Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro

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Não vi mais Uriah Heep até ao dia da partida de Inês. Estava eu no escritório da diligência para me despedir dela e vê-la partir, quando o encontrei, ia para Canterbury no mesmo veículo. Tive pelo menos uma pequena satisfação ao ver essa sobrecasaca castanha muito curta de cinta, estreita e mal posta, em companhia de um guarda-chuva que se assemelhava a uma tenda, tudo marcando a ponta da bancada traseira da imperial, enquanto Inês tinha naturalmente um lugar dentro; mas eu merecia bem essa indemnizaçãozinha pelo sacrifício de ter de me fazer amável com ele, enquanto Inês podia ver-nos. À portinhola da diligência, como no jantar de Mistress Waterbrook, pairava ele em torno de nós, sem descanso, como um grande abutre, devorando cada palavra que eu dizia a Inês ou que ela me dizia.

No estado de perturbação em que me lançara a confidência que me fizera ao canto do fogo, eu tinha muitas vezes reflectido nas expressões que Inês empregara ao falar da sociedade: «Fiz, creio, o que devia fazer. Sabia que era preciso, para descanso do papá, que este sacrifício se consumasse e obriguei-o a consumá-lo». Desde então eu fora perseguido pelo triste pressentimento de que ela cederia a esse mesmo sentimento e que dele tiraria forças para consumar outro qualquer sacrifício por amor de seu pai. Conhecia o afecto que ela lhe tinha. Sabia quanto a sua natureza era dedicada. Por ela própria fui informado de que se considerava a causa inocente dos erros de Mister Wickfield e que julgava ter assim contraído com ele uma dívida que evidentemente desejava solver. Eu não encontrava consolação alguma em notar a diferença que existia entre ela e esse miserável ruivo de sobrecasaca castanha, porque sentia que o grande perigo provinha precisamente da diferença que havia entre a pureza e a dedicação da sua alma e a baixeza sórdida da de Uriah. Ele sabia-o bem e sem dúvida que tinha feito entrar tudo isso em linha de conta, nos seus cálculos hipócritas.

Todavia, eu estava tão convencido de que a perspectiva longínqua de um tal sacrifício bastaria a destruir a felicidade de Inês e estava por tal forma seguro, em consequência das suas maneiras, de que ela não desconfiava de nada e que essa sombra ainda não caíra na sua fronte, que não pensava em avisá-la do golpe de que estava ameaçada, para não lhe fazer um insulto gratuito. Separámo-nos, pois, sem explicação alguma; ela fazia-me sinais e sorria-me da portinhola da diligência para me dizer adeus, enquanto eu estava vendo na imperial o seu génio mau, que se contorcionava de prazer, como se já a tivesse empolgado nas suas garras triunfantes.

Durante muito tempo, esse último olhar deitado sobre mim não cessou de me perseguir. Quando Inês me escreveu para me anunciar a sua feliz chegada, a sua carta encontrou-me tão atribulado por causa dessa recordação como no próprio momento da sua partida. Todas as vezes que eu caía em divagação, estava seguro de que essa visão me aparecia e duplicava os meus tormentos. Não passava uma única noite sem nisso pensar. Esse pensamento tornara-se uma parte da minha vida, tão inseparável da minha existência como a minha cabeça do meu corpo.

Eu tinha todo o tempo de me torturar à vontade, porque Steerforth estava em Oxford, escrevia-me ele e quando eu não estava no tribunal dos Commons, estava quase sempre só. Creio que começava já a sentir uma certa desconfiança de Steerforth. Respondi-lhe do modo mais afectuoso, mas parece-me que afinal de contas não me incomodava, se ele não pudesse vir a Londres nesse momento. Desconfio que, a falar verdade, não sendo já combatida pela presença de Steerforth, a influência de Inês operava sobre mim com tanto mais poder, quanto mais lugar ocupava nos meus pensamentos e nas minhas preocupações.

Todavia, iam decorrendo dias e semanas. Eu tinha tomado definitivamente lugar em casa de Mister's Spenlow & Jorkins. Minha tia dava-me oitenta libras esterlinas por ano, pagava-me o aluguer e muitas outras despesas. Alugara-me casa por um ano e conquanto me sucedesse ainda encontrá-la um pouco triste à tarde e as noites serem compridas, tinha acabado por me criar uma espécie de melancolia uniforme e por me resignar ao café de Mistress Crupp e mesmo engoli-lo, já não à chávena, mas a grandes baldes, tanto quanto me lembro desse período da minha existência. Foi quase nessa época que eu fiz também três descobertas: a primeira foi que Mistress Crupp era muito sujeita a uma indisposição extraordinária a que ela chamava espasmos, geralmente acompanhada de uma inflamação nas fossas nasais e que exigia para tratamento um consumo perpétuo de absinto; a segunda é que era preciso que houvesse qualquer coisa de particular na temperatura da minha despensa que fizesse rebentar as garrafas de aguardente; enfim, descobri que estava só no mundo e muito inclinado a recordar esta circunstância em fragmentos de poesia nacional de minha composição.

David Copperfield (1850)Where stories live. Discover now