Capítulo 2

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21 dias para o natal

Enquanto família, clã, multidão ou seja lá o nome que quiser dar a isso, temos algumas posses. Eu tenho uma casa em Montevidéu que usamos sobretudo no meio do ano, quando é inverno lá, ou seja, não está um calor de matar e posso usar a praia sem que a minha esclerose múltipla me dê muitas dores de cabeça. Eddie tem uma casa na Sardenha que ele comprou para a sua filha Emily, e que usamos em qualquer momento fora do verão europeu, porque a Itália, nessa estação, é como se houvessem aberto as porteiras do inferno. Victor, meu filho mais velho, mora em Los Angeles, e eu costumo ir lá em turnê ou quando sou chamada para resolver alguma emergência (mesmo que ele de fato não me chame, mas somos tão telepaticamente ligados que eu simplesmente sinto quando sou precisada, sabe como é?). Minha melhor amiga Kate comprou um apartamento no Brasil, ao qual fui duas vezes em cinco anos, e meus amigos Mick e Alex têm uma fazenda que é uma coisa linda, bucólica e me mata de tédio. Mas, no Natal, eu tenho um único destino na vida: Londres. Assim que os sinos (do Papai Noel) de dezembro começam a tilintar, eu passo a inventariar roupas, embalar coisas, a me livrar aos poucos dos alimentos frescos e a pedir que qualquer alma caridosa inglesa vá à minha Linda Casa abrir janelas para arejá-la (normalmente, a minha tia Rê e a minha filha Angie. Ninguém mais entende a importância de uma boa casa arejada). E, assim que o último dia de aula do Luca termina, nós o pegamos na escola e, dali, direto para o aeroporto.

Não que os meus preparativos sejam encarados com seriedade pelo resto da casa. Hoje, no jantar, Luca diz que está estudando a idade média na escola e descobriu um jeito de salgar os peixes para durarem o inverno inteiro.

-Quero ver você se achar tão engraçado quando voltarmos de Londres e o apartamento estiver todo fedendo a peixe podre – Respondo, embora muito orgulhosa das habilidades de sobrevivência do meu bebê.

-Sério, mamãe, o que tem de errado com o congelador? – Ele dá um sorriso divertido com um dos cantos da boca.

-Não lembre que a gente está no século XXI, Luca, que mata metade da diversão – Eddie pega a salada de batata. – Pode deixar, Malu, que quando você se aposentar, a gente vai aprender a caçar ursos e defumar a carne.

-E vamos morar em uma cabana na montanha com uma fogueira no meio – Eu completo, fazendo uma careta para o Luca.

-Tem de ser no meio? Parece meio perigoso, né? Devia morrer um bando de gente queimada – Luca fala, pensativo, e eu e Eddie olhamos para ele, chocados com a intromissão de uma tragédia nos nossos planos fabulosos.

-A gente... a gente se reveza para dormir – Respondo, achando que morrer com o Eddie no meio de um incêndio seria muito romântico, embora bem desagradável. Me vem à cabeça nitidamente os bombeiros chegando e encontrando nossos corpos juntos na cama, carbonizados além de qualquer reconhecimento. Isso se houver bombeiros nas montanhas e se não formos encontrados apenas por arqueólogos, centenas de anos depois.

-A gente cava um foço ao redor da fogueira – Eddie sugere, o que parece bem mais prático.

-Vocês que sabem. De qualquer forma, minha herança vai ser boa – Luca ri e eu e Eddie continuamos olhando para ele, mudos e atônitos. Até que ele se levanta, me abraça por trás e me dá um beijo no rosto. – Caramba, cadê o senso de humor de vocês?

Ok, então vamos combinar que não pari um psicopata. Levando-se em consideração que Luca nasceu de parto natural sem uma gota de anestesia, seria muita sacanagem ele ser o louco do machado depois de toda a dor e sofrimento que eu passei para trazê-lo ao mundo.

Não que o Luca costume dar defeito. Ele é sempre uma criatura linda, abençoada e bem-humorada, ainda que tenha feito piada com seus pais esturricados em uma cabana no meio das montanhas. Aliás, pensando bem, Luca nunca deu defeito, desde antes de nascer. Tenho cinco filhos, amo os cinco na mesma medida absurdamente enorme que chega a fazer meu coração doer, fiquei grávida quatro vezes e, em três, elas foram recheadas de sustos e dores dos mais variados tipos, nada relacionado àquelas coisas maravilhosas que botei no mundo, mas que fazem parte de suas histórias assim mesmo. Luca foi planejado, foi fácil, e não me arrependo nem mesmo de não ter tomado anestesia no parto. Eu e o seu pai estávamos plenamente prontos para recebê-lo e ele também, para ser nosso. Hoje ele é um lindo garoto bem maior que eu, a pele bem branquinha que, quando toma sol, ganha sardas adoráveis, os cabelos acobreados que refletem toda a luz do mundo, a boca rosada e os olhos verdes com pontos dourados e enlouquecedores do pai dele.

Quando Dezembro ChegarWhere stories live. Discover now