David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo LII - Assisto a uma explosão

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By ClassicosLP

Quando chegámos à véspera do dia para o qual Mister Micawber nos marcara uma tão misteriosa entrevista, consultamo-nos, minha tia e eu, a fim de sabermos o que tínhamos a fazer, porque minha tia não tinha nenhuma vontade de sair de junto de Dora. Ai de mim! Quão fácil me era agora levar Dora ao colo!

Estávamos dispostos, a despeito do desejo manifestado por Mister Micawber, a decidir que minha tia ficaria em casa; e Mister Dick e eu encarregar-nos-íamos de representar a família. Era mesmo uma coisa combinada, quando Dora veio desarranjar tudo, declarando que nunca se perdoaria a si própria e que nem o perdoaria ao mau do seu maridinho, se minha tia não fosse connosco a Canterbury.

— Não falarei para si — disse ela a minha tia sacudindo os caracóis — serei desagradável, farei ladrar Jip todo o dia contra si. Se a senhora não for, direi que é uma velha resmungona!

— Ora essa! — disse minha tia rindo. — A Florzinha sabe que não pode passar sem mim!

— Posso, sim, posso! — disse Dora. — A senhora não me serve para nada! A senhora nunca me vem ver ao meu quarto, em todo o santo dia; a senhora nunca se vem sentar ao pé de mim, para me contar porque é que o meu Dody tinha os sapatos todos rotos e porque é que estava coberto de pó, pobre homenzinho! A senhora nunca faz nada para me dar gosto, há de confessar!

E Dora apressou-se a beijar minha tia, dizendo:

— Não, não, sou eu que me estou a rir! — como se tivesse medo de que minha tia acreditasse que estava a falar a sério. — Mas, minha tia — prosseguiu em tom de mimo — faça favor de me ouvir: é preciso ir lá e atormentá-la-ei enquanto não me disser que sim e tornarei esse mau rapaz horrivelmente desgraçado se ele não a levar lá. Serei insuportável e Jip também! Não lhe deixarei um momento de trégua, para a fazer arrepender de não ter ido. Mas esperem lá — disse ela, atirando para trás os seus compridos cabelos e olhando para minha tia e para mim com um ar interrogador — e porque é que não querem ir ambos? Eu não estou assim tão doente, pois não é verdade?

— Ora, ora! Que pergunta! — exclamou minha tia.

— Que ideia! — disse eu.

— Sim, eu bem sei que sou uma tolinha! — disse Dora fitando-nos um após outro, depois estendeu a sua linda boca para nos beijar. — Pois bem, então é preciso que vão lá ambos, ou então não os acredito e far-me-ão chorar.

Vi pelo rosto de minha tia que ela começava a ceder e Dora expandiu-se vendo-o também.

— Depois hão-de ter tantas coisas para me contar, que me serão precisos pelo menos oito dias para ouvir e compreender; — disse Dora — porque eu não hei-de compreender logo de seguida, se forem negócios, como é muito provável. E depois, se houver somas a fazer, não darei conta de mim e este mau rapaz estará todo o tempo de ar contrariado. Vamos, irão, pois não é assim? Não estarão ausentes senão uma noite e Jip ficará a tomar conta de mim durante esse tempo. David levar-me-á para o quarto antes de saírem e só de lá sairei quando regressarem; levarão também a Inês uma carta de censura; quero ralhar-lhe por não nos ter vindo ver.

Decidimos, sem mais contestações, que partiríamos ambos e que Dora era uma astuciosazinha que se divertia a fingir de doente para se fazer tratar. Ela estava encantada e de muito bom humor; nessa noite seguimos na mala-posta de Canterbury, minha tia, Mister Dick, Traddles e eu.

Encontrei uma carta de Mister Micawber no hotel em que nos pedira que o esperássemos e que bastante trabalho nos deu para nos abrir a porta a meio da noite; escrevia-me que nos viria ver no dia seguinte de manhã, às nove horas e meia precisas. Depois do que, fomos, a tiritar, deitar-nos, a essa hora incómoda, passando, para chegarmos às respectivas camas, através de estreitos corredores que se diriam, pelo cheiro, curtidos numa solução de sopa e esterco.

No dia seguinte de manhã cedo, dei uma volta pelas ruas pacíficas dessa antiga cidade; e passeei à sombra de venerandos claustros e de igrejas. Os corvos continuavam a pairar sobre as torres da catedral e as próprias torres, que dominam toda a rica região de em torno cheia de rios graciosos, pareciam fender o ar da manhã, serenas e pacíficas, como se nada tivesse mudado na terra. E, todavia, os sinos, ressoando aos meus ouvidos, recordavam-me bem que tudo muda neste mundo: recordavam-me a sua própria velhice e a mocidade da minha encantadora Dora; contavam-me a vida de quantos tinham passado por ali perto para amar e depois para morrer, enquanto o seu som ia bater na armadura ferrugenta do príncipe Negro na catedral, para ir perder-se após, espaços em fora, como um círculo que se forma e desaparece na superfície das águas.

Lancei um olhar para a velha casa que formava a esquina da rua, mas fiquei distante dela: talvez, se me tivessem visto, involuntariamente prejudicasse a causa que vinha servir. O sol da manhã doirava com seus raios o telhado e as janelas dessa habitação e o meu coração ressentia qualquer coisa da paz que outrora tinha conhecido.

Dei uma volta pelos arredores durante uma ou duas horas e depois regressei pela rua principal, que começava a ter movimento. Numa loja que se abria, vi o meu antigo inimigo, o carniceiro, que embalava um pequenito e parecia ter-se tornado um membro muito pacífico da sociedade.

Pusemo-nos a almoçar; a impaciência começava a invadir-nos. Eram quase nove horas e meia, esperávamos Mister Micawber com extrema agitação. Afinal, levantámo-nos do almoço; só Mister Dick é que tinha comido com bom apetite. Minha tia pôs-se a passear de cá para lá na sala, Traddles sentou-se no canapé, com o pretexto de ler um jornal, que estudava, de olhos no tecto e eu pus-me à janela, para avisar os meus companheiros, mal avistasse Mister Micawber. Não tive que esperar muito: davam nove horas e meia quando o vi surgir na rua.

— Ele aí vem! — exclamei eu —, e não traz o fato preto!

Minha tia atou as fitas do chapéu (que tinha tirado enquanto almoçava) e pôs o xaile, como se se aprestasse para qualquer acontecimento que demandasse toda a sua energia. Traddles abotoou o casacão com um ar determinado. Mister Dick não compreendia nada destes preparativos terríveis, mas julgando necessário imitá-los, enterrou o chapéu pela cabeça abaixo, com todas as suas forças e depois tirou-o imediatamente, para dar os bons dias a Mister Micawber.

— Meus senhores e minha senhora — disse Mister Micawber — bons dias! Meu caro senhor — disse ele a Mister Micawber, que lhe tinha dado um vigoroso aperto de mão — o senhor é muito bondoso!

— Já almoçou? — disse Mister Dick. — Quer uma costeleta?

— Por nada no mundo, meu caro senhor! — exclamou Mister Micawber, impedindo-o de tocar a campainha. — Há muito tempo, senhor Dixon, que o apetite e eu andamos desavindos.

Mister Dixon ficou tão encantado com o seu novo nome, que deu a Mister Micawber um novo aperto de mão, rindo como uma criança.

— Dick — disse-lhe minha tia — atenção!

Mister Dick corou e ficou muito direito.

— Agora, senhor — disse minha tia a Mister Micawber, ao mesmo tempo que calçava as luvas — estamos prontos a partir para o Vesúvio ou para outra qualquer parte que seja da sua vontade.

— Minha senhora — respondeu Mister Micawber — tenho esperança, efectivamente, de que não tarda a assistir a uma erupção. O senhor Traddles dá-me licença, não é verdade, de dizer que temos conferenciado ambos, o senhor e eu?

— É um facto, Copperfield — disse Traddles, para o qual eu olhava surpreendido. — Mister Micawber consultou-me acerca do que contava fazer e eu dei-lhe a minha opinião o melhor que pude.

— A menos que eu não esteja iludido, senhor Traddles — continuou Mister Micawber — o que eu tenho tenção de descobrir aqui é ou não muito importante?

— Extremamente importante — disse Traddles.

— Talvez, em tais circunstâncias, minha senhora e meus senhores — continuou Mister Micawber —, hão-de dar-me a honra de se deixarem dirigir por um homem que, por indigno que seja de ser considerado outra coisa senão um frágil batei naufragado na praia da vida humana, é todavia um homem como os senhores; alguns erros individuais e uma fatal combinação de acontecimentos foram as únicas coisas que o fizeram decair da sua posição natural.

— Todos nós temos plena confiança em si, senhor Micawber — disse-lhe eu. — Faremos tudo o que lhe aprouver.

— Senhor Copperfield — prosseguiu Mister Micawber — a sua confiança não está mal colocada pelo momento. Peço-lhes a fineza de me deixarem ir à frente cinco minutos, pois hão-de ter a bondade de fazer uma visita a miss Wickfield, no escritório de Mister's Wickfield & Heep, aonde sou caixeiro assalariado.

Minha tia e eu olhámos para Traddles, que fazia um sinal de aprovação.

— Nada mais tenho a acrescentar — continuou Mister Micawber.

Depois, com grande espanto meu, fez-nos uma profunda mesura, com um ar muito cerimonioso e desapareceu. Notei que ele estava extremamente pálido.

Traddles limitou-se a sorrir, abanando a cabeça, quando olhei para ele a perguntar-lhe o que tudo isso significava: os seus cabelos estavam mais eriçados do que nunca. Puxei do relógio para esperar que o prazo dos cinco minutos expirasse. Minha tia, de relógio na mão, fazia o mesmo. Enfim, Traddles ofereceu-lhe o braço e saímos todos juntos para nos dirigirmos a casa dos Wickfield, sem trocarmos uma palavra em todo o percurso.

Encontrámos Mister Micawber no seu escritório do rés-do-chão, no pequeno torreão; tinha o ar de quem trabalha activamente. Tinha a régua metida por entre o colete, mas uma ponta aparecia, numa das extremidades, como um adorno de nova espécie.

Vendo que me pertencia tomar a palavra, disse muito alto:

— Como está, senhor Micawber?

— Senhor Copperfield — disse gravemente Mister Micawber — espero que passe bem!

Miss Wickfield está em casa?

Mister Wickfield encontra-se doente e de cama, senhor — disse ele —; tem uma febre reumática; mas miss Wickfield estimará muito, estou certo, tornar a ver amigos tão antigos. Quer entrar, senhor?

Precedeu-nos na sala de jantar; fora ali que, pela primeira vez, me tinham recebido nessa casa; depois, abrindo a porta do aposento que servia noutro tempo de escritório a Mister Wickfield, anunciou com uma voz retumbante:

Miss Trotwood, o senhor Copperfield, o senhor Tomás Traddles e o senhor Dixon.

Eu não tinha tornado a ver Uriah Heep desde o dia em que lhe bati. Evidentemente, a nossa visita espantava-o quase tanto como nos espantava a nós. Não franziu as sobrancelhas, porque era coisa que não tinha, mas enrugou a testa de maneira a fechar quase completamente os seus olhos pequenos, enquanto que levava a mão hedionda ao queixo, com um ar de surpresa e de ansiedade. Foi apenas obra de um momento: entrevi-o a olhar por cima do ombro de minha tia. Um momento depois estava mais humilde e rastejante do que nunca.

— Ah! Certamente! — disse ele. — É este um prazer inesperado! É uma festa com que não contava, tantos amigos juntos! Senhor Copperfield, passa bem, assim o espero? E se posso humildemente exprimir-me assim, o senhor é sempre bem vindo junto dos seus antigos amigos. Mistress Copperfield vai melhor, espero bem, senhor? Andamos bastante inquietos com a sua saúde há um certo tempo, asseguro-lhe.

Importava-me pouco deixar-lhe agarrar a minha mão, mas como fazer?

— As coisas têm aqui mudado bastante, miss Trotwood, desde o tempo em que eu era apenas um humilde caixeiro e em que tomava conta do seu pónei, não é verdade? — disse Uriah com o seu sorriso mais mesquinho. — Mas eu é que não mudei, miss Trotwood.

— Para lhe falar francamente, senhor — disse minha tia — se isso pode ser-lhe agradável, dir-lhe-ei que o senhor realizou tudo quanto prometia na sua mocidade.

— Obrigado pela sua opinião, miss Trotwood — disse Uriah, com as suas costumadas contorções. — Micawber, queira avisar miss Inês e minha mãe... Minha mãe vai ficar muito perturbada ao ver tão brilhante companhia! — disse Uriah, oferecendo-nos cadeiras.

— Não está muito ocupado, senhor Heep? — perguntou Traddles, cujos olhos acabavam de encontrar o olhar fouveiro da raposa, que o fitava de esconso, com ar interrogador.

— Não, senhor Traddles — respondeu Uriah, retomando o seu lugar oficial e apertando uma contra a outra as duas mãos ossudas, entre dois joelhos igualmente ossudos — não tanto como era meu desejo. Mas os jurisconsultos são como os tubarões ou como as sanguessugas, o senhor sabe, não são fáceis de contentar! Não é porque Mister Micawber e eu não tenhamos bastante que fazer, senhor, devido a Mister Wickfield não poder entregar-se a trabalho algum, por assim dizer. Mas é para nós um prazer, tanto como um dever, trabalhar para ele. O senhor não está ligado com Mister Wickfield, creio, senhor Traddles? Parece-me que não tive a honra de o ver por cá senão uma única vez?

— Não, não estou ligado com Mister Wickfield — respondeu Traddles —; se o estivesse, já teria tido talvez ocasião de o visitar há mais tempo, senhor Heep.

Havia no tom com que Traddles pronunciou estas palavras qualquer coisa que inquietou de novo Uriah; deitou-lhe um olhar sinistro e desconfiado. Mas tranquilizou-se vendo o rosto franco de Traddles, as suas maneiras simples, os seus cabelos eriçados e continuou, balançando-se na cadeira:

— Pois tenho pena, senhor Traddles, porque o teria apreciado como eu o aprecio. Os seus pequenos defeitos não teriam feito senão tornar-lho mais querido. Mas se quiser ouvir o elogio do meu sócio, dirija-se a Copperfield. De resto, toda a família de Mister Wickfield é um assunto sobre o qual a eloquência dele nunca se esgota.

Não tive tempo de declinar o cumprimento, quando estivesse disposto a fazê-lo. Inês acabava de entrar, seguida de Mistress Heep. Não tinha o ar tão tranquilo como de ordinário; evidentemente, tivera que suportar muita ansiedade e fadiga. Mas a sua cordialidade obsequiosa e a sua serena beleza eram ainda mais surpreendentes.

Eu vi Uriah observá-la, enquanto ela nos cumprimentava; fez-me lembrar a hediondez dos génios maus espiando uma boa fada. Depois vi Mister Micawber fazer um sinal a Traddles, que saiu logo.

— Não precisa de estar aqui, Micawber — disse Uriah.

Mas Mister Micawber continuava de pé em frente da porta, com uma mão apoiada na régua que trazia debaixo do colete. Via-se bem, a não haver equívoco, que ele não largava de olho um indivíduo e que esse indivíduo era o seu abominável patrão.

— Porque é que espera? — disse Uriah. — Micawber, não ouviu já dizer-lhe que não é preciso aqui?

— Ouvi, sim! — disse Mister Micawber, sempre imóvel.

— Então porque é que não se retira? — tornou Uriah.

— Porque... porque assim me convém! — respondeu Mister Micawber, que já não podia conter-se.

As faces de Uriah perderam toda a sua cor e cobriram-se de uma palidez mortal, fracamente iluminada pelo vermelho das suas pálpebras. Olhou atentamente para Mister Micawber, com uma cara ofegante.

— O senhor não passa de um pobre diabo, toda a gente o sabe bem — disse ele esforçando-se por sorrir — e tenho receio de que me obrigue a desfazer-me de si... Saia! Falar-lhe-ei daqui a pouco...

— Se há neste mundo um celerado — disse Mister Micawber, explodindo de repente com uma veemência inaudita —, um velhaco a quem mais odeio na minha vida, esse patifório chama-se... Heep!

Uriah deu um salto para trás, como se fosse picado por um réptil venenoso. Passeou lentamente os seus olhares por nós todos, com o ar mais sombrio e mais mau; depois disse em voz baixa:

— Ah! Ah! É uma conspiração! Os senhores aprazaram para aqui a entrevista; ao que parece, Copperfield, quer entender-se com o meu caixeiro? Mas acautelem-se! Não levarão a melhor; conhecemo-nos bem, o senhor e eu; não gostamos nada um do outro. Desde a sua primeira visita a esta casa, o senhor foi sempre um cão sarnento; teve ciúmes da minha elevação, não é assim? Mas advirto-o, nada de conjuras contra mim, ou a minha valerá bem a sua! Micawber, retire-se, tenho a dizer-lhe duas palavras...

— Senhor Micawber — disse eu — faz-se uma estranha mudança neste patife; chegou a dizer a verdade sobre um ponto e é que se sente açulado... Trate-o como ele merece!

— Os senhores são pessoas amáveis — disse Uriah, sempre no mesmo tom, enxugando com a manápula as gotas de suor pegajoso que lhe escorriam da testa — em comprarem o meu caixeiro, a escumalha da sociedade; um homem igual ao que já foi Copperfield antes que com ele tivessem caridade; e pagaram-lhe para ele me difamar com mentiras! Mistress Trotwood fará bem se puser cobro a isto, ou me encarrego de mandar prender o seu marido, mais depressa do que imagina. Não foi por frioleira que tenho estudado a fundo a sua história como homem do meu mister, minha rica senhora! Miss Wickfield, em nome da afeição que consagra a seu pai, não se junte a esta cambada, se não quer que eu o arruíne... E agora, Micawber, venha cá, tenho-o nas minhas garras! Repare bem no que está fazendo, se não quer ficar esmagado! Recomendo-lhe que se retire, enquanto ainda é tempo... Mas aonde é que está minha mãe? — disse ele, parecendo notar com certo alarme a ausência de Traddles e tocando bruscamente a campainha. — Que linda cena que esta gente vem fazer a nossa casa!

Mistress Heep está aqui, senhor! — disse Traddles, que reapareceu seguido da digna mãe desse digno filho. — Tomei a liberdade de me fazer conhecido dela.

— E quem é o senhor, para se fazer conhecer? — perguntou Uriah. — Que tem que vir aqui intrometer-se?

— Sou amigo e agente de Mister Wickfield, senhor — disse Traddles com um ar grave e calmo — e tenho no bolso os seus plenos poderes para proceder como procurador em seu nome, suceda o que suceder!

— Pois o burro velho beberia até perder o juízo — disse Uriah que se tornava cada vez mais horrendo — e subtrair-lhe-iam esse documento por meios fraudulentos?

— Sei, sim, que lhe subtraíram qualquer coisa por meios fraudulentos — contestou docemente Traddles — e o senhor sabe-o tão bem como eu, senhor Heep. Deixaremos esta questão para tratar com Mister Micawber, se assim o deseja.

— Uriah! — disse Mistress Heep num tom inquieto.

— Cale-se, minha mãe — respondeu ele — quanto menos se fala menos tolices se diz.

— Mas, meu amigo...

— Quer fazer-me o favor de se calar, minha mãe, e de me deixar falar?

Há muitíssimo tempo que eu sabia que o seu servilismo não passava de fingimento e que não havia nele senão velhacaria e falsidade; mas até ao dia em que deixou cair a máscara eu não fazia a menor ideia da extensão da sua hipocrisia. Por melhor que o conhecesse há muitos anos e o detestasse cordialmente, fiquei surpreendido da rapidez com que cessou de mentir, quando reconheceu que qualquer mentira lhe seria inútil; da maldade, da insolência e do ódio que deixou irromper, da sua alegria pensando, mesmo então, em todo o mal que tinha feito. Eu julgava saber a que ater-me a seu respeito e, todavia, foi uma revelação para mim, porque ao mesma tempo que ele afectava triunfar, estava desesperado e não sabia como sair desse mau lance.

Não falo do olhar que ele me lançou, enquanto ali estava de pé, a olhar-nos de soslaio a um por um, porque eu não ignorava que não me podia ver e recordava-me das marcas com que a minha mão lhe avergoara a cara. Mas quando os seus olhos se fixaram em Inês, tinham uma expressão de raiva que me fez tremer; via-se que sentia que ela lhe escapava; não poderia satisfazer a odiosa paixão que o fizesse esperar possuir uma mulher da qual era incapaz de apreciar todas as virtudes. Era lá possível que Inês fosse condenada, uma hora que fosse, a viver na companhia de semelhante homem!

Ele esgadanhava o queixo, depois fitava-nos com cólera, enfim, voltou-se outra vez para mim e disse-me num tom meio solene meio insolente:

— E o Copperfield que faz tanto ruído com a sua honra e com tudo o que se segue, como me explicará, senhor homem honrado, que tenha vindo espionar o que se passa em minha casa e subornar o meu caixeiro para que o pusesse ao facto dos meus negócios? Se fosse eu não me surpreenderia, porque não tenho a pretensão de ser um gentleman (se bem que não tenha vadiado pelas ruas, como fez noutros tempos, ao que conta Micawber), mas o senhor, isso não lhe causa medo? Não pensa em tudo quanto eu lhe poderei fazer, em paga, até mandar persegui-lo por conjura, etc., etc.? Muito bem. Nós veremos, senhor... Como é a sua graça? Já que queria fazer uma pergunta a Micawber, olhe, aí o tem! Porque, pois, não lhe diz que fale? Acredito que ele deve saber a lição, na ponta da língua.

Percebeu que tudo quanto dizia não fazia efeito nenhum sobre nós, e, sentando-se na beira da mesa, meteu as mãos nos bolsos, e, de pernas cruzadas, aguardou com ar resoluto a continuação dos acontecimentos.

Mister Micawber, que me custara muito a sofrear e que tinha várias vezes articulado a primeira sílaba da palavra celerado!, sem que eu lhe permitisse pronunciar o resto, explodiu enfim, tirou do colete a grande régua (provavelmente destinada a servir-lhe de arma de defesa) e sacou do bolso um volumoso documento em papel ministro, dobrado em forma de oficio. Abriu esse pacote com ar dramático e contemplou-o com admiração, como se antegostasse o encanto dos seus talentos de autor, depois começou a ler o que se segue:

— Querida miss Trotwood. Meus senhores...

— Abençoado seja! — exclamou minha tia. — Se se tratasse de um crime capital, gastaria uma resma de papel na petição.

Mister Micawber não a ouviu e continuava:

— Aparecendo perante vós para vos denunciar o mais abominável patife que, ao que me parece, tenha existido — disse sem levantar os olhos do papel, mas brandindo a régua como se fosse um monstruoso cacete na direcção de Uriah Heep —, não venho pedir-vos que atenteis em mim. Vítima, desde a infância, de embaraços pecuniários de que foi impossível desenvencilhar-me, tenho sido o ludíbrio das mais tristes circunstâncias. A ignomínia, a miséria, a aflição e a loucura têm-me sido colectivamente ou sucessivamente, assíduas companheiras durante a minha dolorosa carreira.

A satisfação com que Mister Micawber descrevia todas as infelicidades da sua vida só poderia ser igualada à ênfase com que lia a sua carta e à homenagem que ele próprio rendia a essa pequena obra prima, meneando a cabeça cada vez que julgava ter encontrado uma expressão suficientemente enérgica.

— Um dia, sob o golpe da ignomínia, da aflição e da loucura combinadas entrei no escritório da sociedade conhecida sob o nome de Wickfield & Heep, mas na realidade dirigida por Heep somente. HEEP, só HEEP é a mola real desta máquina. HEEP, só HEEP é um falsário e um gatuno.

Uriah ficou azul, de pálido que estava; saltou para deitar a mão à carta e rasgá-la em bocados. Mas Mister Micawber com uma destreza coroada de êxito, apanhou-lhe os dedos no ar, com a régua e pôs-lhe a mão direita fora de combate. Uriah deixou cair o pulso como se lho tivessem quebrado. O ruído da pancada foi tão seco, como se batesse num pedaço de pau.

— Diabos o levem! — disse Uriah estorcendo-se de dor. — Eu me desforrarei...

— Basta que se aproxime, Heep, horror de infâmia — exclamou Mister Micawber — e se a sua cabeça é de um homem e não de um diabo, ponho-a em cacos. Aproxime-se, aproxime-se!

Creio que nunca vi nada de mais risível do que essa cena. Mister Micawber fazia o molinete com a régua, gritando «Aproxime-se! Aproxime-se!» enquanto Traddles e eu o empurrávamos para um canto, donde ele fazia esforços inimagináveis para sair.

O seu inimigo resmungava por entre dentes friccionando a mão pisada; tirou o lenço e embrulhou-a nele, depois tornou a sentar-se na mesa, de olhos baixos e ar sombrio.

Quando Mister Micawber se acalmou um pouco, prosseguiu na sua leitura:

— O ordenado que me decidiu a entrar ao serviço de... Heep — parava sempre antes de pronunciar este nome, para o articular com mais vigor — tinha sido provisoriamente fixado em vinte e dois xelins e seis pence por semana. O resto devia ser regulado à vista do meu trabalho no escritório, ou antes, para dizer a verdade, à vista da indignidade do meu carácter, à vista da cupidez dos meus desejos, à vista da pobreza de minha família, à vista da parecença moral, ou antes imoral, que pudesse existir entre mim e... Heep! Terei necessidade de dizer que não tardou que me visse obrigado a solicitar de... Heep socorros pecuniários para acudir a Mistress Micawber e à nossa desditosa família que não fazia senão crescer no meio das nossas desgraças? Terei precisão de dizer que essa necessidade tinha sido prevista por... Heep? E que os adiantamentos que me fazia eram garantidos por declarações conforme as leis deste país? Ser-me-á preciso acrescentar que foi assim que essa aranha pérfida me atraiu à teia que tinha tecido para minha perdição?

Mister Micawber estava realmente tão orgulhoso dos seus talentos epistolares, descrevendo um tão doloroso estado de coisas, que parecia ter esquecido o desgosto ou a ansiedade que outrora a realidade lhe causara. Continuava:

— Foi então que... Heep começou a favorecer-me com uma certa dose de confiança que lhe era necessária para que lhe coadjuvasse os seus planos infernais. Foi então que, para me servir da linguagem de Shakespeare, comecei a languescer, a definhar-me, a estiolar-me. Pedia-se-me constantemente a minha cooperação para falsificar documentos e para enganar um indivíduo que eu designarei sob o nome de Mister W., Mister W. ignorava tudo; iludiam-no de todas as maneiras sem que esse celerado de... Heep cessasse de testemunhar ao pobre desgraçado um reconhecimento e uma amizade sem limites. Era já bastante desprezível, mas como o observa o príncipe da Dinamarca com essa altivez de filosofia que distingue o ilustre ornamento da era de Isabel, «o resto é que é o pior».

Mister Micawber ficou tão encantado com esta feliz citação que sob pretexto de já não saber em que ponto ficara da leitura, releu-nos esta passagem duas vezes a seguir.

— Não tenho intenção — prosseguiu — de vos pormenorizar todas as pequenas fraudes que foram praticadas contra o indivíduo designado sob o nome de Mister W. e às quais prestei um tácito concurso; esta carta não poderia contê-las, mas vão expressas noutra parte. Quando cessei de discutir comigo mesmo a dolorosa alternativa em que me encontrava, de receber ou não o meu ordenado, de comer ou de morrer de fome, de viver ou de não viver, resolvi aplicar-me a descobrir e a expor todos os crimes perpetrados por... Heep em detrimento desse desgraçado cavalheiro. Estimulado pelo conselheiro que velava a dentro da minha consciência e por um conselheiro não menos afectuoso a que chamarei sucintamente miss W., procurei estabelecer, não sem esforço, uma série de investigações secretas, remontando, se me não engano, a um período de mais de doze meses.

Leu esta passagem como se fosse uma acta parlamentar e ficou singularmente encantado da majestade das expressões.

— Eis aquilo de que eu acuso... Heep — disse ele fitando Uriah e metendo a régua debaixo do braço esquerdo, de modo a ficar-lhe à mão em caso de necessidade.

Todos nós retínhamos a respiração, Heep, era bem de ver, mais que ninguém.

— Primeiramente — disse Mister Micawber — quando as faculdades de Mister W. se tornaram, por causas que é inútil recordar, pouco límpidas e fracas, Heep aplicou-se a complicar todas as transacções comerciais. Quanto mais Mister W.... ficava inapto para se ocupar de negócios, mais Heep queria constrangê-lo a ocupar-se deles. Em tais momentos fez assinar a Mister W. documentos de uma grande importância em vez de outros que não tinham nenhuma. Levou Mister W. a conferir-lhe autorização para empregar uma quantia que lhe fora confiada, pretendendo que havia a pagar encargos muito onerosos já liquidados ou que mesmo não existiam. E, ao mesmo tempo, atribuía a Mister W. a invenção de uma indelicadeza tão revoltante de que se serviu depois para torturar e obrigar Mister W. a ceder-lhe em todos os pontos.

— Há-de provar tudo isso, Copperfield! — disse Uriah, sacudindo a cabeça com ar ameaçador. — Paciência!

— Senhor Traddles, queira perguntar a... Heep quem é que mora na casa em que ele morou — disse Mister Micawber interrompendo-se na sua leitura. — Quer fazer esse favor?

— Um imbecil que ainda lá mora — disse Uriah com ar desdenhoso.

— Queira perguntar a... Heep se ele, por acaso, não possuiu certo livro de memorandum nessa casa — disse Mister Micawber. — Quer fazer esse favor?

Eu vi Uriah cessar de repente de esgadanhar o queixo.

— Ou então, queira perguntar-lhe — disse Mister Micawber — se por acaso não queimou um desses livros nessa casa. Se ele disser que sim e que lhe pergunte aonde é que param as cinzas dessa agenda, queira mandá-lo dirigir-se a Wilkins Micawber e ele o cientificará de coisas que hão-de ser-lhe pouco agradáveis.

Mister Micawber pronunciou estas palavras num tom tão triunfante que chegou a alarmar seriamente a mãe de Uriah, que exclamou na mais intensa agitação:

— Uriah! Uriah! Seja humilde e trate de compor-se, meu filho!

— Mãe — replicou ele — quer calar-se? Está cheia de medo e não sabe o que diz. Humilde!? — repetiu lançando-me uma mau olhado. — Há muito que os humilhei já, tão humilde como sou!

Mister Micawber meteu muito lentamente o queixo dentro do colarinho e continuou:

— Secundo. Heep por muitas vezes, ao que posso crer e saber...

— Que belas provas! — murmurou Uriah num tom de alívio. — Minha mãe, sossegue.

— Nós trataremos de as arranjar melhores para o confundir, vai ver — respondeu Mister Micawber. — Secundo: Heep por muitas vezes, ao que posso crer e saber, fez falsificações, imitando em diversos papéis, livros e documentos, a assinatura de Mister W. particularmente numa circunstância de que eu poderei dar provas, por exemplo, da maneira seguinte, a saber...

Mister Micawber gostava singularmente de amontoar assim fórmulas oficiais, mas isso não lhe era particular, devo dizê-lo. Era antes regra geral. Bastantes vezes pude notar que indivíduos chamados a prestar juramento, por exemplo, parecem gozar de um certo enlevo quando podem enfiar palavras sinónimas em seguida umas às outras para exprimirem uma única ideia; dizem que detestam, que odeiam, que execram, etc., etc. Os anátemas eram noutros tempos concebidos segundo o mesmo princípio. Nós falámos da tirania das palavras, mas gostamos também de as tiranizar; gostamos também de fazer uma rica provisão delas que nos possa servir de cortejo nas grandes ocasiões; parece que isso nos dá importância, que isso tem certo ar. Da mesma maneira que em dias de festa não somos muito difíceis sobre a qualidade dos criados que envergam a nossa libré, desde que se portem bem e que façam número; da mesma maneira só ligamos uma importância secundária ao sentido ou à utilidade das palavras que empregamos contanto que desfilem em parada. E, assim como se ganham inimigos alardeando muito a magnificência das librés ou assim como escravos muito numerosos se revoltam contra os seus senhores, assim também eu poderei citar um povo que se atraiu grandes dificuldades e atrair-se-á bem mais, por ter querido conservar um repertório muito rico de sinónimos no seu vocabulário nacional.

Mister Micawber continuou a leitura lambendo as barbas:

— Por exemplo, da maneira seguinte, a saber: Mister W. estava doente, era muito provável que a sua morte acarretasse descobertas conducentes a destruir a influência de... Heep na família W. o que posso afirmar, eu, abaixo-assinado, Wilkins Micawber... a menos que não se pudesse obter da sua filha que renunciasse, por muito afecto filial, a qualquer investigação do passado; nessa previsão, o sobredito... Heep julgou prudente ter pronta uma acta, como provinda de Mister W., estabelecendo que as importâncias abaixo mencionadas tinham sido adiantadas por... Heep a Mister W. para o salvar da desonra. A verdade é que esta importância nunca foi adiantada por ele. Foi... Heep quem forjou as assinaturas desse documento; pôs lá o nome de Mister W. e, por baixo, um certificado de Wilkins Micawber. Tenho em meu poder, na agenda que pertenceu a... Heep, diversas imitações da assinatura de Mister W. um pouco prejudicadas pelas chamas, mas que ainda se lêem. Nunca em vida minha assinei uma semelhante acta. Tenho em meu poder o documento original.

Uriah Heep estremeceu, depois tirou do bolso um molho de chaves e abriu uma gaveta; mas, mudando repentinamente de resolução, voltou-se de novo para nós, sem nos olhar.

— E tenho o documento... — prosseguiu Mister Micawber, lançando os olhos em torno de si como se relesse o texto de um sermão — em meu poder, isto é, tinha-o esta manhã, quando escrevi isto! Mas depois entreguei-o a Mister Traddles.

— É perfeitamente exacto! — confirmou Traddles.

— Uriah! Uriah! — gritou-lhe a mãe —, seja humilde e trate de compor-se com estes senhores. Eu sei que o meu filho será humilde se os senhores lhe derem tempo de reflectir. O senhor Copperfield sabe como ele tem sido sempre humilde!

Era curioso ver a mãe permanecer fiel aos seus velhos hábitos de astúcia enquanto o filho os repelia agora como inúteis.

— Minha mãe — disse ele mordendo com impaciência o lenço que lhe envolvia a mão — melhor faria se pegasse já numa espingarda carregada e me desse um tiro!

— Mas eu amo-o, Uriah! — exclamou Mistress Heep.

E certamente amava-o e ele consagrava afecto à mãe: por mais singular que isto possa parecer, era um par muito bem combinado.

— Não posso suportar — tornou Mistress Heep — ouvi-lo insultar estes senhores; nada ganhará com isso. Disse-o logo a este senhor, quando ele me afirmou, ao descer a escada, que se sabia tudo; prometi que o Uriah seria humilde e que repararia todos os danos. Oh! Reparem como eu sou humilde, eu, meus senhores e façam de conta que o não ouvem!

— Mas, minha mãe — disse ele enfurecido, voltando para mim o seu dedo afilado e magro —, aí tem Copperfield, que lhe daria de boa vontade cem libras esterlinas para saber menos de metade de quanto tem dito há um quarto de hora!

Era contra mim que ele estava acima de tudo, convencido de que tinha sido eu o principal motor deste caso; não procurei desmenti-lo.

— Isto é mais forte do que eu, Uriah! — exclamou sua mãe. — Não posso vê-lo assim exposto ao perigo por orgulho. Mais vale ser humilde, como sempre o tem sido.

Ele ficou um momento silencioso, como que a devorar o lenço e depois disse-me num regougue surdo:

— Tem mais alguma coisa a asseverar? Se tem, diga-a. Porque é que espera?

Mister Micawber prosseguiu na sua leitura: sentia-se muito feliz por poder continuar a representar um papel em que se sentia perfeitamente satisfeito.

— Tertio: Enfim, encontro-me em estado de provar, segundo os livros falsificados de... Heep e segundo a agenda autêntica de... Heep, que durante muitos anos... Heep serviu-se das fraquezas e defeitos de Mister W. para atingir os seus infames desígnios. Com esse fim, soube até empregar as virtudes, o sentimento de honra, a afeição paterna do desditoso Mister W. Tudo isto será demonstrado por mim, graças ao pequeno livro, em parte calcinado (que a princípio não pude compreender bem, quando Mistress Micawber o encontrou acidentalmente no nosso domicílio, no fundo do depósito das cinzas consumidas no nosso lar doméstico). Durante anos, Mister W. foi enganado e roubado por todas as formas e feitios por esse avarento, falso e pérfido... Heep. O fim supremo de... Heep, após a sua paixão pela ganância, era alcançar um império absoluto sobre Mister e miss W. (Não digo nada das suas vistas ulteriores sobre esta última). O seu último acto foi, há poucos meses, levar Mister W. a abandonar a sua parte da sociedade e mesmo a vender o mobiliário da casa sob a condição de receber exactamente e fielmente de... Heep uma pensão vitalícia pagável de três em três meses. Pouco a pouco, estavam todos os negócios tão bem embrulhados que o desditoso Mister W. nunca mais foi capaz de os desenvencilhar. Fizeram-se falsos inventários de propriedades, pelos quais Mister W. tem a responder, numa época em que Mister W. se lançara em especulações arriscadas e não tinha em seu poder a importância de que era moralmente e legalmente responsável. Declarou-se que tinha pedido emprestado dinheiro a um juro fabuloso, quando a verdade é que... Heep tinha fraudulentamente roubado esse dinheiro a Mister W. Lavrou-se um catálogo inaudito de chicanas inconcebíveis. Enfim, o desditoso Mister W. acreditou na bancarrota da sua fortuna, das suas esperanças terrestres, da sua honra e não viu outra salvação senão nesse monstro com forma humana que, tendo-se tornado indispensável, soubera ir perpetrando a ruína dessa desgraçada família. (Mister Micawber gostava muito da expressão — monstro com forma humana, que lhe parecia nova e original). Tudo isto posso eu provar e provavelmente bastantes coisas mais!

Murmurei algumas palavras ao ouvido de Inês, que chorava de alegria e de tristeza junto de mim; fez-se um movimento na sala, como se Mister Micawber tivesse acabado. Mas ele disse no tom mais grave: «Perdão!» e continuou, com um misto de extremo abatimento e de vibrante alegria, a leitura do seu libelo:

— Terminei. Resta-me somente estabelecer a verdade destas acusações; e depois desaparecer, com uma família predestinada para a desgraça, de um lugar em que parecemos ser pesados a todo o mundo. Isto não tardará a ser um facto concluído. Pode-se supor com alguma razão que o nosso filho mais novo seja o primeiro a morrer de inanição, ele que é o mais frágil de todos; segui-lo-ão os gémeos. Pois seja! Quanto a mim, a minha permanência em Canterbury adiantou bastante as coisas; a prisão por dívidas e a miséria farão o resto. Tenho confiança em que o resultado feliz de um inquérito, longamente e penosamente executado, no meio de trabalhos incessantes e de receios dolorosos, ao nascer como ao pôr do sol e durante a sombra da noite, sob o olhar de um indivíduo que é supérfluo chamar um demónio e na angústia que me causava a situação dos meus mal-aventurados herdeiros, derramará sob a minha fogueira fúnebre algumas gotas de misericórdia. Não peço mais. Façam-me apenas justiça e digam de mim como desse herói marítimo, ao qual não tenho a pretensão de me comparar, que o que fiz, fi-lo, a despeito de interesses egoístas ou mercenários,

Pelo amor, pela inteireza,

Pela Inglaterra, pela beleza.

Para a vida e para a morte, etc., etc.

WILKINS MICAWBER

Mister Micawber dobrou a carta com uma intensa emoção, mas com uma satisfação não menos intensa e estendeu-a para minha tia, como um documento que ela sem dúvida teria prazer em guardar.

Havia na sala um cofre-forte de ferro: tinha já reparado nele quando da minha primeira visita. A chave estava na fechadura. Uma suspeita repentina pareceu apoderar-se de Uriah; lançou um olhar sobre Mister Micawber, correu ao cofre-forte e abriu-o com estrépito. Estava vazio.

— Aonde é que estão os livros? — exclamou, com uma temerosa expressão de raiva. — Um ladrão roubou os meus livros!

Mister Micawber deu uma pequena pancada com a régua nos dedos e disse:

— Fui eu; entregou-me a chave como de ordinário, um pouco mais cedo do que o costume, e eu abri o cofre.

— Não se assuste — disse Traddles. — Os livros estão em meu poder. Tomarei conta deles, segundo os poderes que recebi.

— Com que então é um receptador? — exclamou Uriah.

— Em circunstâncias como estas, não digo que não — respondeu Traddles.

Qual não foi, porém, o meu espanto quando vi minha tia, que até então tinha assistido a tudo com uma perfeita tranquilidade, dar de repente um salto para Uriah e agarrá-lo pela gola do casaco.

— Sabe o que eu quero? — disse minha tia.

— Uma camisa-de-forças! — respondeu ele.

— Não. A minha fortuna! — replicou minha tia. — Inês, minha querida, enquanto acreditei que fora seu pai quem a tinha deixado perder, não disse palavra; o próprio Trot nunca soube que eu tinha essa fortuna na mão de Mister Wickfield. Mas agora que sei que é este sujeito quem me há-de responder por ela, reclamo-a, quero-a! Trot, venha reclamar-lha!

Suponho que minha tia julgava nesse momento encontrar a sua fortuna na gravata de Uriah, porque ela sacudia-o com toda a força. Apressei-me a separá-la, assegurando a minha tia que ele havia de restituir até ao último penny tudo quanto indevidamente adquirira. Passado um momento de reflexão, acalmou-se e tornou-se a sentar, sem parecer por forma alguma desconcertada com o que acabara de fazer (outro tanto não poderia dizer do seu chapéu).

Durante o quarto de hora que tinha acabado de decorrer, Mistress Heep fatigara-se a gritar ao filho que fosse «humilde»; lançara-se de joelhos diante de cada um de nós, sucessivamente, fazendo as mais extravagantes promessas. Seu filho obrigou-a a sentar-se outra vez e depois, conservando-se ao pé dela, mas sem rudeza, disse-me com um olhar feroz:

— O que quer que eu faça?

— Vou eu dizer-lhe o que é preciso fazer — disse Traddles.

— Copperfield não tem língua? — murmurou Uriah. — Daria alguma coisa de bom grado, se pudesse afirmar-me, sem mentir, que lha tinham cortado!

— O meu Uriah vai ser humilde! — exclamou sua mãe. — Não se importem com o que ele diz, meus bons senhores!

— Vai ouvir o que é preciso fazer — tornou Traddles. — Primeiro vai entregar-me, aqui mesmo, a acta pela qual Mister Wickfield lhe fez entrega dos seus bens.

— E se eu não a tiver?

— Tem, sim senhor — disse Traddles —; está prejudicada essa suposição.

Não posso deixar de confessar que fiz justiça pela primeira vez, nessa ocasião, à sagacidade e ao bom senso simples e prático do meu antigo camarada.

— Assim, pois — prosseguiu Traddles — é preciso preparar-se para se submeter, restituindo até ao último penny tudo quanto a sua rapacidade fez passar para as suas mãos. Conservaremos em nosso poder todos os livros e papéis da sociedade; todos os seus livros e papéis particulares; todas as contas e recibos; em suma, tudo quanto aqui está.

— Palavra? Não estou resolvido a isso — disse Uriah. — Preciso que me dêem tempo para pensar.

— Certamente — respondeu Traddles —, mas enquanto se espera e até que tudo esteja regulado à nossa satisfação, tomaremos posse de todas estas garantias e pedir-lhe-emos, e, se preciso for, obrigá-lo-emos a encerrar-se no seu quarto, sem comunicar com quem quer que seja.

— Isso é que eu não faço! — disse Uriah praguejando como um diabo.

— A cadeia de Maidstone é um lugar de detenção mais seguro — prosseguiu Traddles — e se bem que a lei possa levar tempo a fazer-nos justiça e talvez no-la faça menos completa do que devia ser, não há dúvida alguma que o há-de punir. Sabe-o tão bem como eu... Copperfield, tem a bondade de ir a Guildhall procurar dois policemen!

Nesta altura, Mistress Heep caiu novamente de joelhos, solicitou de Inês que intercedesse em seu favor, exclamou que ele era muito humilde, que estava certíssima disso e que se ele não fazia o que nós queríamos, fá-lo-ia ela em seu lugar. E, efectivamente, teria feito tudo o que se quisesse, porque estava quase com a cabeça perdida, tanto ela tremia pelo filho querido; quanto a ele, de que valeria perguntar o que poderia fazer, se tivesse um pouco mais de audácia; o mesmo que perguntar o que faria um vil fraldiqueiro animado da fereza de um tigre. Era um cobarde da cabeça até aos pés; e, nesse momento mais do que nunca, demonstrava bem a baixeza do seu carácter pela sua atitude mortificada e pelo seu desespero sombrio.

— Esperem! — gritou ele em voz surda enxugando as faces cobertas de suor. — Minha mãe, basta de tanto ruído! Dê-se-lhe esse papel! Vá buscá-lo.

— Quer ter a bondade de lhe prestar o seu concurso, senhor Dick? — disse Traddles.

Todo orgulhoso por essa comissão cujo alcance compreendia, Mister Dick acompanhou Mistress Heep, como um cão de pastor acompanha uma ovelha. Mas Mistress Heep deu-lhe pouco trabalho, porque trouxe, não só o documento pedido, mas também a caixa que o continha e dentro dela ainda um livrete de banco e outros papéis que foram úteis mais tarde.

— Bem — disse Traddles recebendo-os. — Agora, senhor Heep, pode retirar-se para reflectir; mas considere bem consigo próprio, peço-lhe, que não tem senão uma coisa a fazer, como já lhe expliquei e que é preciso fazê-la sem tardar.

Uriah atravessou a sala sem erguer os olhos, passando o mão pelo queixo; depois parando à porta, disse-me:

— Copperfield, sempre o detestei. O senhor não tem sido senão um parvajola e tem estado sempre contra mim.

— Já lhe disse — respondi eu — que é o senhor que tem estado sempre contra todo o mundo pela sua patifaria e pela sua avidez. Pense doravante que nunca a velhacaria nem a avidez podem parar a tempo, mesmo em seu próprio interesse. É um facto tão incontestável como o de que havemos de morrer um dia.

— É talvez um facto tão incerto como o que se nos ensinava na escola — disse ele com um riso de escárnio expressivo — nessa mesma escola em que aprendi a ser tão humilde. Das nove às onze horas diziam-nos que o trabalho era uma maldição; das onze à uma hora que era um bem, uma bênção e que sei eu ainda? O senhor prega-nos doutrinas quase tão consequentes como essa gente. A humildade vale mais que tudo isso, é um excelente sistema. Sem ela, eu não teria enredado tão bem o meu nobre sócio, asseguro-lhe... Micawber, velho animal, há-de pagar-mas todas!

Mister Micawber olhou para ele com um ar de soberano desprezo até que ele saiu da sala, depois voltou-se para mim e propôs-me dar-me o prazer de ir assistir à reconciliação de confiança entre ele e Mistress Micawber. Depois do que, convidou toda a companhia a contemplar uma tão emocionante cerimónia.

— O véu que nos separou por tanto tempo a Mistress Micawber e a mim, ei-lo enfim despedaçado — disse Mister Micawber —; os meus filhos e o autor da sua existência podem agora aproximar-se de novo sem corarem uns dos outros.

Tínhamos-lhe todos muito reconhecimento e desejávamos dar-lhe um testemunho disso, pelo menos tanto quanto no-lo permitisse a desordem dos nossos espíritos: assim, teríamos todos de boamente aceitado a sua oferta, se Inês não fosse forçada a ir ter com seu pai, ao qual não se havia ainda ousado fazer senão entrever um clarão de esperança; era também preciso que alguém ficasse de guarda a Uriah. Traddles encarregou-se desse serviço, em que Dick devia bem depressa rendê-lo; minha tia, Mister Dick e eu, acompanhamos Mister Micawber. Ao separar-me tão precipitadamente da minha querida Inês, a quem tanto devia e pensando no perigo de que a tínhamos salvado nesse dia, porque quem sabe se a sua coragem não teria sucumbido nessa luta?, sentia-me com o coração repleto de reconhecimento pelas infelicidades da minha mocidade, que me tinham levado a conhecer Mister Micawber.

A casa dele não ficava longe; a porta da sala dava para a rua: precipitou-se por ela dentro com a sua vivacidade habitual e encontrámo-nos no meio da sua família. Lançou-se nos braços de Mistress Micawber, exclamando: — Ema, minha felicidade e minha vida!». Mistress Micawber soltou um grito agudo e apertou Mister Micawber de encontro ao coração. Miss Micawber, que estava ocupada a embalar o inocente desconhecido de que me falava Mistress Micawber na sua carta, ficou extremamente emocionada. O desconhecido saltou de alegria. Os gémeos testemunharam a sua satisfação por diversas demonstrações incómodas, mas sinceras. Micawber Júnior, cujo génio parecia azedado pelas decepções precoces da sua mocidade e cujo semblante tinha conservado qualquer coisa de pensativo, cedeu a melhores sentimentos e choramingou.

— Ema — disse Mister Micawber — a nuvem que me velava a alma dissipou-se! A confiança que por tanto tempo existiu entre nós, revive para sempre! Salve, pobreza! — exclamou chorando. — Salve, miséria bendita! Que a fome, os farrapos, a tempestade, a mendicidade sejam bem-vindos! Salve! A confiança recíproca sustentar-nos-á até ao fim!

Assim falando, Mister Micawber beijava todos os filhos uns após outros e mandava sentar sua mulher, prosseguindo com os seus salve, entusiasmado, a perspectiva de uma série de infortúnios que não me pareciam muito desejáveis para a sua família; e convidando-os a todos a irem cantar em coro para as ruas de Canterbury, pois era o único recurso que lhes restava para viverem.

Mas Mistress Micawber acabava de desmaiar, vencida por tantas emoções; a primeira coisa a fazer, mesmo antes de pensar em realizar o coro em questão, era fazê-la voltar a si. Minha tia e Mister Micawber encarregaram-se disso; depois apresentaram-lhe minha tia e Mistress Micawber reconheceu-me.

— Perdoe-me, meu querido senhor Copperfield — disse a pobre mulher estendendo-me a mão —, mas eu sou pouco forte e não pude resistir à felicidade de ver desaparecer tanto desacordo entre Mister Micawber e eu.

— São estes todos os seus filhos, minha senhora? — perguntou minha tia.

— É tudo quanto tenho por agora... — respondeu Mistress Micawber.

— Deus do céu! Não é isso o que eu quero dizer, minha senhora! — tornou minha tia. — O que lhe pergunto é se todos esses filhos são seus...

— Minha senhora — replicou Mister Micawber — é a conta exacta.

— E este mocetão — disse minha tia com ar pensativo — o que é que faz?

— Quando cheguei a esta terra — disse Mister Micawber — esperava colocar Williams na Igreja, ou, para falar mais correctamente, no coro. Mas não há lugar vago de tenor no venerando edifício que faz justo título à glória desta cidade; e ele tomou... numa palavra, habituou-se a cantar nos cafés, em vez de adestrar-se num recinto consagrado.

— Mas foi bem intencionadamente — disse Mistress Micawber com ternura.

— Estou certo, meu amor — volveu Mister Micawber — de que tem as melhores intenções do mundo; somente, até hoje, não vejo muito para que é que isso lhe serve.

Neste ponto, Micawber Júnior retomou o seu ar taciturno e perguntou com alguma acrimónia o que queriam que ele fizesse. Julgavam que pudesse fazer-se carpinteiro de nascença, ou ferreiro, sem aprendizagem?, Julgavam que pudesse estabelecer-se como farmacêutico na rua próxima? Desejavam que corresse ao Tribunal, nas próximas audiências e que tomasse a palavra como advogado? Ou que se fizesse ouvir à força na Ópera e alcançasse bravos também à fina força? Queriam que ele estivesse preparado para tudo, sem lhe terem ensinado nada?!

Minha tia reflectiu um instante e disse em seguida:

— Senhor Micawber, estou surpreendida de que o senhor nunca pensasse em emigrar!

— Minha senhora — respondeu Mister Micawber — era esse o sonho da minha mocidade; é ainda a enganadora esperança da minha idade madura.

A propósito, estou plenamente convencido de que ele nunca tinha pensado nisso.

— Oh! — disse minha tia, deitando um olhar para mim — que excelente coisa não seria isso para si e para a sua família, senhor e senhora Micawber!

— E o dinheiro, minha senhora, o dinheiro? — exclamou Mister Micawber com ar sombrio.

— É essa a principal, para não dizer a única dificuldade, meu caro senhor Copperfield — acrescentou sua mulher.

— Dinheiro?! — disse minha tia. — Mas o senhor está-nos prestando um grande serviço, posso bem dizê-lo, porque certamente que se hão-de salvar bastantes coisas desse desastre; e que melhor poderíamos nós fazer em seu favor do que arranjar-lhe dinheiro para essa consecução?

— Eu não o poderia aceitar como puro donativo — disse Mister Micawber com veemência —, mas se se pudesse adiantar-me uma quantia, a um juro de cinco por cento, sob a minha responsabilidade pessoal, podê-la-ia ir reembolsando a pouco e pouco, a doze, dezoito e vinte e quatro meses de data, por exemplo, para se me dar tempo a eu juntar...

— Se se pudesse? — respondeu minha tia. — Pode, sim e há-de fazer-se, por pouco que isso lhes convenha. Pensem bem os dois. David tem pessoas amigas que vão partir para a Austrália: se se decidirem a partir também, porque é que não se hão-de aproveitar do mesmo navio? Podem prestar-se serviços mutuamente. Pensem bem nisso, senhor e senhora Micawber. Com tempo, vão pesando maduramente o caso.

— Só tenho uma pergunta a formular — disse Mistress Micawber. — O clima é salubre, creio?

— É o melhor clima do mundo! — redarguiu minha tia.

— Perfeitamente — tornou Mistress Micawber. — Ainda pergunto mais: o estado do país é tal que um homem distinto como Mister Micawber possa esperar elevar-se na escala social? Não quero dizer, por agora, que possa pretender ser governador ou obter qualquer outra função desta natureza, mas poderá encontrar um campo suficientemente vasto para o desenvolvimento expansivo das suas grandes faculdades?

— Em parte alguma poderá haver um mais belo futuro para um homem que tem comportamento e actividade — disse minha tia.

— Para um homem que tem comportamento e actividade — repetiu lentamente Mistress Micawber. — Precisamente, é evidente para mim que a Austrália é o lugar em que Mister Micawber encontrará a esfera de acção legítima para abrir carreira às suas grandes qualidades.

— Estou convencido, minha querida senhora — interveio Mister Micawber — de que é, nas circunstâncias actuais, o país, o único país em que eu possa estabelecer a minha família; qualquer coisa de extraordinário nos está reservada nessas ignotas plagas. A distância nada é, para falar com propriedade; e se bem que seja conveniente reflectir na sua generosa proposta, asseguro-lhe que é puramente uma questão de forma.

Nunca me há-de esquecer como, num instante, Mister Micawber se transformou num homem com as mais doidas esperanças e se viu levado já pela roda da fortuna, nem como Mistress Micawber se pôs a discorrer desde logo acerca dos hábitos dos cangurus! Nunca poderei pensar nessa rua de Canterbury, em dia de feira, que me não lembre ao mesmo tempo a atitude deliberada com que ele caminhava a nosso lado; já tinha tomado os modos rudes, descuidados e nómadas de um colono longínquo; era de ver como ele examinava de passagem o gado cornígero, já com o olhar prático de um fazendeiro da Austrália.

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