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E L O R A.

Assim que fecho a porta atrás de mim arrependo-me ao lembrar-me de que deixei o saco da roupa lá dentro, mas a dor que se apodera de mim assim com o tamanho infinito do meu orgulho, impeço-me a mim mesma de fazê-lo. Toda a minha vida foi sofrimento atrás de sofrimento sem haver quaisquer pausas e eu já me estou nas tintas para isso, mas quero poder apreciar o resto da tarde na localidade que há tanto não passeava.

Decidi andar à deriva pelas ruas inglesas tentando ao mínimo não pensar naquilo que eu considerava como a maio traição que me poderiam fazer. Não queria saber se me espancava e se me violavam até à morte, se me abusavam verbalmente e me fizessem as piores coisas que podem passar pela mente depravada das pessoas com a mentalidade mais suja possível, eles são meus pais, porra. Como foram eles capazes de pensar que eu estava algures no mundo, trabalhando como escrava para alguém, sem quaisquer condições para viver e nem sequer terem o mínimo de preocupação? Despejaram logo tudo do meu quarto e substituíram-me por um bebé. Um bebé por quem eu ponho as mãos no fogo de como nunca sofrerá metade daquilo que eu sofri, talvez nem um quarto daquilo que eu sofri.

Primeiro, porque é rapaz; segundo, porque ele é a oportunidade que os meus pais viram para se redimirem de me terem "deitado fora" e bem, terceiro porque eles nunca o iriam levar para aquele sítio para onde me levaram, porque eu sei muito bem que aqueles quatro desligariam qualquer chamada que recebessem se quisessem lá meter um rapaz. Como é que alguém neste mundo consegue ser tão deplorável ao ponto de se desfazer de um filho? As pessoas têm o trabalho todo de terem uma criança para depois decidirem que já não a querem? Que afinal este não era o filho que eles pretendiam ter? Eu acho que já vi muito do mundo, mas ao mesmo tempo recordo-me que eu nunca vi nem o dedo mindinho do mundo. Eu não faço ideia de metade das coisas que para aí andam e nem sei se me devia preocupar tanto com todas essas coisas porque ninguém se preocupa comigo também. E eu acho isso triste. Acho que eu própria sou triste.


"Menina?" Uma voz não tão desconhecida por mim soa. Viro-me para trás e encontro a senhora que mais cedo me trouxe até aqui.

"Oi." Digo encolhendo os ombros.

"A menina vem aqui para passear?" Ela diz com um sorriso amoroso e eu só me apetece espetar-lhe um soco.

"O que tem a ver com isso?" Pergunto secamente.

"A menina devia ser mais educada com as pessoas mais velhas." Ela disse num tom repreendedor.

"E você devia meter-se mais na sua vida e menos na dos outros." Respondi do mesmo modo.

"Ai, o que hei eu de fazer?" Ela suspirou. "Ainda que me esteja sempre a rebaixar com todo esse mau humor e com essa má educação, quero convidá-la para jantar comigo. São quase seis e meia da tarde, não está com fome depois de uma viajem tão grande?"

"Talvez."

"Não seja assim, venha lá." Ela deu-me aquele sorriso amável novamente e eu suspirei em frustração.

"Está bem, eu aceito."

"Obrigada." Ela respondeu docemente e começou a caminhar.


Segui a senhora que de certeza já estava para além dos seus cinquenta e cinco anos e descobri que ela morava nada mais nada menos que três casas à frente de minha. Isto deve ser o destino, mas tenho já a dizer que eu com o destino não quero nada. Essas tretas não passam disso mesmo, tretas.

Ela abriu a porta da sua casa e reparei que era idêntica à minha em termos de divisão e estrutura, apenas a mobília era diferente e a decoração também. A senhora - cujo nome nem se dignou a dizer ainda - encaminhou-me para a sala e ofereceu-me o comando da televisão, embora eu não soubesse já trabalhar com ele e depois, enfiou-se na cozinha. Voltei a pousar o comando na mesa de café e levantei-me, observando uma estante que estava cheia de livros da primeira tábua até À última, embora houvesse várias fotografias espalhada em uma ou duas tábuas da estante, onde não havia livros de uma ponta a outra. A observar uma das fotos, percebi que havia uma rapariga nova - talvez da minha idade, junto com a mulher que me tinha oferecido jantar. A sua cara não me era totalmente desconhecida, embora eu não conseguisse identificá-la.


"Isla." A mulher falou, quase fazendo com que eu deixasse a fotografia cair no chão. "O nome dela é Isla." Ela sorriu, embora fosse um sorriso triste.

"É sua neta?"

"Sim, ela é." Disse com a voz a quebrar.

"Onde é que ela está?" Perguntei curiosa. A sua cara intrigava-me.

"Não sei, há muito tempo que eu já não a vejo sabes?" Suspirou. "Eu acho que o pai a levou para longe."

"Porque é que ele faria isso?"

"A Isla sempre foi uma menina muito rebelde, ela gostava de trazer chatices e o seu pai nunca gostou muito disso. Um dia ele disse que eles iam fazer uma pequena viagem até à capital, mas ele voltou sem ela, a partir desse dia nós nunca mais voltámos a ver a Isla e eu nunca cheguei a perdoar o pai dela. Acho que não há uma dor assim tão grande como a de saber que nunca iremos perdoar o nosso filho."

"Ou os nossos pais." Disse num sussurro, mas sei que ela ouviu porque concordou com a cabeça.

"Estas coisas são sempre muito complicadas." Ela suspirou. "Mas enfim, vou pôr a mesa e depois vamos jantar, está bem querida?"


Apenas assenti com a cabeça e observei enquanto ela saía da sala, continuei a olhar para a fotografia e a pensar se deveria ou não contar que eu conhecia a Isla, que sabia onde ela estava e que poderia ajudar a sua avó a encontrá-la. Mas isso teria que envolver a polícia e não tenho a certeza se seria o melhor a fazer, mas só o pensamento de que maior parte daquelas raparigas poderia voltar para casa e ter tudo aquilo que não tiveram no tempo em que estiveram ali naquele inferno e também, aquelas que não tinham para onde ir, iriam para um lugar melhor onde pudessem ser tratadas como deve de ser e não mal-tratadas.



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Espero que não se tenham esquecido da senhora que lhe deu boleia (capítulo 5), nem da Isla que a salvou quando 'bateu' no Harry (capítulo 4). E espero que não se esqueçam delas ;)

No próximo capítulo vai haver algo giro ^^ Mentira, vai ser uma coisa pouco bonita kkk

O Liam aparece já no capítulo 9! Quem também está ansiosa pelo seu aparecimento? o/ o/ o/ o/


Ps: Aproveito já para dizer que vou só publicar aos fins-de-semana, mas mais ao domingo :) E pff, partilhem a história entre as vossas amigas que lêem, gostava mesmo de ter mais leitoras nesta história >.<




Psychiatrist // L.P. {terminada}Where stories live. Discover now