Capítulo 1

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Na verdade, o escritório é um mezanino. É bem ridículo que eu sempre escolha lugares enormes para morar, movida pelo trauma de sempre estar apertada e precisar de espaços cada vez maiores, e termine tendo de improvisar como, por exemplo, transformar um mezanino em escritório. Quando viemos para a Suíça, éramos apenas três, a menor quantidade de pessoas com quem já morei desde que o Victor era pequeno, e um apartamento duplex de quatro quartos. Parece bom, né? Na realidade, não, pois eu tenho um milhão de coisas e outros milhões de filhos que poderiam querer me visitar a qualquer momento. E, assim, a escrivaninha, o computador, a impressora e todos os livros do mundo foram parar no mezanino.

As pessoas têm incontáveis definições para lar. Que é onde a gente se sente bem, que é onde quem nos é querido está, que é onde está nosso coração. Tenho tudo isso aqui na Suíça e, no entanto, jamais me senti em casa. Nunca me senti completa. É o raio da inquietação, sabe? Ou de repente a certeza de que tudo aqui é temporário, é uma passagem, uma ferramenta para que eu alcance meu objetivo. É quase como a época em que morei em Paris; a diferença é que agora eu não me iludo. A Suíça não é eterna. O que virá depois dela, sim.

Desligo o computador aliviada, a cabeça doendo de tanto olhar para aquela porcaria de tela. A louça do jantar foi lavada e guardada, ouvi sons distantes de TV, mais alguns sons de violão, Luca veio me dar boa noite, tudo isso enquanto lidava com as sandices da Ashley, que está tentando espremer até o último centavo de mim enquanto ainda pode. Certeza de que cheguei a uma posição na vida para ter uma empresária mais normal, não? Essa é uma parte que não sentirei a menor falta. Assim que minha última turnê terminar, a única louca serei eu. Tá, e os meus amigos. E os meus filhos. E o meu marido. E mais ou menos todo mundo que me cerca.

Com o computador e a Ashley finalmente em silêncio, abro a gaveta da escrivaninha e pego o meu caderno. Depois de tantos anos, ainda me vem, de tempos em tempos, a vontade de escrever a minha rotina. O que posso dizer? Sou craque em reprimir vontades. Meu caderno tem a capa dura, um monte de filhotinhos de cachorro e é a coisa mais linda e mimosa que a papelaria tinha a oferecer, além de uma página com adesivos de cachorrinhos e gatinhos. Eu a viro e chego a uma página de papel grosso, onde está escrito, no topo, "Malu Gonzaga". Sei que as chances de perder esse caderno são mínimas, mas vai que, né? Corro as páginas até a primeira em branco e começo a escrever:

"O Cazaquistão tem verões amenos e invernos muito frios. É o nono maior país do mundo em área territorial e o maior país do mundo sem costa marítima. É o país economicamente mais avançado entre todos os "istões" saídos da extinta União Soviética e sua capital, Almanty, já em muito se parece com uma metrópole europeia"

Para falar a verdade, estou um pouco cansada de metrópoles europeias.

"Mas o Cazaquistão tem também um atraente lado rural, com vastas estepes férteis em atividades surpreendentes, e onde famílias nômades surpreendem os visitantes com uma agilidade ímpar com os cavalos. E há ainda os programas de ecoturismo comunitário, os flamingos nos lagos, as mesquitas subterrâneas..."

-Por que diabos fariam uma mesquita subterrânea? – Murmuro para mim mesma.

"Foram escavadas como cavernas e datam de até mil anos atrás. Acredita-se que uma delas possua poder de cura"

Sublinho a última parte e imediatamente me arrependo, mas o fiz de caneta e agora não tem jeito de fingir que, por um segundo, eu não tive uma esperança louca e sem fundamento. Mesquita com poder de cura, sei. Como se ao menos eu fosse mulçumana. Escuto passos atrás de mim e fico tentada a perguntar, mas estou com tanta vergonha de ter pensado que poderia ser curada em uma mesquita subterrânea que mudo completamente de assunto.

-Os meses de temperatura mais confortável para visitar o Cazaquistão são de junho a agosto – Digo, fechando o caderno.

-Então vamos de setembro a maio – Eddie fala atrás de mim. Ele gira a minha cadeira para que eu vire para ele e se abaixa na minha frente, nossos rostos no mesmo nível. É bem legal ficar com o rosto na altura do rosto do Eddie. É que ele é bonito para caramba. Os anos lhe deram algumas linhas de expressão, o que o faz parecer alguém muito mais novo do que é na realidade, mas que pegou bastante sol. E aqueles olhos verdes com pequenos pontos castanhos e dourados que estão sempre com um sorriso escondido e deixam as minhas pernas bambas mesmo depois de dezoito anos.

Quando Dezembro ChegarWhere stories live. Discover now