A reconciliação do casal

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Pedro Malasartes precisava comer e dormir. Por isso, foi até o único sítio da estrada. Ao aproximar-se da casa, viu o marido despedindo-se da esposa. Escondeu-se atrás de uma moita e pôs-se a escutar:
— Sua partida me parte o coração, meu amor — falsa, dramatizava a esposa.
— Vou num pé e volto no outro. Será uma viagem de apenas de três dias, minha querida.
— O que será de mim esse tempo todo, longe do meu amado marido?
— Se eu pudesse, ficaria ao seu lado, meu amorzinho.
— Não! Minhas lágrimas não podem transformá-lo num homem sem palavra. Você tem de honrar seus compromissos, mesmo que deixe sua apaixonada esposa chorando de saudade.
— Vá em paz, meu patrão! Eu me encarrego de distrair a patroa durante a sua viagem — disse a criada, vinda de dentro da casa, aproximando-se do casal e fingindo confortar a mulher.
— Muito obrigado, Emengarda! Assim, parto mais tranquilo.
— Adeus, meu querido! Volte logo.
— Nem parti e já sinto saudade de você, querida.
— Cá estarei à sua espera. Faça boa viagem!
— Adeus...
Mal o marido havia partido, a mulher praguejou:
— Vá e não volte mais, desgraçado! Não pense que me engana com aquela sem-vergonha com quem você anda me traindo. Que um raio o parta ao meio, porque hoje coloco em você um belo par de chifres!
— Puxa, patroa! A senhora quase põe tudo a perder. Se esse homem fica, perdíamos a ocasião.
— Esqueça esse tolo e me diga se está tudo certo para hoje à noite.
— Mais certo do que dois e dois são quatro. Até mandaram umas galinhas e patos para eu depenar.
— E as empadas, pães, pastelões e doces?
— Trarão os cestos com eles.
— Vamos ter uma bela noite, comendo, bebendo e dançando, Emengarda.
— A melhor noite da minha vida.  E muito felizes, entraram as duas.
— Hipócritas! Marido e mulher, um enganando o outro — disse o Pedro Malasartes, entre os dentes. — Se minha mãe visse isso, diria: "Esse casal se merece." Mas não tenho nada com isso. Vou aproveitar a situação: comer, beber e dançar um pouco, pois o futuro a Deus pertence. — E foi bater à porta para pedir pernoite e comida.
A mulher negou. Mas a criada meteu-se na conversa:
— Deixe o moço ficar, patroa! Preciso de alguém para me ajudar a matar e depenar os patos e as galinhas.
— Essa é minha especialidade — Pedro Malasartes esnobou.
— Você está louca! Ele vai saber das nossas sem-vergonhices.
— Não precisa de preocupar, minha senhora. Sei que em boca fechada não entra mosquito. Cada um cuida da sua vida e Deus cuida de todos — declarou o Pedro.
— Está vendo, patroa?
— Então, entre! Mate e depene as aves, depois coma e vá dormir ali no palheiro, com os ouvidos e olhos bem fechados!
— Obrigado! — agradeceu ele. — Sobre as palhas terei a cama mais larga e fofa desta casa.
Ao anoitecer, na estrada rumo à casa, vinham o barbeiro e o padeiro da cidade. Os dois homens esperados pela patroa e sua criada. Um contando mais vantagens do que o outro:
— Nada encanta mais as mulheres do que as minhas especialidades — dizia o padeiro, orgulhoso dos dois cestos que trazia nas costas repletos de saborosas empadas, pães finíssimos, recheados pastelões, doces deliciosos e vinhos da melhor qualidade.
— Ah, seu cabeça de porco! As mulheres gostam mesmo é do cheiro da minha loção de barba e do som da minha viola — rebatia o barbeiro, tangendo as cordas do instrumento e começando a cantar.
Ao chegarem e verem o Pedro Malasartes na casa, os dois quiseram saber de quem se tratava. A criada afirmou ser um pobre coitado necessitado de um patro de comida e de pousada. A patroa terminou de tranquilizá-los, confirmando tais palavras. Sentaram-se, pois, à mesa posta e começaram a comer, beber e festejar. Nisso bateram à porta.
— Quem será a uma hora dessas? — indagou assustada a patroa.
A criada foi olhar pela janela e voltou com a resposta:
— Diabo! É o patrão em carne e osso.
— Desgraça! — bradou a patroa. — Nunca pensei que meu marido pudesse voltar tão depressa. Que demônio trouxe esse homem de volta?
— Acabou com nossa festa — lamentou a criada.
Tomados em pânico, os dois homens tremiam mais do que varas verdes.
— Ponham as comidas nos cestos e levem tudo ao palheiro! — ordenou a dona da casa.
— Vamos também nos esconder lá! — Pedro Malasartes orientava os dois covardes trêmulos.
— Abram... — O marido já esmurrava a porta.
— Não abro a porta para estranho a esta hora da noite — respondia a esposa, tentando ganhar tempo para recolherem as comidas e os homens poderem esconder-se.
— Sou eu, minha querida! Seu marido. Não reconhece minha voz?
— Meu marido só volta daqui a três dias.
— O eixo da roda da carroça quebrou e resolvi voltar para ficar com você até amanhã, minha princessa.
— Se você é meu marido, diga o nome da nossa criada.
— Isso outro homem também pode saber. Só acredito se você repetir o que disse a criada a meu marido para tranquilizá-lo e convencê-lo de que eu não iria ficar chorando pela sua partida!
— "Vá em paz, meu patrão! Eu me encarrego de distrair a patroa durante a sua viagem."
— É verdade! Só meu marido poderia saber isso.
— Então abra a porta logo, minha flor!
— Pronto, meu marido! — disse a esposa, abrindo a porta, depois de certificar-se de que os homens e toda a comida já estavam no palheiro.
— Ah, minha querida, quanta prudência! Agradeço a Deus pela sua honestidade — disse o tolo do marido, abraçando a mulher
— Abram aqui, que estou morrendo sufocado — Pedro Malasartes berrou, dentro do palheiro.
— Que é isso?
— Nada, não, patrão. É apenas um pobre coitado, feio como o demônio, que me pediu pousada e eu o tranquei no palheiro.
— Por que você fez isso sem minha ordem, Emengarda?
— com cara de zangada, perguntou a patroa.
— Desculpe-me, minha senhora. Mas já sofri tanto na vida, que tenho o coração mole, mole, mole. Não consigo negar comida a quem pede.
— Abram!
— Já vou, diabo — gritou a criada e foi abrir a porta.
Pedro Malasartes surgiu coberto de palha.
— Não disse que não passava de um diabo feio?
— Diabo, não! — energicamente retrucou o Pedro. — Todos me chamam de diabo só porque posso ver o coisa-ruim em todos os lugares.
— O quê? Pode ver o capeta? — admirou-se o marido traído.
— Sofro dessa desgraça. Agora mesmo, vi dois lá no seu palheiro, meu senhor.
— No meu palheiro?!
— Exatamente. Um mais feio do que o outro.
— Só acredito vendo.
— Deus me livre e guarde! — Apreensiva, a criada deu um salto, benzendo-se e intervindo na conversa, certa de que ela e sua patroa seriam, desgraçadamente, desmascaradas com a inevitável revelação da presença dos dois homens no palheiro.
— Não, meu amor! Esqueça isso, por favor! — implorou a mulher, fingindo desfalecer de medo de ver o diabo.
— Não tema, minha senhora! — Pedro Malasartes socorreu-a. — Tenho habilidades para trazer os dois com formas humanas.
— Como assim? — indagou o marido.
— Posso fazer que cada um se pareça com alguém conhecido, para não assustarem as mulheres desta casa.
— Graças a Deus! — exclamou a esperta criada, pedindo em seguida: — Quero que um deles se pareça com o barbeiro.
— A ideia é boa. Faço-o aparecer com sua viola para tocar e cantar para nós. Mas, se me permitem uma sugestão melhor, o outro eu gostaria de apresentá-lo com a cara do padeiro. Pois, com ele, teríamos cestos cheios de empadas, pastelões, pães, doces...
— Ótimo! — Aplaudiu a patroa, acompanhada pela criada.
Sem desconfiar de nada, o marido concordou. Então, o Pedro Malasartes foi até o palheiro e obrigou os dois homens a sair:
— Vamos, seus diabos! Vamos e levem os cestos! — E, voltando-se para o casal e a criada, disse: — Vejam que o padeiro, além de pães, pastelões, doces, vinhos e empadas, traz bons assados! Há comida para uma bela festa.
— E o barbeiro pode tocar para dançarmos! — A criada assanhou-se toda.
O patrão olhou feio para ela. Mas Pedro bradou:
— Deixe a menina, patrão. Eu danço com ela. Não é todo dia que se pode fazer uma festa dessas.
— É isso mesmo, meu amado — concordou a patroa, buscando o olhar do marido.
— Então, estamos esperando o quê? Pegue o vinho e vamos brindar! — consentiu ele por fim.
Assim a festa começou. Comiam, bebiam e dançavam. Quando o barbeiro foi servir-se com uma ampada, Pedro Malasartes repreendeu-o:
— Tire a mão, que diabo não come!
A festa estendeu-se até a madrugada. O barbeiro só pôde cantar e tocar. O padeiro passou a maior fome, sem poder comer nada. Quando o patrão dormiu de cansado, o Pedro Malasartes dançou também com a patroa. Aí expulsou os dois homens da casa e, depois, foi embora tão satisfeito da vida, que nem se lembrou de levar um pouco de comida.

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