse sendo levada.

-Cadê minha mãe? - perguntei, ainda correndo.

A pessoa balançou a cabeça, sem dizer nada. Eu sabia quem era, tinha que saber, mas não conseguia pensar em ninguém. Uma moça, velha na verdade; tinha cabelos loiros e estava usando um vestido com baia rosa. Era xadrez e tinha vários detalhes brancos. Eu estava tentando me lembrar dela, mas nada me vinha em mente.

Continuei correndo junto a ela, mas não fazia a menor ideia de quem ela era, nem se estava segura, mas o que eu poderia fazer?

Algo havia disparado lá atrás; a casa simples de madeira onde eu havia passado a vida estava em chamas. Minha mãe ainda estava lá? Ela tinha saído? Chorei baixinho enquanto continuava correndo.

Eram tempos difíceis, eu não sabia direito o que estava acontecendo. Era uma guerra? Alguém queria nos punir? Não sabia, mas já havia escutado muitas vezes os mesmos barulhos; porem não tão perto... Não a ponto de poder levar uma parte da minha vida embora. Eu estava completamente destruída, não de aparência, imagino que nisso eu ainda estivesse bem, porem psicologicamente eu talvez nunca fosse ficar bem novamente; minha cabeça girava em torno disso. Eu esperava estar errada, lutava contra eu mesma, tentava manter a calma e pensar em algo, mas toda vez que eu quase soltava a mão da mulher outra bomba ou outro estrondo me lembrava de que ela possivelmente havia salvo minha vida. Eu estaria em paz em algum lugar caso tivesse continuado na casa? Provavelmente. O cheiro amanteigado ainda estava em mim, eu não sabia se veria o lugar novamente, o cheiro era a única coisa que me lembrava de que continuar era a melhor opção. Eu queria minha mãe, eu queria minha vida antiga de volta. Não éramos ricos ou coisa do tipo, mas tínhamos felicidade de sobra... Se eu soubesse que isso poderia acontecer, se eu soubesse de muita coisa que já aconteceu, eu teria tomado conta da minha felicidade, aproveitado cada minuto dela, teria a ideia de me lembrar de que estava feliz; mas eu não sabia disso, e então essa felicidade foi roubada. Se eu tivesse certa felicidade novamente eu iria aproveitar cada segundo, sabendo que ela poderia ser tirada de mim a qualquer momento. Ela pode ser baseada em pessoas, em momentos, em tudo, mas se você não sabe aproveitar perde a melhor coisa da vida. Há alguns anos eu tinha visto coisas demais e ainda não tinha muita idade. Acreditei que meus momentos estavam sendo felizes de um tempo para cá, quando minha felicidade em certos pontos já estava sendo retirada, ao menos uma parte dela. Eu não queria cair na minha própria dor, ou ficar me lembrando do meu sofrimento, eu só queria tentar aproveitar e dar o meu melhor em tudo que eu ainda tinha de bom; mas o que eu tinha agora além da minha vida? Talvez o ar que eu respirasse fosse o suficiente para tentar ser melhor, para não deixar que chegassem à dor que um dia eu tinha chegado. Eu tinha que proteger as pessoas.

Mas o que eu estava pensando? Eu não havia nem salvado o que me restava de melhor. Todas as pessoas importantes para mim, onde elas estavam? Eu nem fazia ideia de se ainda estavam vivas.

-Ele está bem - a mulher disse algo pela primeira vez. Sua pele enrugada subiu quando ela falou e voltou quando ela parou de falar.

Tentei não prestar atenção na vida sendo levada por um momento. Era alguém que eu conhecia?

-Quem? - perguntei, esperançosa.

Ela não respondeu, só deixou a boca erguer um pouco, no que acho que foi para demonstrar um sorriso. Isso me animou; um sinal de felicidade no meio de um cenário de guerra.

-Quem é você? - perguntei, notando pela primeira vez que estava quase sem folego para falar. - Estou com cede.

-Sônia - ela sorriu.

Corri o máximo que conseguia para acompanhar o pique da mulher. Estávamos indo para um lugar seguro?

A saia de seu vestido ia para cima e para baixo com cada passo forte. A corrida para um tipo de sobrevivência me pegava de surpresa. Já não estávamos mais ouvindo tantas bombas, mas ainda assim eu sabia que por pouco tempo.

Avistamos uma casa de campo velha no meio do nada - nada mesmo; não tinha árvores, não tinha nada, somente uma ponte, depois um rio, e a casa antiga em seguida, escondida em meio a um tipo de ferrugem alta -. Era lá que estávamos indo? Era o começo de uma vida que poderia ser ou não boa? Eu esperava que conseguisse ter coisas esclarecidas depois disso. Eu só queria uma vida, só queria ir para longe dali, queria que o ar que saísse de mim tivesse um tipo de boa utilidade, queria ser mais do que a garota fugindo da guerra... Por um momento eu quis estar nela, desafiando o mundo, mas o que uma garotinha como eu poderia fazer? Eu nem mesmo sabia se aquilo era guerra ou somente um ataque de pessoas ingênuas. A porta da casa se abriu em um estrondo e então eu vi uma pessoa que eu realmente conhecia; que havia sido parte da minha vida. Senti-me um pouco mais segura, já não queria mais ir para guerra. Por um momento eu só queria ter uma vida.


A Outra Vida De Allen - A Lenda Da PhoenixOnde as histórias ganham vida. Descobre agora