Capítulo XXVIII

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Uma vez, na sala de aula, o Harry e o meu irmão tiveram a brilhante ideia de se engalfinhar numa luta de borrachas. O Harry atirou uma à cara do Alex, que se desviou a tempo, e a borracha míssil acertou no vaso de flores na secretária da professora e este caiu, estilhaçando-se em milhares de bocadinhos de vidro e molhando todos os papéis que estavam na mesa, que dava-se o acaso de serem os testes do ano acima do nosso.
A turma toda ficou calada, imóvel, de boca aberta, a olhar para o vaso partido e os testes molhados, durante o que pareceu uma eternidade. Pelo menos, até a professora entrar na sala e perguntar o que se estava a passar.
Agora, a situação era parecida. Estávamos petrificados, a olhar para o Kay, num silêncio tal que até se ouviria um alfinete a cair.
O Alex parara de mastigar, o Alfie estava com o canivete na mão, eu senti uma náusea que não tinha nada a ver com a carne crua.
Vi as mãos do Kay agarrar o papel com força, amarfanhando-o, e depois num ímpeto de fúria rasgou-o raivosamente e atirou tudo para o chão.
Ninguém disse nada. Foi o Josh que quebrou o silêncio.
- Bem, ao que parece, temos planos para as cinco da tarde.
- Quê?! - Exclamou a Summer, virando-se para ele. - Planos?! Mas tu estás a contar ir, assim, na boa?!
- Agora ficaste surda, ou assim? Não ouviste o Kay? "Consequências graves e dolorosas" - o Josh sublinhou essas duas palavras. - Faz como quiseres, loirinha, mas eu não arrisco. Além disso, se é um jogo, eu ganho de certeza.
- É a primeira vez que o assassino comunica connosco... - Murmurou o Alfie, fitando os pedaços de papel rasgados no chão.
- Que tipo de jogo será..? Damas ou assim?
Todos nos virámos para o Alex em descrença.
- Damas? Alex, damas?
- Achas mesmo que o assassino nos vai pôr a jogar damas?
Ele levantou as mãos.
- Calma! Foi só uma sugestão!!
- Vai ser uma coisa bem pior, com toda a certeza.
- Quando é que ele pôs lá a nota? Quando entrámos aqui nos dormitórios não estava lá, senão tínhamo-la visto - disse o Julian.
- Então o assassino colou-a agora mesmo, quando estávamos a almoçar! - Concluiu o Kay. - Alguém viu pela janela alguém a correr ou assim?
Ninguém respondeu. Estávamos todos demasiado ocupados a conversar e a cortar a carne para repararmos se estava alguém lá fora. De novo, o assassino fora mais astuto.
Não podia ter a certeza, mas ninguém deste dormitório saíra e voltara a entrar durante o almoço. Quer dizer, eu estava um pouco embrenhada a conversar com a Summer e a preocupar-me com o Michael, mas não tinha visto ninguém a sair. Acho.
Agora, com o Josh, o Julian, a Rose e o Tom, a conversa era outra. Qualquer um podia ter escrito aquele bilhete, colado no dormitório e voltado a entrar. Olhei-os um a um a ver se via algum ar suspeito, mas sinceramente não encontrei nada: estavam os quatro pálidos como a parede e o Julian até tremia. Ou eram muito bons atores, ou então não sei.
- Agora que penso, talvez possamos descobrir quem é pela caligrafia - sugeriu a Maya, interrompendo os meus pensamentos.
- Não, está tudo escrito em maiúsculas. - O Kay abanou a cabeça.
- Então... então que fazemos?
Era uma ótima pergunta.
Que fazemos?
- Nem quero imaginar o que vai acontecer se não formos.
- O que é que ele pode fazer pior do que já nos fez? - Perguntou o Tom.
- Consigo agora mesmo pensar em várias coisas - interrompi eu. - O que fazemos se ele atear um novo incêndio? Se ele nos decidir matar todos de noite, à facada? Se ele começar a disparar balas com a espingarda?
- A Lyra tem razão. - Apoiou-me o Michael. - Se ele fizesse outro incêndio éramos queimados vivos. Eu arrisco em ir ao tal jogo...
- Eu não! - Disse o Alex, de repente. - Sabe-se lá o que ele entende por "jogo". Ninguém aqui vê filmes de terror, ou lê aqueles livros de psicopatas? "Jogo" para eles é bem diferente de "jogo" para nós. Ninguém viu o Saw?
- Não é aquele filme onde se cortam braços e isso tudo?! - Guinchou a Maya.
- Ya, é brutal! Brutal no ecrã da TV! Mas estou mesmo a ver que o assassino vai organizar uma espécie de Saw para nós!
- Alex, és o único que vês esses filmes - revirei os olhos.
- Isso não interessa agora. - Cortou a Mel. - Concordo com o Alex. Se formos ou não, o resultado vai ser o mesmo; ele pode na mesma atear um incêndio, ou matar-nos à facada.
- As consequências vão ser bem piores se não formos - avisou o Alfie, apontando para o papel. - Está ali escrito!
Estávamos a desentender-nos. O meu coração acelerou: se não estivéssemos todos naquele pátio às 5 da tarde, eu sabia que ia correr mal. O assassino não gostava de ser contrariado. A sua fúria se lhe desobedecêssemos seria superior a tudo. Provavelmente incendiava os dormitórios connosco lá dentro. Aquele mau pressentimento estava tão forte, tão poderoso na minha cabeça, que só faltava ganhar vida.
Uma coisa era certa: se não fôssemos a este jogo, algo muito mau (algo péssimo) ia acontecer.
- OK, pessoas, vamos fazer assim - disse o Kay, ao ver que toda a gente estava a barafustar e falar ao mesmo tempo - quem vota em irmos a este jogo levanta a mão.
Eu, o Kay, o Michael, o Alfie, o Josh, a Rose e o Tom levantámos prontamente a mão. O Julian pareceu hesitante, mas acabou por levantar também.
- Quem vota em não irmos.
A Summer, a Maya, a Mel e o Alex levantaram a mão.
- Quatro contra oito. - Comentou o Josh, escarninho.
- Não quero saber, vocês não mandam em mim - prontificou a Summer. - Não vou a esse jogo nem que a vaca tussa.
- Rose, tosse - murmurou o Julian, e riu-se da sua própria piada, disfarçando com uma tosse ao perceber que mais ninguém se rira.
- A carta é clara: temos de ir todos. Não percebem que estão num perigo ainda maior ao ficarem aqui?
- Isto é assim, eu não vou sofrer consequências graves e dolorosas só porque há quatro Marias Malmequer que têm demasiado medo para ir - interrompeu o Josh. - Vamos fazer isto de outra maneira.
De repente o Josh tirou do bolso do casaco a sua faca.
- Josh, baixa isso!! - Gritei eu, aterrorizada.
Não, de novo não...
- Viram a facilidade com que matei o William, o Leonard, a Jayden e a Rachel? Se vocês não levantarem esses rabos do chão e não vierem, eu próprio encarrego-me de vocês.
O Alex ficou branco como a cal. A Maya começou a soluçar de repente e a Mel agarrou-se ao meu irmão. Apenas a Summer permaneceu impávida.
- Alex, não arrisques - sibilei ao meu irmão.
O meu irmão olhou para mim, olhou para o Josh e gaguejou:
- Calma, meu. Não queremos problemas. É só que achamos que é melhor...
- ALEX - berrei.
- Pronto!! Eu vou! - Apressou-se a dizer.
A Mel não disse nada, mas a maneira como se agarrou ainda mais ao braço do Alex respondia por ela.
- Maya? - Inquiriu o Josh, aproximando a faca a poucos centímetros do seu pescoço.
- S-sim, eu vou - soluçou ela.
Virou-se para a Summer.
- Tu não me metes medo - desafiou ela, com os olhos semicerrados.
- E esta faca, já te mete medo? - Perguntou ele.
- Josh, acalma-te - disse-lhe eu, agarrando-o pelo braço. - Eu convenço a Summer, sem usar a violência.
- Tu não convencias nem o Coelhinho da Páscoa. - Troçou ele.
Ignorei o comentário e pus-me à frente da Summer.
- Summer, o que é que achas que o teu pai faria nesta situação?
A pergunta apanhou-a desprevenida.
- O meu pai... quê?!
- O teu pai, sim. O que achas que ele faria?
- Ele... Sei lá, Lyra!
- Sei eu. Ele ia àquele jogo e mostrava ao assassino que não tinha medo dele. Nas salas de operação, os cirurgiões precisam de arriscar, às vezes, não é?
Como a Summer não respondeu, eu acrescentei:
- A minha avó morreu de ataque cardíaco. O cirurgião que a ia operar tinha duas opções: ou lhe trocava a válvula do coração e arriscava que ela não sobrevivesse (mas também podia resolver o problema) ou não fazia nada. Ele optou por não fazer nada: a minha avó morreu três dias depois. E sabemos agora que se o cirurgião a tivesse operado, ela ainda estaria viva.
A Summer olhou para mim, com os olhos muito abertos. Mordeu o lábio e olhou pela janela, pensativa.
Por fim, disse:
- OK. Eu vou.
Percebi de repente que estivera a suster a respiração. Expirei de alívio.
- Muito bem, estamos todos de acordo - disse o Josh, guardando a faca de novo no bolso. - E foi bastante democrático.
- Democrático?! Ameaçaste matá-los se eles não seguissem as instruções!! - Exclamou o Michael, irritado.
- Chama-lhe política - sorriu o Josh. E dito isto saiu do dormitório.

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