David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo LX - Inês

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By ClassicosLP

Conversámos um com o outro, minha tia e eu, muito pela noite dentro. Contou-me que os emigrantes não mandavam uma única carta para a Inglaterra que não respirasse esperança e contentamento; que Mister Micawber tinha enviado já pequenas quantias, para honrar os seus vencimentos pecuniários, como era obrigatório de homem para homem; que Joaninha, que tinha tornado a entrar para o serviço de minha tia quando ela regressou a Dover, acabara por desistir da sua antipatia contra o sexo masculino, desposando um rico taberneiro e que minha tia havia dado o seu pleno consentimento a esse grande princípio, coadjuvando e secundando a noiva; que havia até honrado a cerimónia com a sua presença. Foram estes alguns dos pontos sobre que versou a nossa conversa; de resto, ela já me tinha informado de tudo nas suas cartas, com mais ou menos minudências. Mister Dick também não foi esquecido. Disse-me minha tia que ele se ocupava a copiar tudo quanto lhe vinha cair à mão e que, por esta aparência de trabalho, tinha conseguido manter o rei Carlos I a uma distância respeitosa; que se dava por bem feliz em o ver livre e satisfeito, em vez de penar num estado de constrangimento monótono e que enfim (conclusão que não era nova!) só ela é que sabia bem o que ele valia.

— E agora, Trot — disse-me ela, afagando-me as mãos, quando estávamos sentados ao fogão, segundo o nosso velho hábito — quando é que vai a Canterbury?

— Vou mandar aparelhar um cavalo e irei lá amanhã de manhã, minha tia, a menos que não queira vir comigo.

— Não! — disse-me minha tia no seu tom breve. — Tenciono ficar onde estou.

— Nesse caso — respondi-lhe — irei a cavalo. Eu não teria atravessado hoje Canterbury sem lá me demorar, se não tivesse pressa em a ver.

Ela ficou encantada no fundo, mas respondeu-me:

— Ora, Trot, os meus velhos ossos poderiam muito bem esperar até amanhã.

E pousou ainda a sua mão na minha, enquanto eu olhava para o fogo, sonhando.

Sim, sonhando! Porque não me podia sentir tão perto de Inês sem experimentar, em toda a sua vivacidade, os pesares que de há tanto tempo me vinham preocupando. Eram talvez suavizados pelo pensamento de que merecia esta lição por não a ter prevenido no tempo em que tinha todo o futuro diante de mim; mas nem por isso eram menos pesares. E ouvia ainda a voz de minha tia repetir-me o que hoje melhor podia compreender: «Oh! Trot, cego, cego, cego!».

Conservámo-nos silenciosos durante alguns minutos. Quando ergui os olhos, vi que ela me observava atentamente. Talvez tivesse seguido o fio dos meus pensamentos, menos difícil de seguir agora do que quando o meu espírito se obstinava na sua cegueira.

— Vai encontrar o pai dela com os cabelos brancos — disse minha tia —, mas está bastante melhor sob qualquer outro ponto de vista; é um homem renovado. Já não bebe o pouco que bebia, nem para festejar alegrias, nem para apagar tristezas. Acredite-me, meu filho, é preciso que todos os sentimentos estejam bem diminuídos num homem para que se possam medir por esta bitola.

— É verdade que sim — respondi-lhe.

— Quanto a ela, há-de encontrá-la — continuou minha tia — tão bonita, tão bondosa, tão terna, tão desinteressada como dantes. Se eu soubesse fazer um mais belo elogio, Trot, não deixaria de fazê-lo.

Não havia, de facto, mais belo elogio para ela nem mais amarga recriminação para mim! Oh! Porque fatalidade me tinha eu assim extraviado!

— Se ela ensina as pequenitas que a rodeiam a assemelharem-se-lhe — disse minha tia (e tinha os olhos marejados de lágrimas) — Deus sabe que será uma vida bem empregada! Feliz em ser útil, como ela dizia um dia! Como poderia ela não ser assim?

— A Inês encontrou algum... — Eu pensava muito alto, não era falar.

— Algum... quê? O quê? — perguntou vivamente minha tia.

— Um homem que a ame?

— Tem disso às dúzias! — exclamou minha tia com uma espécie de orgulho indignado. — Se quisesse, depois de o Trot partir podia ter-se casado vinte vezes!

— Por certo! — disse eu — Por certo! Mas encontrou um homem digno dela? Porque Inês não poderia amar qualquer que assim não fosse.

Minha tia ficou silenciosa um instante, com o queixo fincado na mão. Depois, erguendo lentamente os olhos:

— Suspeito — disse ela — que Inês guarda afeição a alguém, Trot.

— E esse alguém retribui-lhe? — perguntei.

— Trot — prosseguiu gravemente minha tia — não lho posso dizer. Não tenho mesmo o direito de afirmar o que acabo de lhe dizer. Ela nunca mo confiou, não faço senão suspeitá-lo.

Minha tia olhava para mim com um ar tão inquieto (via-a mesmo tremer), que senti então, mais do que nunca, que penetrava no fundo do meu pensamento. Fiz um apelo a todas as resoluções que tinha formado, durante tantos dias e tantas noites de luta contra o meu próprio coração.

— Se assim é — disse eu — e espero que assim seja...

— Eu não disse que assim fosse — disse bruscamente minha tia. — É preciso não se fiar nas minhas suspeitas. Pelo contrário, é preciso conservá-las secretas. Pode ser que isto não passe de uma ideia minha. Não tenho o direito de dizer nada.

— Se assim fosse — repeti — Inês ter-mo-ia dito qualquer dia. Uma irmã à qual mostrei tanta confiança, minha tia, não me há-de recusar a sua confiança.

Minha tia foi desviando os olhos tão lentamente como os tinha dirigido sobre mim e escondeu-os nas mãos com ar pensativo. Pouco a pouco foi pondo a outra sua mão no meu ombro e assim estivemos um junto do outro, pensando no passado, sem trocarmos uma única palavra, até ao momento de nos retirarmos.

Parti no dia seguinte de manhã muito cedo para o lugar aonde tinha passado o tempo bem afastado dos meus estudos. Não posso dizer que me sentisse feliz em pensar que era uma vitória que eu alcançava sobre mim próprio, nem mesmo da perspectiva de tornar a ver daí a pouco um rosto bem-amado.

Não tardou, efectivamente, que eu percorresse esse caminho que tão bem conhecia e atravessasse essas ruas pacíficas em que cada pedra me era tão familiar como um livro de aula a um estudante. Fui a pé até à velha casa, depois afastei-me; tinha o coração muito pesaroso para me decidir a entrar. Voltei e olhei ao passar pela janela baixa do torreão em que Uriah Heep e depois Mister Micawber, trabalhavam não há muito; era agora uma saleta; já não havia escritório. De resto, a velha casa tinha o mesmo aspecto tranquilo e cuidado de quando eu a havia visto pela primeira vez. Pedi à criadita que me veio abrir a porta que dissesse a miss Wickfield que um sujeito pedia para lhe falar, da parte de um amigo que andava em viagem no continente; a criadita fez-me subir pela velha escada (avisando-me de que tivesse cautela com os degraus, que eu conhecia melhor do que ela); entrei na sala de visitas; nada estava mudado. Os livros que líamos juntos, Inês e eu, estavam no mesmo lugar; vi, no mesmo canto da mesa, a escrivaninha em que tantas vezes tinha trabalhado. Todas as pequenas mudanças que os Heep tinham introduzido de novo na casa, haviam sido desmanchadas por sua vez. Cada coisa encontrava-se no mesmo estado que no meu tempo de felicidade que não mais voltava.

Cheguei a uma janela, olhei para as casas de em frente, recordando-me quantas vezes as tinha examinado nos dias de chuva, quando me tinha vindo instalar em Canterbury; todas as suposições que eu me divertia a fazer acerca das pessoas que apareciam às janelas, a curiosidade que eu punha em segui-las quando subiam e desciam as escadas, enquanto as mulheres faziam ressoar os clique-claque das suas solas grossas no passeio e a chuva maçadora fustigava as pedras da calçada ou extravasava das goteiras próximas. Recordava-me que tinha pena, do coração, dos transeuntes que via passar, à boca da noite, todos encharcados e arrastando a perna, com os embrulhos às costas enfiados num pau. Todas essas recordações estavam ainda tão frescas na minha memória, que sentia um cheiro a terra húmida, a folhas e silvas molhadas, até ao sopro do vento que me havia enfadado durante a minha penosa viagem.

O ruído da pequena porta que se abria no entalhamento da parede, fez-me estremecer; voltei-me. O belo e tranquilo olhar de Inês encontrou o meu. Ela parou e levou a mão ao coração; eu abracei-a.

— Inês, minha amiga! Fiz mal em chegar assim tão de improviso...

— Não, não; estou satisfeita por o ver, Trotwood!

— Querida Inês, eu é que me sinto feliz por a tornar a ver ainda.

Apertei-a ao coração e durante um momento guardamos ambos silêncio. Depois sentámo-nos juntos um do outro e vi nesse rosto angélico a expressão de alegria e de afecto com que eu sonhava de noite, desde há anos.

Ela era tão sincera, tão bonita, tão bondosa, devia-lhe tanto e amava-a tanto, que não podia exprimir o que sentia. Tentei abençoá-la, tentei agradecer-lhe, tentei dizer-lhe (como tantas vezes o tinha feito por cartas) toda a influência que sobre mim exercia, mas não o consegui; foram baldados os meus esforços. Ficava muda a minha alegria, emudecia o meu amor.

Com a sua suave tranquilidade, acalmou ela a minha agitação; fez-me regressar à recordação do momento da nossa separação; falou-me de Emília, que fora ver em segredo várias vezes; falou-me de um modo emocionante da sepultura de Dora. Com o instinto sempre justo que lhe dava o seu nobre coração, fez vibrar tão docemente e tão delicadamente as cordas dolorosas da minha memória, que nenhuma delas deixou de responder ao seu apelo harmonioso e eu prestava atenção a essa triste e longínqua melodia, sem sofrer as saudades que ela despertava na minha alma. E como as sofreria eu se era a sua saudade que as dominava todas e que pairava sobre a minha vida como as asas de um anjo!

— E a Inês? — disse eu por fim. — Fale-me de si. Ainda não me disse quase nada do que faz.

— E que tenho eu a dizer-lhe? — respondeu ela com o seu radioso sorriso. — Meu pai está bem. O senhor vem encontrar-nos tranquilos na nossa velha casa, que nos foi restituída; dissiparam-se as nossas inquietações; o senhor bem o sabe, Trotwood e nesse caso sabe tudo.

— Tudo, Inês?

Ela olhou para mim, não sem um pouco de espanto e de emoção.

— E não há mais nada, minha irmã? — disse-lhe eu.

Ela empalideceu, depois corou e empalideceu de novo. Sorriu com uma tranquila tristeza, ao que me pareceu e meneou a cabeça.

Eu tinha procurado encarreirá-la no assunto de que me minha tia me havia falado; porque, por mais dolorosa que essa confidência devesse ser para mim, eu queria submeter-lhe o meu coração e cumprir o meu dever para com ela. Mas vi que se perturbava e não insisti.

— Tem muito que fazer, querida Inês?

— Com as minhas discípulas? — disse ela levantando a cabeça; tinha recuperado a sua habitual serenidade.

— Sim. Dão-lhe muita maçada, não é verdade?

— O trabalho que tenho é tão suave — respondeu — que seria quase ingrata se lhe desse esse nome.

— Nada do que é em bem do seu semelhante lhe parece difícil — repliquei.

Inês empalideceu de novo, e, de novo, quando baixava a cabeça, tornei a reparar no mesmo sorriso triste.

— O senhor há-de esperar para ver meu pai — disse ela alegremente — e passará o dia connosco. Talvez até queira dormir no seu antigo quarto. Continua a ter o seu nome.

Isso era-me impossível; eu tinha prometido a minha tia regressar à noite, mas estimaria imenso, disse, passar o dia com eles.

— Tenho lá dentro de acabar qualquer coisa — disse Inês —, mas aqui estão os seus livros, Trotwood e a nossa antiga música.

— Estou a ver até as antigas flores — disse olhando em volta de mim — ou pelo menos as espécies de que mais gostava dantes.

— Tive gosto — replicou Inês sorrindo — em conservar tudo aqui durante a sua ausência, no mesmo estado que quando éramos crianças. Éramos então tão felizes!

— Oh! Sim! Deus é testemunha disso!

— É tudo quanto me recordava o meu irmão — disse Inês por seu turno, voltando para mim os seus olhos afectuosos — me fez doce companhia. Até este cesto em miniatura — prosseguiu ela, mostrando-me o que lhe pendia da cinta, todo cheio de chaves — parece-me, quando o ouço tilintar, que me canta uma ária da nossa juventude.

Sorriu e saiu pela porta por onde havia entrado.

Pertencia-me conservar com um cuidado religioso esse afecto de irmã. Era tudo quanto me restava e era um tesouro. Se alguma vez eu abalasse essa santa confiança, querendo desnaturá-la, estava perdida para todo o sempre e não poderia renascer. Tomei a firme resolução de não lhe correr o risco. Quanto mais a amava, tanto mais estava interessado em não me esquecer um momento.

Passeei pelas ruas, tornei a ver o meu antigo inimigo o carniceiro, hoje transformado em constable, com o bastão, distintivo honroso da sua autoridade, pendurado na loja; fui ver o lugar aonde o combate se dera; e lá meditei acerca de miss Shepherd e acerca da mais velha das miss Jorkins e acerca de todas as minhas frívolas paixões, amores ou ódios dessa época. Nada me parecia ter sobrevivido senão Inês, a minha estrela sempre mais brilhante e mais elevada no céu.

Quando regressei, Mister Wickfield já havia voltado; alugara, a umas duas milhas da cidade, um jardim aonde ia trabalhar quase todos os dias. Encontrei-o tal como minha tia mo descrevera. Jantámos em companhia de cinco ou seis pequenitas; tinha o ar de não ser senão a sombra do belo retrato que se via na parede.

A tranquilidade e a paz que antigamente reinavam nessa pacífica habitação e de que eu tinha conservado uma tão profunda recordação, haviam voltado ali. Terminado o jantar, Mister Wickfield, não tomando já o vinho da sobremesa e eu não o querendo também, saímos todos. Inês e as suas pequenas discípulas puseram-se a cantar, a tocar e a trabalhar juntas. Depois do chá, as crianças retiraram e ficámos todos três juntos, a conversar do passado.

— Tem para mim bastantes causas de desgosto, de profundo desgosto e de remorso, Trotwood — disse Mister Wickfield, abanando a cabeça encanecida —; o senhor sabe-o demasiado. Mas, apesar disso tudo, não ficaria satisfeito, se se me apagasse a recordação, ainda mesmo que isso estivesse na minha mão.

Facilmente o podia acreditar: Inês estava ao lado dele!

— Aniquilaria ao mesmo tempo a da paciência, da dedicação, da fidelidade, do amor da minha filha e isso não o quero eu esquecer, não! Nem mesmo para conseguir eu próprio esquecer-me.

— Compreendo, senhor Wickfield — disse-lhe eu docemente. — Eu venero-a. Sempre pensei nisso... sempre, com veneração.

— Mas ninguém sabe, nem mesmo o senhor — prosseguiu ele — tudo quanto ela fez, quanto suportou, tudo quanto ela sofreu. Minha Inês!

Ela tinha posto a sua mão no braço do pai, como para o fazer calar e estava pálida, bastante pálida!

— Vamos! Vamos! — disse ele, com um suspiro, repelindo evidentemente a recordação de um desgosto que a filha tivera que suportar, que ainda até suportava (pensei no que minha tia me dissera). — Trotwood, eu nunca lhe falei da mãe de Inês. Alguém falou-lhe nela?

— Não, senhor.

— Não é muito o que tenho a dizer... se bem que ela tivesse sofrido muito. Casou comigo contra vontade do pai, que a renegou. Ela suplicou-lhe que lhe perdoasse, antes de nascer Inês. Era um homem muito severo e a mãe tinha morrido há bastante tempo. Não atendeu a súplica. Despedaçou-lhe o coração.

Inês encostou-se ao ombro do pai e passou-lhe docemente os braços em volta do pescoço.

— Era um coração doce e terno — prosseguiu ele — e o pai despedaçou-o. Eu sabia quanto minha mulher era uma natureza franzina e delicada. Ninguém o podia saber tão bem como eu. Amava-me muito, mas nunca foi feliz. Sofreu sempre em segredo esse golpe doloroso e quando o pai a repeliu pela última vez, estava fraca e doente... enfraqueceu mais e depois morreu. Deixou-me Inês apenas com quinze dias de nascida e deixou-me os cabelos grisalhos que se recorda de me ver a primeira vez que aqui veio.

E beijou a filha.

— O meu amor pela minha filha era um amor cheio de tristeza, porque toda a minha alma estava enferma. Mas de que serve falar-lhe de mim? É de sua mãe e dela que eu lhe queria falar, Trotwood. Não tenho necessidade de lhe dizer o que fui nem ainda o que sou, bem o adivinhará; eu sei. Quanto a Inês, escuso também de lhe dizer o que ela é; mas encontrei sempre nela qualquer coisa da história da sua pobre mãe; e é por isso que dela lhe falo agora, visto que de novo nos achámos reunidos, depois de tamanhas transformações. Concluí.

Ele baixou a cabeça, ela inclinou sobre ele o seu rosto de anjo, que, com as suas carícias filiais, tomou ainda um carácter mais patético depois dessa narrativa. Uma cena tão emocionante era em verdade de molde a fixar de uma maneira muito particular na minha memória a recordação dessa noite, a primeira da nossa reunião.

Inês levantou-se, e, aproximando-se docemente do piano, pôs-se a tocar algumas das antigas árias que tantas vezes tínhamos ouvido no mesmo lugar.

— Continua com a preocupação de viajar ainda mais? — perguntou-me Inês quando eu estava de pé ao lado dela.

— E que pensa a minha irmã?

— Espero que não.

— Então não tenho projecto algum, Inês.

— Já que me consulta, Trotwood, dir-lhe-ei que a minha opinião é que o senhor não deve fazer nada — continuou ela docemente. — A sua reputação crescente e os seus resultados animam-no a prosseguir; e quando mesmo eu puder passar sem o meu irmão — continuou ela fixando os seus olhos em mim — talvez que o tempo, mais exigente, reclame de si uma vida mais activa.

— O que eu sou, é obra sua, Inês; avalie por isso.

— Obra minha, Trotwood?

— Sim, Inês, minha amiga! — disse-lhe eu, inclinando-me para ela. — Quis dizer-lhe hoje, ao tornar a vê-la, qualquer coisa que não cessou de estar em meu coração desde que morreu Dora. Recorda-se de quando foi ter comigo à minha salinha de visitas e que me apontou para o céu, Inês?

— Oh, Trotwood! — prosseguiu ela, com os olhos marejados de lágrimas. — Ela era tão terna, tão sincera, tão jovem! Poderei eu esquecê-la algum dia?!

— Tal como me apareceu então, minha irmã, tal tem sido sempre para mim. Bastantes vezes tenho dito comigo depois desse dia: «A Inês mostrou-me sempre o céu; sempre me conduziu para um fim melhor; sempre me guiou para um mundo mais elevado».

Ela meneou a cabeça em silêncio; através das suas lágrimas tornei a notar ainda o doce e triste sorriso.

— E sou-lhe tão reconhecido, Inês, tão obrigado eternamente, que não tenho nome para o afecto que lhe consagro. Eu quero que saiba e todavia não sei como dizer-lho, que toda a minha vida crerei em si e me deixarei guiar por si, como o fiz no meio das trevas que se afastaram para longe de mim. Suceda o que suceder, sejam quais forem as novas ligações que possa formar, sejam quais forem as mudanças que possam sobrevir entre nós, segui-la-ei sempre com os olhos, crerei em si e amá-la-ei, como hoje faço e como sempre o fiz. Será, como sempre tem sido, a minha consolação e o meu apoio. Até ao dia da minha morte, minha irmã querida, vê-la-ei sempre diante de mim, apontando-me o céu!

Ela pousou a sua mão sobre a minha e disse-me que se orgulhava de mim e do que eu lhe dizia, mas que eu a louvava muito mais do que ela merecia. Depois continuou a tocar docemente, mas sem me desfitar.

— Sabe, Inês, que o que ouvi esta noite a seu pai corresponde maravilhosamente ao sentimento que me inspirou quando a princípio a conheci, quando eu não passava ainda de um pobre colegialzinho sentado a seu lado.

— O senhor sabia que eu não tinha mãe — respondeu ela com um sorriso — e isso dispunha-o a amar-me um pouco.

— Mais do que isso, Inês. Sentia quase tanto como se soubesse essa história, que havia na atmosfera que nos rodeava qualquer coisa de doce e de terno que eu não podia explicar a mim próprio; qualquer coisa que, numa outra, poderia ser tristeza (e agora sei que tinha razão), mas que em si não tinha esse carácter.

Ela ia tocando docemente algumas notas e fitava-me sempre.

— Não se ri da ideia que eu então acariciava, ideias doidas, Inês?

— Não!

— E se eu lhe dissesse que, mesmo então, compreendia que a Inês poderia amar fielmente, a despeito de qualquer desânimo, amar até à sua última hora, não riria também dessa fantasia?

— Oh, não! Oh, não!

Houve um instante em que o seu rosto tomou uma expressão de tristeza que me fez estremecer, mas um momento depois continuou a tocar docemente, fitando-me com o seu belo e tranquilo sorriso.

Quando à noite eu ia a caminho de Londres, perseguido pelo vento como por uma recordação inflexível, pensando nela, receava que não fosse feliz. Eu não o era, mas tinha conseguido até então cancelar fielmente o passado; e, pensando nela, no momento em que me apontava o céu, pensava nessa residência eterna aonde eu poderia amá-la um dia, com um amor desconhecido na terra e dizer-lhe a luta que travei a dentro do coração, quando a amava neste vale de lágrimas.

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