Dezenove

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Ainda assim, devo admitir que a parte destruída dói. E como é a dominante, sinto perder o chão mesmo sabendo que ele ainda está bem embaixo de meus pés.

   Mas não posso ficar aqui. Não estou a fim de ouvir os sermões da Tathi ou o "eu te avisei" da Bruna. Preciso de silêncio, por isso sigo para a outra parte do playground do prédio, onde ficam os brinquedos infantis.

  Pelo caminho reviso minha conversa com o P.H. e sinto uma mistura de raiva dele e de mim ao mesmo tempo. Em um ataque de ódio desmancho o penteado de Babeti e jogo o prendedor de cabelo no chão.

   Como há um casal se pegando na casinha em cima do escorrego, me sento no brinquedo gira gira bem longe deles e, dando impulso com o pé, começo a me movimentar.

   Depois de alguns rodopios ouço um barulho diferente, um tec tec engraçado sob o cimento. Quando o gira gira completa mais uma volta vejo Bernardo entrando no espaço do playground com sua muleta.

   Cada vez mais devagar o brinquedo vai parando aos poucos conforme meu vizinho avança e finalmente fica imóvel no momento em que ele chega.

   Não o encaro, pois estou de costas para Bernardo graças á posição em que o brinquedo parou, porém o sinto começar a girar novamente alguns segundo depois. O movimento faz Bernardo entrar em meu campo de visão mais uma vez e percebo que é ele quem está impulsionando o brinquedo com as mãos.

   Assim que ficamos frente a frente ele para o gira gira num gesto brusco e sorri.

   -Suas amigas estão preocupadas. Você sumiu de repente.

   -Elas vão sobreviver sem mim. – respondo um pouco mais áspera do que gostaria.

      Ele então se senta no gira gira ao meu lado com as pernas para dentro do brinquedo e dá impulso no chão com sua muleta. Começo a rodar lentamente mais uma vez.

   -Quer me contar por que você resolveu se esconder aqui?

   -Não estou me escondendo. Só queria ficar um pouco sozinha.

   -Ah, desculpa. - ele diz sem graça e para o brinquedo num rompante, como se fosse ir embora.

   -Não. Fica. –seguro seu braço.

   Ele olha nos meus olhos e parece perceber o quanto preciso dele.

 Seus pés então fazem o brinquedo retomar o movimento. Solto seu braço, desviando meus olhos dos dele para mirar as poucas estrelas que o céu da cidade me permite ver. De alguma forma me sinto no centro do universo, como um astro se deslocando no espaço.

   -Não é incrível e ao mesmo tempo estranho que nesse exato momento a Terra está se movendo a mais de mil quilômetros por hora e ninguém em nenhum lugar do mundo consegue perceber isso? Digo, é pura física, mas...

   -...parece uma espécie de milagre. –ele completa.

   Baixo meu rosto para encará-lo de novo.

   -É.

   Ele sorri e impulsiona mais uma vez o gira gira antes que este pare.

   -Não vai mesmo me contar o que aconteceu? – ele pergunta tocando meu ombro com o seu como encorajamento.

   Faço um sinal negativo com a cabeça.

   -Às vezes as palavras atrapalham mais do que ajudam.

   -Verdade. Mas eu sei uma coisa legal que a gente pode fazer em silêncio.

   Olho para ele intrigada.

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