Capítulo XXXVI - Entusiasmo

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Comecei o dia seguinte indo mergulhar-me ainda na água dos banhos romanos, depois tomei o caminho de Highgate. Saíra do meu abatimento; já não tinha medo dos fatos coçados e já não suspirava atrás dos lindos corcéis alvadios. Estava mudada toda a minha maneira de considerar as nossas desgraças. O que eu tinha a fazer era provar a minha tia que as suas bondades passadas não haviam sido prodigalizadas a uma criatura ingrata e insensível. O que eu tinha a fazer era pegar resolutamente no machado do rachador para abrir caminho através da floresta das dificuldades em que me encontrava perdido, indo deitando abaixo adiante de mim as árvores encantadas que me separavam ainda de Dora: e caminhava a grandes passos, como se esse fosse um meio de chegar mais depressa ao meu fim.

Quando me encontrei nessa estrada de Highgate que me era tão familiar e que eu seguia hoje em disposições tão diferentes das minhas antigas ideias de prazer, pareceu-me que uma mudança completa acabava de operar-se na minha vida; mas eu não estava desanimado. Novas esperanças, um novo fim, apareceram-me ao mesmo tempo que a minha vida nova. O trabalho era grande, mas a recompensa não tinha preço. Era Dora que era a recompensa e era bem preciso conquistar Dora.

Eu estava em tais transportes de coragem que lamentava que o meu vestuário não estivesse já um tanto coçado; tardava-me a começar a deitar abaixo árvores na floresta das dificuldades e isso com bastante custo, para provar o meu vigor. O meu desejo era perguntar a um velho bom homem que britava pedra na estrada com lunetas de arame, se me emprestava por um momento o seu martelo e se me deixava começar assim a abrir um caminho no granito para chegar até Dora. Agitava-me tanto, estava tão completamente esbaforido e tinha tanto calor, que me parecia que tinha ganho não sei quanto dinheiro. Achava-me neste estado, quando entrei numa casinha que estava para alugar e examinei-a escrupulosamente, sentindo que era necessário tornar-me um homem prático. Era exactamente tudo o que nos era preciso a Dora e a mim; havia um jardinzinho à frente da casa para que Jip pudesse correr à vontade e ladrar contra quem passasse através das paliçadas. Saí de lá mais mais excitado que nunca e segui num passo tio precipitado a estrada de Highgate que cheguei lá uma hora mais cedo; de resto, quando não chegasse tão adiantado, sempre me veria obrigado a passear um pouco para me refrescar, antes de ficar um poucochinho apresentável. O meu primeiro cuidado, depois de alguns preparativos para me acalmar, foi descobrir a morada do doutor. Não era do lado de Highgate aonde residia Mistress Steerforth, mas completamente do outro lado da povoação. Quando me certifiquei deste facto, voltei por uma curiosidade a que não pude resistir, por uma travessa que passava junto da casa de Mistress Steerforth e olhei por cima do muro do jardim. As janelas do quarto de Steerforth estavam fechadas. As portas da estufa estavam abertas e Rosa Dartle, em cabelo, passeava de cá para lá, num andar brusco e precipitado, por uma rua areada em volta do tabuleiro de relva. Fez-me o efeito de um animal feroz que faz sempre o mesmo caminho, até onde chega a cadeia que arrasta no seu trilho batido, corroendo-se o coração.

Deixei brandamente o meu posto de observação, fugindo dessa vizinhança e arrependendo-me de me ter aproximado dela e depois passeei longe dali até às dez horas. A igreja encimada por um campanário esguio que se vê agora do cimo da colina, não existia nessa época, para me indicar a hora. Havia em seu lugar uma velha casa de tijolos vermelhos que servia de escola, uma linda casa, palavra de honra! Fazia gosto ir ali à escola, tanto quanto me lembra.

Aproximando-me da residência do doutor, linda casa de campo, elegante, um pouco antiga e aonde ele devia ter gasto dinheiro, a julgar pelas reparações e embelezamentos que, pareciam ainda muito recentes, descobri-o a passear no jardim com as suas polainas e tudo o mais, como se não tivesse cessado de passear desde o tempo em que eu era seu discípulo. Estava rodeado também das suas antigas companhias, porque não faltavam grandes árvores por ali e vi na relva dois ou três corvos que olhavam para ele, como se tivessem recebido cartas dos seus camaradas de Canterbury a seu respeito e em consequência disso o vigiassem de perto.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now