David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XLII - Uma nódoa negra

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By ClassicosLP

Sei que não me cabe contar, se bem que este manuscrito não seja destinado senão só para mim, com que ardor me apliquei a fazer progressos em todas as minudências dessa malfadada estenografia, para corresponder à espera de Dora e à confiança de suas tias. Somente acrescentarei ao que já disse da minha perseverança nessa época e da paciente energia que começava então a tornar-se o fundo do meu carácter, que é, sobretudo, a essas qualidades que eu devi mais tarde a ventura de ser bem sucedido. Tive muita felicidade nas coisas desta vida; bastantes pessoas trabalharam mais do que eu, sem obterem tanto êxito, mas eu nunca poderia fazer o que fiz sem os hábitos de pontualidade, de ordem e de diligência que comecei a contrair e sobretudo sem a faculdade que adquiri então de concentrar todas as minhas atenções sobre um só objecto a um tempo, sem me inquietar com o que ia suceder-lhe talvez no mesmo instante. Deus sabe que eu não escrevo isto para me gabar! Era preciso ser verdadeiramente um santo para não ter que lamentar, repassando toda a sua vida como aqui o faço, página por página, bastantes talentos desprezados, bastantes ocasiões favoráveis perdidas, bastantes erros e bastantes faltas. É provável que empregasse mal, como qualquer outro, todos os dons que recebi. O que simplesmente quero dizer é que, desde esse tempo, tudo quanto tive de fazer neste mundo, tentei fazê-lo bem; que me dediquei inteiramente ao que empreendi e que nas pequenas como nas grandes coisas, não me desviei do meu fim. Não creio que seja possível, mesmo aos que têm grandes famílias, alcançarem bom êxito, se não reunirem ao seu talento natural qualidades simples, sólidas, laboriosas, e, sobretudo, uma legítima confiança no êxito; não há nada mais eficaz neste mundo do que querer. Talentos raros ou ocasiões favoráveis, formam por assim dizer os dois braços da escada aonde é preciso trepar, mas, antes de tudo, que os degraus sejam de madeira forte e resistente; nada poderia substituir, para se alcançar bom êxito, uma vontade séria e sincera. Em vez de tocar em qualquer coisa com a ponta do dedo, entregava-me a ela de corpo e alma e qualquer que fosse a minha obra, nunca afectei depreciá-la. São estas as regras com que me não dei mal.

Não quero repetir aqui quanto devo de reconhecimento a Inês na prática destes preceitos. A minha narrativa arrasta-me para ela como o meu reconhecimento e o meu amor.

Ela veio fazer-me a casa do doutor uma visita de quinze dias. Mister Wickfield era um velho amigo desse excelente homem, que desejava vê-lo para tratar de lhe fazer bem. Inês tinha-lhe falado de seu pai na sua última visita a Londres e essa viagem era o resultado da sua conversação. Ela acompanhou Mister Wickfield. Não me surpreendeu saber que ela tinha prometido a Mistress Heep encontrar-lhe alojamento na vizinhança; os seus reumatismos, dizia ela, exigiam uma mudança de ar e ficaria encantada por se encontrar em tão boa companhia. Não me surpreendeu tão pouco ver chegar no dia seguinte Uriah, como bom filho que era, para instalar a sua respeitável mãe.

— Olhe, mestre Copperfield — disse ele impondo-me a sua companhia, enquanto eu passeava no jardim do doutor — quando se ama é-se ciumento ou, pelo menos, deseja-se poder vigiar o objecto amado.

— De quem é que é agora ciumento? — perguntei.

— Graças a si, mestre Copperfield — prosseguiu ele — de ninguém em particular no momento, nem de um homem, ao menos.

— Estará porventura ciumento de uma mulher?

Ele lançou-me um olhar de través com os seus sinistros olhos vermelhos e pôs-se a rir.

— Realmente, mestre Copperfield — disse ele — ...eu deveria dizer Mister Copperfield, mas há-de perdoar-me este hábito inveterado; o senhor é tão hábil que, palavra, desarrolha-me como com um saca-rolhas! Muito bem! Não hesito em dizer-lho — e pousou em mim a sua mão pegajosa e fria — nunca fui menino bonito das damas, nunca fui muito do agrado de Mistress Strong.

Os seus olhos tornaram-se verdes enquanto olhava para mim com uma astúcia infernal.

— Que quer dizer? — perguntei-lhe.

— Mas se bem que eu seja procurador, mestre Copperfield — prosseguiu ele com um risinho seco — eu quero dizer, por agora, exactamente o que digo.

— E que quer dizer o seu olhar? — continuei com tranquilidade.

— O meu olhar? Mas, Copperfield, o senhor torna-se bastante exigente. Que quer dizer o meu olhar?

— Sim — disse eu — o seu olhar?

Pareceu encantado e riu com tão boa vontade como ele sabia rir. Depois de ter esfregado o queixo, prosseguiu lentamente e com os olhos no chão:

— Quando eu não passava de um humilde empregado, ela desprezou-me sempre. Queria sempre atrair a minha Inês para casa dela e tinha-lhe bastante amizade a si, mestre Copperfield. Enquanto que eu estava muito abaixo dela para que em mim reparasse.

— E daí — disse eu — quando assim fosse?

— E abaixo dele também! — prosseguiu Uriah muito distintamente e num tom de reflexão, continuando sempre a coçar o queixo.

— O senhor devia conhecer bastante o doutor — disse eu — para saber que com o seu espírito distraído ele não pensava no senhor senão quando o via.

Ele olhou de novo para mim de través, estirou a magra caraça para poder coçar-se mais comodamente e respondeu-me:

— Oh! Eu não falo do doutor; oh, por certo que não; pobre homem! Eu falo de Mister Maldon.

O meu coração confrangeu-se; todas as minhas dúvidas, todas as minhas apreensões sobre esse assunto, toda a paz e toda a felicidade do doutor, toda essa miscelânea de inocência e de imprudência de que eu não pudera penetrar o mistério, tudo isso vi eu num momento que estava à mercê desse miserável hipócrita.

— Nunca entrava no escritório que me não dissesse que me fosse embora e que me não empurrasse para fora — disse Uriah. — Não estava mau, o bom sujeito! Eu era doce e humilde como sempre. Mas é o mesmo, eu não gostava dele nesse tempo e muito menos agora.

Parou de esfregar o queixo e pôs-se a sugar as bochechas, de maneira que deviam tocar-se dentro da boca, deitando-me sempre o mesmo olhar oblíquo e falso.

— Ela é o que se chama uma linda mulher — continuou ele, quando a sua cara retomou pouco a pouco a forma natural — e compreendo que não veja com bons olhos um homem como eu. Acho-a muito capaz, estou certo, de fazer, não tardaria muito, com que a minha Inês tivesse o desejo de visar mais alto; mas se não sou um galanteador para agradar às damas, mestre Copperfield, isso não impede que não tenha olhos para ver. Nós cá, com a nossa humildade, em geral, temos olhos e servimo-nos deles!

Tentei tomar uma aparência livre e despreocupada, mas via bem, pela cara dele, que não o enganava acerca das minhas inquietações.

— Não quero deixar-me derrotar, Copperfield — continuou ele franzindo, com um ar diabólico, o lugar aonde deveriam existir sobrancelhas ruivas, se é que as teve — e hei-de fazer quanto puder para pôr termo a esta ligação. Não a aprovo. Não receio confessar-lhe que não sou, de minha natureza, um marido cómodo e que quero afastar os intrusos. Não desejo expor-me a que se venha conspirar contra mim.

— O senhor é que conspira sempre e afigura-se-lhe que toda a gente faz o mesmo — disse-lhe eu.

— É possível, mestre Copperfield — respondeu ele —, mas eu tenho um fim, como dizia sempre o meu sócio e trabalharei com unhas e dentes para o conseguir. Por mais humilde que seja, não quero deixar de me importar com o que se faz. Não desejo que se atravessem no meu caminho. Olhe, positivamente, há-de ser preciso que eu os faça virar de querena, mestre Copperfield.

— Não o compreendo — disse.

— Deveras! — respondeu ele com um desses estremecimentos habituais. — Isso surpreende-me, mestre Copperfield, o senhor que tem tanto espírito. Tratarei de ser mais claro para outra vez. Que vejo?! Não é Mister Maldon quem vem lá abaixo, a cavalo? Vai bater à grade, creio!

— Parece que sim — respondeu o mais negligentemente possível.

Uriah parou de repente, meteu as mãos entre os joelhos e curvou-se em dois, à força de rir; era um riso perfeitamente silencioso; nada se ouvia. Eu estava por tal forma indignado do seu odioso procedimento e sobretudo da sua última conversa, que sem mais cerimónia lhe voltei as costas, deixando-o para ali, dobrado em dois, a rir à sua vontade no jardim, aonde tinha a aparência de um espantalho de pardais.

Não foi nessa noite, mas dois dias depois, um sábado, recordo-me bem, que eu levei Inês a ver Dora. Tinha antecipadamente combinado a visita com miss Savínia e as manas tinham convidado Inês para o chá.

Eu estava igualmente ufano e inquieto, ufano da minha queridinha noiva, inquieto por saber se ela agradaria a Inês. Pela estrada fora de Putney (Inês ia dentro da diligência e eu na imperial) procurava representar-me Dora sob um desses encantadores aspectos que tão bem lhe conhecia; ora dizia de mim para mim que desejava encontra-la exactamente como ela estava em tal dia; depois dizia comigo que talvez preferisse vê-la como em tal outro dia; a febre empolgava-me.

Em todo o caso, estava certo de que ela havia de estar muito bonita; mas sucedeu que nunca me tinha parecido tão encantadora. Não estava na sala de visitas quando apresentei Inês às tias dela; tinha fugido por timidez. Mas agora eu sabia aonde devia ir procurá-la e fui encontrá-la a tapar os ouvidos, com a cabeça encostada à mesma parede do primeiro dia em que a vi.

A princípio disse-me que não queria aparecer depois pediu-me que lhe concedesse cinco minutos marcados no meu relógio. Depois, enfim, deu-me o braço; o seu gentil rostozinho estava coberto de uma modesta vermelhidão; nunca estivera tão linda; mas, quando entrámos na sala, tornou-se muito pálida, o que a tornava ainda dez vezes mais bonita.

Dora tinha medo de Inês. Tinha-me dito que bem sabia que Inês «tinha muito espírito». Mas quando a viu fitá-la com os seus olhos a um tempo tão sérios e tão alegres, tão pensativos e tão bons, soltou um gritinho de alegre surpresa, atirou-se para os braços de Inês e encostou suavemente a sua face inocente à face dela.

Nunca me tinha sentido tão feliz, nunca tinha estado tão contente, como quando as vi sentarem-se muito juntas uma da outra. Que prazer ver a minha queridinha olhar tão simplesmente para os olhos tão afectuosos de Inês! Que alegria ver a ternura com que Inês a fitava com o seu olhar incomparável.

Miss Savínia e miss Clarissa participavam da minha alegria a seu modo; nunca se viu assim um chá tão alegre. Era miss Clarissa quem presidia; eu cortava e fazia circular o pudim gelado com coríntias; as duas irmãzinhas gostavam de debicar como os pássaros as passas e o açúcar; miss Savínia olhava-nos com ar de benevolente protecção, como se o nosso amor e a nossa felicidade fossem obra sua; estávamos todos perfeitamente contentes connosco e com os outros.

A doce serenidade de Inês tinha conquistado o coração de todas. Parecia ter vindo completar a nossa feliz rodinha. Com que tranquilo interesse ela se ocupava de tudo quanto a Dora interessava! Com que alegria ela soubera fazer-se bem aceitar imediatamente por Jip! Com que amável jovialidade ela gracejava com Dora, que não se atrevia a vir sentar-se a meu lado! Com que graça modesta e simples ela arrancava a Dora encantada uma porção de confidenciazinhas que a faziam ruborizar até ao branco dos olhos!

— Estou tão contente que goste de mim! — disse Dora quando acabámos de tomar o chá. — Eu não tinha a certeza disto e, agora que Júlia Mills partiu, mais necessidade tenho de amizade.

Recordo-me que me tinha esquecido anunciar este facto importante. Miss Mills embarcara e Dora e eu tínhamos ido visitá-la a bordo do vapor, à baía de Gravesend; deram-nos à merenda gengibre de compota, goiaba e toda a espécie de outras gulodices deste género; deixámos Miss Mills coberta de lágrimas, sentada a bordo, numa cadeira de abrir e fechar. Tinha debaixo do braço um grande registo em que se propunha consignar, dia a dia e cuidadosamente guardar à chave, as reflexões que o espectáculo do Oceano lhe inspirasse.

Inês disse que receava que eu tivesse feito dela um retrato pouco agradável, mas Dora certificou-a logo do contrário.

— Oh! Não — disse ela sacudindo os seus lindos cabelos anelados —, pelo contrário, não se poupava a louvores a seu respeito. Ele tem mesmo em tanta conta a sua opinião, que eu quase a receava por mim.

— A minha boa opinião nada pode acrescentar à afeição dele pelas pessoas — disse Inês sorrindo —; não pode fazer mais.

— Oh! Mas diga-ma do mesmo modo — prosseguiu Dora com a sua voz mais carinhosa — se é possível.

Divertimo-nos muito com que Dora tanto desejasse que gostassem dela.

Depois disto, para se vingar, disse-me tolices, declarando que não gostava absolutamente de mim; e, no meio dessas doces criancices, a noite parecia-nos bem curta. A diligência não tardava a passar, era preciso partir. Eu estava só diante do fogão. Dora entrou muito levemente para me beijar antes de eu ir embora, segundo o seu costume.

— Não é verdade, Davy, que se eu tivesse há mais tempo uma amiga assim — disse-me ela com os seus olhos cintilantes e a sua mãozinha a correr-me os botões do casaco — não é verdade que eu teria talvez mais espírito do que tenho?

— Meu amor! — disse-lhe eu. — Que doidice!

— Julga que seja uma doidice? — replicou Dora sem olhar para mim. — Está bem certo disso?

— Perfeitamente certo!

— Esqueci-me — disse Dora, continuando sempre a torcer e a retorcer um botão — qual é o género de parentesco que tem com Inês, seu mau?

— Ela não é minha parenta — respondi —; fomos criados juntos, como irmão e irmã.

— Eu pergunto a mim mesmo como é que pode enamorar-se de mim — disse Dora, atacando outro botão do casaco.

— Talvez porque não era possível vê-la, sem a amar, Dora.

— E se nunca me tivesse visto? — disse ela passando a outro botão.

— É que não tínhamos nascido, nem eu riem a Dora — respondi alegremente.

Eu perguntava de mim para mim em que pensava ela, enquanto eu admirava silenciosamente a querida mãozinha que passava em revista, sucessivamente, todos os botões do meu casaco, os caracóis ondeantes que caíam no meu ombro, ou as compridas pestanas que lhe abrigavam os olhos descidos. Enfim, ergueu-os para mim, pôs-se em bicos de pés para me dar, com um ar mais pensativo que de costume, o seu precioso beijinho uma vez, duas vezes, três vezes; depois saiu da sala.

Toda a gente entrou cinco minutos depois; Dora recuperara a sua alegria habitual. Estava decidida a fazer executar a Jip todos os seus exercícios antes da chegada da diligência. Isso levou tanto tempo (não pela variedade das evoluções, mas pela má vontade de Jip) que a diligência já estava parada à porta e o cãozito não tinha exibido metade das habilidades. Inês e Dora despediram-se à pressa, mas muito ternamente; ficou combinado que Dora escreveria a Inês (com a condição de que não havia de achar tolas as suas cartas) e que Inês havia de lhe responder. Houve novas despedidas à portinhola da diligência, que se repetiram quando Dora, a despeito das admoestações de miss Savínia, correu ainda mais uma vez à portinhola, para recordar a Inês a sua promessa e para fazer voltear diante de mim os seus encantadores caracoizinhos.

A diligência devia deixar-nos ao pé de Covent Garden e aí tínhamos que entrar noutro carro que nos levasse a Highgate. Eu esperava impacientemente o momento de me encontrar só com Inês para saber o que ela me dizia de Dora. Ah, que elogio me fez dela! Com que ternura e com que bondade me felicitou de ter conquistado o coração dessa encantadora criaturinha, que tinha desenvolvido diante dela toda a sua graça inocente! Com que seriedade me recordou, sem o parecer, a responsabilidade que sobre mim pesava!

Nunca, não! Nunca amei Dora tão profundamente nem tão sinceramente como nesse dia. Quando nos apeámos da diligência e que entrámos no tranquilo caminho que ia dar à casa do doutor, eu disse a Inês que era a ela que eu devia essa felicidade.

— Quando a Inês estava sentada ao pé dela — disse-lhe — tinha o ar de ser o anjo da guarda dela, como é o meu.

— Um pobre anjo — disse ela —, mas fiel.

A ternura da sua voz foi-me direita ao coração; prossegui muito naturalmente:

— Parece-me que a Inês readquiriu toda essa serenidade que só a si pertence; isso faz-me esperar que há mais felicidade lá em casa.

— Sou mais feliz no meu próprio coração — disse ela —; tenho-o tranquilo e alegre.

Fitei o seu lindo rosto ao clarão das estrelas; pareceu-me ainda mais nobre.

— Nada mudou em nossa casa — disse Inês após um momento de silêncio.

— Não desejaria fazer uma nova alusão... não era meu desejo atormentá-la, Inês, mas não posso deixar de lhe perguntar... sabe, aquilo em que falámos a última vez que a vi?

— Não, não há nada de novo — respondeu ela.

— Tenho pensado tanto nisso tudo!

— Pense menos. Recorde-se de que tenho confiança na afeição simples e fiel; não receie nada por minha causa, Trotwood — acrescentou ela ao cabo de um momento —; nunca farei o que receia.

Eu nunca o tinha receado nos momentos de tranquila reflexão e todavia foi para mim um alívio inexprimível receber a segurança dessa boca cândida e sincera. Disse-lho com vivacidade.

— E quando acabar esta visita — disse-lhe — porque não estamos certos de nos encontrarmos sós uma outra vez, a minha querida Inês estará muito tempo sem voltar a Londres?

— Provavelmente — respondeu ela. — Creio que vale mais para meu pai que fiquemos em casa. Não nos veremos, pois, muitas vezes durante algum tempo, mas hei-de escrever a Dora e por ela saberei notícias suas.

Chegáramos ao pé da casinha do doutor. Começava a fazer-se tarde. Via-se brilhar uma luz na janela do quarto de Mistress Strong. Inês indicou-ma e deu-me as boas noites.

— Não se perturbe — disse-me dando-me a mão — com o pensamento dos nossos desgostos e cuidados. Nada me pode tornar mais feliz do que a sua felicidade. Se alguma vez me puder prestar auxílio, esteja certo de que lho pedirei. Que Deus continue a abençoá-lo!

Era tão terno o seu sorriso, era tão alegre a sua voz, que me parecia ainda ver e ouvir ao pé dela a minha Dorinha. Demorei-me um pouco debaixo do pórtico, ao olhos fixos nas estrelas, o coração cheio de amor e de reconhecimento, depois entrei vagarosamente. Tinha alugado um quarto muito perto e ia a passar a grade, quando, voltando por acaso a cabeça, vi luz no gabinete do doutor. Veio-me à ideia de que talvez estivesse a trabalhar no dicionário sem o meu auxílio. Quis certificar-me, e, em todo o caso, dar-lhe as boas noites, enquanto ele estava ainda no meio dos seus livros; e, atravessando muito devagar o vestíbulo, entrei no seu gabinete.

A primeira pessoa que vi à pálida luz do candeeiro foi Uriah. Fiquei surpreendido. Estava de pé junto da mesa do doutor, com uma das mãos de esqueleto a tapar-lhe a boca. O doutor estava sentado na sua poltrona e tinha a cabeça entre as mãos. Mister Wickfield, com o ar cruelmente perturbado e aflito, inclinava-se para a frente, mal se atrevendo a tocar no braço do seu amigo.

Um momento houve em que pensei que o doutor estava doente. Dei um passo para ele com solicitude, mas encontrei o olhar de Uriah; então compreendi do que se tratava. Queria retirar-me, mas o doutor fez um gesto para me reter: deixei-me ficar.

— Em todo o caso — dizia Uriah, contorcendo-se de uma maneira horrível — faremos muito bem se fecharmos a porta; não há necessidade de que se ouça lá fora.

Ao mesmo tempo adiantou-se para a porta, em bicos de pés e fechou-a cuidadosamente. Em seguida voltou a ocupar a mesma posição. Havia na sua voz e em todas as suas maneiras um zelo e uma compaixão hipócritas que me eram mais intoleráveis do que a impudência mais desavergonhada.

— Julguei do meu dever, mestre Copperfield — disse Uriah — fazer conhecer ao doutor Strong aquilo em que conversámos, o senhor e eu, sabe, no dia em que não me compreendeu perfeitamente?

Lancei-lhe um olhar sem dizer uma única palavra e aproximei-me do meu velho professor para lhe murmurar algumas palavras de consolação e de incitamento. Ele pousou a sua mão no meu ombro, como costumava fazer quando eu era ainda rapazinho, mas não ergueu a cabeça embranquecida.

— Como não me compreendeu, mestre Copperfield — prosseguiu Uriah no mesmo tom oficioso — tomarei a liberdade de dizer humildemente aqui, aonde estamos entre amigos, que chamei a atenção do doutor Strong para o comportamento de Mistress Strong. É bem a meu pesar que lhe asseguro, Copperfield, que me encontro metido em qualquer coisa de tão desagradável; mas o facto é que a gente encontra-se sempre metido no que só desejaria evitar. É isto o que eu queria dizer, senhor, no dia em que não me compreendeu.

Não sei como resisti ao desejo de o agarrar pelo gasganete e estrangulá-lo.

— Provavelmente não me expliquei bem, nem o senhor tão pouco — continuou ele. — Naturalmente não tínhamos grande vontade de nos estendermos sobre tal assunto. Todavia, tomei, enfim, a minha resolução de falar claro e disse ao doutor Strong que... O senhor não quer falar?

Isto dirigia-se ao doutor, que tinha feito ouvir um gemido. Nenhum coração deixaria de emocionar-se, excepto, todavia, o de Uriah.

— Eu dizia ao doutor Strong — prosseguiu ele — que toda a gente podia perceber que havia muita intimidade entre Mister Maldon e a sua encantadora prima. Realmente chegou o tempo (visto que nos achámos imiscuídos em coisas que não podiam ser) em que o doutor Strong deve saber que isso era claro como o dia para toda a gente, muito antes da partida de Mister Maldon para as índias; que Mister Maldon não regressou por outra coisa e que não é por outra coisa que ele está sempre aqui. Quando o senhor entrou, eu pedia ao meu sócio — e voltou-se para Mister Wickfield — que se dignasse dizer em sua alma e consciência, ao doutor Strong, se há muito tempo não era da mesma opinião. Mister Wickfield, tem a bondade de no-lo dizer? Sim, ou não, senhor? Vamos, meu sócio!

— Pelo amor de Deus, meu caro amigo — disse Mister Wickfield pousando de novo a mão com um ar indeciso no braço do doutor —, não ligue grande importância a suspeitas que pude formular.

— Ah! — bradou Uriah, abanando a cabeça —, que triste confirmação das minhas palavras, não é verdade? Ele! Um amigo tão antigo! Mas, Copperfield, eu ainda não passava de um simples caixeiro nos seus escritórios e já o via não uma vez, mas vinte vezes, muito perturbado (e tinha toda a razão, na sua qualidade de pai e não serei eu que o censure) ao pensar que miss Inês se encontrava misturada com coisas que não podem ser.

— Meu caro Strong — disse Mister Wickfield numa voz trémula —, meu bom amigo, não tenho necessidade de lhe dizer que tive sempre o defeito de procurar em toda a gente um móbil dominante e de julgar todas as acções dos homens por esse princípio estreito. Foi talvez ainda o que me enganou nesta circunstância, dando-me dúvidas temerárias.

— Teve dúvidas, Wickfield — disse o doutor, sem erguer a cabeça —, teve dúvidas?

— Fale, meu sócio — disse Uriah.

— Tive, certamente, algumas — disse Mister Wickfield —, mas... Deus me perdoe, eu julgava que o senhor também as tinha.

— Não, não, não! — respondeu o doutor no tom mais patético.

— Pois julgava — disse Mister Wickfield — que quando desejou mandar Maldon para o estrangeiro, era no intuito de arranjar uma separação desejável.

— Não, não, não! — respondeu o doutor. — Era para dar gosto à Annie que eu procurei empregar o companheiro da sua infância. Nada mais.

— Vi-o depois — disse Mister Wickfield — e não podia duvidar, mas supunha... peço-lhe que se lembre que tive sempre a desgraça de julgar tudo por um ponto de visto muito estreito... eu supunha que, num caso em que havia uma tal diferença de idade...

— É assim que é preciso encarar o caso, não é verdade, mestre Copperfield? — observou Uriah com uma hipocrisia e insolente compaixão.

— Não me parecia impossível que uma pessoa tão nova e tão encantadora pudesse, apesar de todo o seu respeito por si, ter cedido, desposando-o, a considerações puramente mundanas. Eu não pensava numa porção de outras razões e de sentimentos que podiam tê-la decidido. Pelo amor do céu não se esqueça disso.

— Que caridade de interpretação! — disse Uriah meneando a cabeça.

— Como não o considerava senão no meu ponto de vista — disse Mister Wickfield — em nome de tudo o que lhe é caro, meu velho amigo, suplico-lhe que reflicta bem; sou forçado a confessar-lho, porque não posso deixar...

— Não, é impossível, senhor Wickfield — disse Uriah — uma vez que chegou até aí.

— Sou forçado a confessar — disse Mister Wickfield, fitando o sócio com um olhar dolorido e desolado — que tive dúvidas acerca dela, que supus que ela faltava aos seus deveres consigo; e que, se é preciso dizer-lhe tudo, tenho andado por vezes inquieto com o pensamento de que Inês estava bastante ligada com ela para ver o que via, ou pelo menos, o que julgava ver o meu espírito prevenido. Nunca o disse a ninguém. Abster-me-ia cuidadosamente de insuflar a alguém a menor ideia. E, por mais terrível que isso possa ser para o doutor ouvir — concluiu Mister Wickfield vencido pela emoção — se soubesse o que me incomoda dizer-lho, teria compaixão de mim!

O doutor, com a sua perfeita bondade, estendeu-lhe a mão. Mister Wickfield segurou-a um momento nas suas e ficou tristemente, de cabeça baixa.

— O que há de bem certo — disse Uriah que durante todo esse tempo se contorcia em silêncio como uma enguia — é que isto é para toda a gente um caso muito deplorável. Mas já que tão longe chegámos, tomarei a liberdade de observar que Copperfield já tinha igualmente dado fé.

Eu voltei-me para ele e perguntei-lhe como é que se atrevia a meter-me nisso.

— Oh! Isso fica-lhe muito bem, Copperfield — prosseguiu Uriah — e todos sabemos quanto o senhor é bom e amável; mas o senhor sabe que na outra noite, quando lhe falei, compreendeu logo o que eu queria dizer. O senhor sabe-o, Copperfield, não negue! Eu bem sei que, se nega, é com as mais excelentes intenções; mas não o negue, Copperfield!

Vi parar um momento sobre mim o doce olhar do bom velho doutor e senti que ele não poderia ler senão muito claramente no meu rosto a confissão das minhas suspeitas e das minhas dúvidas. Era inútil dizer o contrário; eu não podia fazer nada; não podia contradizer-me a mim próprio.

Todos se tinham calado; o doutor levantou-se e atravessou duas ou três vezes o aposento, depois aproximou-se do lugar onde estava a sua poltrona e encostou-se ao espaldar; enfim, enxugando de tempos a tempos as lágrimas, disse-nos com uma sinceridade simples que lhe dava, na minha opinião, muito mais honra do que se procurasse ocultar a sua emoção:

— Eu tenho tido grande culpa. Creio sinceramente que tenho grande culpa. Expus uma pessoa que ocupa o primeiro lugar no meu coração, a dificuldades e a suspeitas de que, se não fora eu, não teria sido objecto.

Uriah Heep fez ouvir uma espécie de fungadela. Suponho que era para exprimir a sua simpatia.

— Se não fosse eu, nunca a minha Annie — continuou o doutor — estaria exposta a tais suspeitas. Eu sou velho, meus senhores, bem o sabem; sinto, esta noite, que já não tenho laços que me liguem à vida. Mas, respondo sobre a minha vida, sim, sobre a minha vida, pela fidelidade e pela honra da querida mulher que tem sido o assunto desta conversa!

Creio que não se encontraria nem entre os mais nobres cavaleiros, nem entre os mais belos tipos um dia inventados pela imaginação dos pintores, um velho capaz de falar com uma dignidade mais emocionante do que este bom velho doutor.

— Mas — prosseguiu ele — se pude iludir-me antes a este respeito, não posso dissimular-me agora, reflectindo nisto, que fui eu quem teve a culpa de fazer cair essa rapariga nos perigos de um casamento imprudente e funesto. Não tenho o hábito de reparar no que se passa e sou forçado a crer que as observações de diversas pessoas, de idade e de posição diferentes, que todos julgaram ver a mesma coisa, valem naturalmente mais do que a minha cega confiança.

Eu tinha admirado muitas vezes, já o disse, a benevolência das suas maneiras com a sua jovem esposa, mas, a meus olhos, nada podia ser mais emocionante do que a ternura respeitosa com que falava dela nessa ocasião e a nobre confiança com que repelia para longe a mais leve dúvida acerca da sua fidelidade.

— Desposei essa menina — tornou o doutor — quando ainda era quase uma criança. Tomei posse dela antes que o seu nobre carácter fosse apenas formado. Os progressos que ela pôde fazer, fui eu que tive a felicidade de para eles contribuir. Conhecia bastante seu pai, conhecia-a muito a ela própria. Ensinei-lhe tudo quanto pude, por amor das suas belas e grandes qualidades. Se eu lhe fiz mal, como receio, abusando, sem querer, do seu reconhecimento e do seu afecto, do fundo da minha alma lhe peço perdão!

Atravessou a sala e depois regressou ao seu lugar; com a sua mão apertava a tremer a poltrona; a sua voz vibrava de uma emoção reprimida.

— Considerava-me como próprio a servir-lhe de refúgio contra os perigos e as vicissitudes da vida; afigurava-se-me que, apesar da desigualdade das nossas idades, poderia viver tranquila e feliz junto de mim. Mas, não creiam que eu jamais perdesse de vista que havia de vir um dia em que a deixasse livre, ainda formosa e nova; esperaria somente que então a deixaria também com um juízo mais reflectido para se dirigir na escolha que tivesse a fazer. Sim, meus senhores, é esta a verdade, pela minha honra o juro!

O seu rosto honesto animava-se e rejuvenescia sob a inspiração de tanta nobreza e de tanta generosidade. Havia em cada uma das suas palavras, uma força e uma grandeza que só a elevação desses sentimentos lhe podia dar.

— A minha vida tem sido com ela bastante feliz. Até esta noite, constantemente tenho abençoado o dia em que cometi para com ela, sem o saber, uma tamanha injustiça.

A sua voz tremia sempre cada vez mais; parou um momento e depois prosseguiu:

— Uma vez que saí deste belo sonho (de uma maneira ou de outra, sonhei muito na minha vida), compreendo que é natural que ela pense com um pouco de desgosto no seu antigo companheiro de infância. Não deixa de ser verdade, suponho, que ela pense nele com um pouco de desgosto inocente, que pense por vezes no que teria podido ser, se não fosse eu. Durante esta hora tão dolorosa por que acabo de passar com os senhores, lembraram-me e compreendi bastantes coisas a que antes não tinha prestado atenção. Mas, meus senhores, lembrem-se de que nem uma palavra nem um sopro de dúvida deve manchar o nome dessa jovem mulher.

Por um instante o olhar inflamou-se-lhe, a voz fortaleceu-se-lhe e depois calou-se novamente. Em seguida prosseguiu:

— Não me resta mais do que suportar com tanta submissão quanta puder, o sentimento de desgraça de que sou causa. É a ela a quem compete censurar-me, não a mim. O meu dever, nesta conjuntura, há-de ser protegê-la contra qualquer juízo temerário, juízo cruel de que nem os meus próprios amigos puderam resguardar-se. Quanto mais vivermos longe da sociedade, tanto mais me será fácil esse viver. E quando chegar o dia (que o Senhor não demore muito, na sua grande misericórdia!), em que a minha morte a liberte de todo o constrangimento, cerrarei os meus olhos depois de ter contemplado ainda o seu querido rosto, com uma confiança e um amor sem limites e deixá-la-ei então, sem tristeza, livre para uma vida mais feliz e mais satisfeita.

As minhas lágrimas não mo deixavam ver; tanta bondade, tanta simplicidade e tanta convicção tinham-me emocionado até ao fundo de alma.

Ele dirigia-se para a porta, quando acrescentou:

— Meus senhores, abri-lhes todo o meu coração. Estou certo de que o hão-de respeitar. O que dissemos esta noite não deve repetir-se mais. Wickfield, meu velho amigo, dê-me o seu braço para me ajudar a subir.

Mister Wickfield apressou-se a correr para ele. Saíram lentamente, sem trocarem uma única palavra. Uriah seguia-os com os olhos.

— Então, mestre Copperfield! — disse ele voltando-se para mim com um ar complacente. — A coisa não tomou completamente o caminho que era dado esperar, porque esse velho sábio, que excelente homem!, anda cego como um morcego; mas, é o mesmo, aqui está uma família a quem eu faço virar de querena!

Bastava-me ouvir-lhe a voz para eu entrar num tal acesso de raiva como nunca tive igual, nem antes, nem depois.

— Miserável! — disse-lhe eu —, porque é que pretende enrodilhar-me nas suas pérfidas intrigas? Como é que se atreveu, há bocado, a apelar para o meu testemunho, seu vil trapaceiro!, como se tivéssemos discutido juntos aquele caso?

Estávamos em frente um do outro. Eu lia-lhe claramente na cara o seu secreto triunfo; eu sabia de mais que ele me tinha coagido a ouvi-lo unicamente para me desesperar e que me tinha expressamente atraído a uma emboscada. Era de mais: estava ao meu alcance a sua cara espapaçada: dei-lhe uma tal bofetada, que os dedos ficaram-me adormentados, como se acabasse de os meter no fogo.

Ele agarrou na mão que lhe bateu e ficámos um pouco de tempo a fitar-nos em silêncio, o bastante para que as marcas brancas com que os meus dedos lhe tinham avergoado a cara, se transformassem em marcas de um vermelho violeta.

— Copperfield! — disse ele por fim, numa voz estrangulada —, perdeu o juízo?

— Deixe-me — disse-lhe arrancando a minha mão da sua — deixe-me, você é um sabujo, não quero mais conhecê-lo!

— Deveras! — disse ele levando a mão à cara dorida —, por mais que faça, talvez não possa deixar de me conhecer... Sabe que é um ingrato?

— Bastantes vezes lhe tenho evidenciado — retorqui — que o desprezo. Supõe você que eu receie ainda, tratando-o como merece, de o impelir a prejudicar mais os que o rodeiam? Não lhes tem você feito já todo o mal que tem podido?

Ele compreendeu perfeitamente esta alusão aos motivos que até então me tinham forçado a uma certa moderação nas minhas relações com ele. Creio que não chegaria nem a falar-lhe assim, nem a castigá-lo por minhas próprias mãos, se não tivesse recebido, nessa tarde, de Inês, a certeza de que nunca pertenceria a esse biltre. Mas pouco importa!

Houve ainda um grande silêncio. Enquanto me fitava, os seus olhos pareciam ir tomando as cambiantes mais hediondas que podem desfear uns olhos.

— Copperfield — disse ele tirando a mão da cara — o senhor tem estado sempre em oposição comigo. Sei que em casa de Mister Wickfield tem sido sempre contra mim.

— Pode pensar o que lhe parecer — disse-lhe colérico. — Se não for verdade, mais odioso se me torna.

— E todavia eu sempre fui seu amigo, Copperfield — prosseguiu ele.

Não me dignei responder-lhe e pegava no chapéu para sair da sala, quando ele se foi colocar entre mim e a porta.

— Copperfield — disse — para haver disputa é preciso ser-se dois. Eu não quero ser um desses.

— Vá para o diabo!

— Não diga isso! — respondeu. — Mais tarde havia de o sentir. Como é que pode dar-me sobre si toda a vantagem, mostrando a meu respeito um tão mau carácter? Mas eu perdoo-lhe!

— Perdoa-me?! — repeti eu com desdém.

— Sim, e não poderá impedir que o faça — respondeu Uriah. — Quando se pensa que o senhor me agrediu, a mim que tenho sido sempre para si um verdadeiro amigo! Mas, para haver disputa, é preciso ser-se dois e eu não quero pertencer a esse número. Quero ser seu amigo, ainda que o senhor o não queira. Agora conhece os meus sentimentos e o que tem a esperar.

Éramos forçados a baixar a voz, para não perturbar a casa a essa hora adiantada e até então, quanto mais era humilde a sua voz, mais a minha era ardente e essa necessidade de me conter não era nada própria a dar-me melhor humor; todavia, a minha paixão começava a tranquilizar-se. Disse-lhe muito simplesmente que esperaria dele o que sempre tinha esperado e que nunca me havia enganado a seu respeito. Depois abri a porta mesmo com ele em frente de mim, como se fosse qualquer coisa que eu quisesse esmagar contra a parede e saí de casa. Mas ele também ia dormir fora, nos aposentos que se tinham arranjado para a mãe e eu ainda não tinha dado cem passos, quando o ouvi caminhar atrás de mim.

— Bem sabe, Copperfield — disse-me ele inclinando-se para mim, porque eu nem sequer voltava a cabeça — bem sabe que se coloca numa má situação.

Eu sentia que era verdade e isso fazia-me irritar mais.

— O senhor não pode fazer com que o honre a acção que prática e não pode impedir que eu lhe perdoe. Não tenciono falar nisto a minha mãe, nem a ninguém no mundo. Estou decidido a perdoar-lhe, mas admira-me que tivesse erguido a mão contra alguém que o senhor conhece tão humilde.

Sentia-me quase tão desprezível como ele. Ele conhecia-me melhor do que eu próprio me conhecia. Se se queixasse amargamente ou procurasse exasperar-me, isso ter-me-ia aliviado um pouco e justificado a meus próprios olhos; mas fazia-me queimar a fogo lento e estive na grelha mais de metade da noite.

No dia seguinte, quando saí, tocava o sino da igreja; ele passeava de cá para lá com a mãe. Falou-me como se nada se tivesse passado e eu não tive outro remédio senão responder-lhe. Tinha-lhe batido forte de mais, creio, causando-lhe uma violenta dor de dentes. Em todo o caso, trazia um lenço preto atado na cara, com o chapéu a bambolear-lhe em cima; assim, ainda estava mais feio do que era. Soube, na segunda-feira de manhã, que tinha ido a Londres tirar um dente. Creio bem que era algum queixai.

O doutor tinha-nos mandado dizer que não se encontrava bem e conservou-se só durante uma grande parte do tempo que durou ainda a nossa estada ali. Inês e o pai tinham partido há uns oito dias, quando prosseguimos no nosso costumado trabalho. Na véspera do dia em que recomeçamos com a obra, o próprio doutor entregou-me um bilhete que não estava fechado e que me era dirigido; suplicava-me ele, nos termos mais afectuosos, que nunca aludisse à conversação que houvera entre nós alguns dias antes. Eu tinha-o dito a minha tia, mas não falara no caso a mais pessoa alguma. Era um assunto que não podia discutir com Inês e ela não tinha certamente a mais leve suspeita do que se havia passado.

Mistress Strong também de nada desconfiava, estou certo disso. Decorreram algumas semanas antes que eu notasse nela a menor mudança. Isso foi vindo lentamente, como uma nuvem, quando não há vento. A princípio, pareceu admirar-se da terna compaixão com que o doutor lhe falava e do desejo que lhe exprimia de que mandasse vir a mãe para junto dela, a fim de quebrar um pouco a monotonia da sua vida. Muitas vezes, quando estávamos a trabalhar e que ela se sentava junto de nós, eu via-a parada a olhar para o marido, com uma expressão de espanto e de inquietação. Depois, via-a algumas vezes levantar-se e sair da sala, com os olhos marejados de lágrimas. Pouco a pouco, uma sombra de tristeza veio pairar no seu belo rosto e essa tristeza aumentava de dia para dia. Mistress Markleham instalara-se em casa do doutor, mas falava tanto que não tinha tempo de dar por nada.

À medida que Annie ia assim mudando, ela que dantes era como um raio de sol na casa do doutor, o doutor tomava a aparência de mais velho e mais grave; mas a doçura do seu carácter, a tranquila bondade das suas maneiras e a sua benévola solicitude por ela, tinham aumentado mais, se é possível. Vi-o ainda uma vez, na manhã do aniversário de sua mulher, aproximar-se da janela a que ela estava sentada enquanto trabalhávamos (era dantes seu hábito, mas agora não ia para esse lugar senão com um ar tímido e incerto que me pungia o coração); tomou a cabeça de Annie entre as mãos, beijou-a e afastou-se rapidamente, para lhe ocultar a sua emoção. Vi-a ficar imóvel, como uma estátua, no lugar em que ele a tinha deixado; depois baixou a cabeça, juntou as mãos e pôs-se a chorar angustiosamente.

Alguns dias depois pareceu-me que desejava falar-me, nos momentos em que nos achávamos sós, mas nunca me disse uma palavra. O doutor inventava sempre qualquer novo divertimento para a afastar de casa e a mãe, que gostava muito de distrair-se, ou, antes, que não gostava senão disso, associava-se-lhe com toda a vontade e não se poupava em tecer elogios ao genro. Quanto a Annie, deixava-se arrastar para onde a queriam levar, com ar triste e abatido; mas parecia não ter gosto de nada.

Eu não sabia que pensar. Minha tia não era mais hábil e estou certo de que essa incerteza a obrigou a caminhar mais de trinta léguas no seu quarto. O que havia de mais extravagante, é que a única pessoa que parecia dar um pouco de verdadeiro alívio no meio de todo este desgosto interior e misterioso, era Mister Dick.

Ser-me-ia completamente impossível e talvez a ele próprio, explicar o que Mister Dick pensava de tudo isto, ou as observações que pudera fazer. Mas, como já referi contando a minha vida colegial, a sua veneração pelo doutor não tinha limites e num verdadeiro afecto, mesmo da parte de qualquer pobre animal, há um instinto sublime e delicado que deixa bem para longe atrás de si a inteligência mais elevada. Mister Dick possuía o que se poderia chamar espírito do coração e era com isso que ele entrevia qualquer raio da verdade.

Tinha recuperado o hábito, nas suas horas de ócio, de passear no pequeno jardim com o doutor, como outrora passeava com ele na grande avenida do jardim de Canterbury. Mas assim que as coisas chegaram a este estado, ele consagrou todas as suas horas de ócio (que aumentava expressamente, levantando-se muito cedo) a estas excursões. Dantes nunca se considerava feliz senão quando o doutor lhe lia a sua maravilhosa obra, o Dicionário; agora era positivamente desgraçado enquanto o doutor não tirava o Dicionário do bolso para prosseguir a sua leitura. Quando estávamos ocupados, o doutor e eu, tinha ele por hábito passear com Mistress Strong, ajudá-la a cuidar das suas flores de predilecção ou a limpar as suas platibandas. Não trocavam um com o outro, estou certo, mais de doze palavras por hora, mas o seu pacífico interesse e o seu afectuoso olhar encontravam sempre um eco completamente pronto nos seus dois corações, cada um deles sabia que o outro gostava de Mister Dick e que ele gostava também deles ambos; foi assim que ele se tornou o que nenhum outro podia ser... um laço entre ambos.

Quando penso nele e que o vejo, com o seu rosto inteligente, mas impenetrável, andando de cá para lá ao lado do doutor, encantado com todas as palavras incompreensíveis do Dicionário, acarretando para Annie imensos regadores ou então andando de gatas, com luvas fabulosas, a arrancar, com uma paciência de santo, plantas microscópicas; fazendo compreender delicadamente a Mistress Strong, em cada uma das suas acções, o desejo de lhe ser agradável, com um tino que nenhum filósofo saberia igualar; fazendo repuxar de cada buraquinho do regador, a sua simpatia, a sua fidelidade e o seu afecto; quando penso que, nesses momentos, a sua alma, toda integrada no mudo pesar dos seus amigos, não mais divagou nas suas antigas loucuras e que nunca introduziu uma única vez no jardim o desditoso rei Carlos; que nunca se descuidou um só momento na sua boa vontade reconhecida; que nunca esqueceu que havia ali algum equívoco que era preciso reparar: sinto-me quase confundido por ter podido acreditar que ele não possuíra sempre o seu bom-senso, sobretudo pensando no belo uso que fiz da minha razão, eu que me lisonjeio de não a ter perdido.

— Ninguém como eu sabe o que vale esse homem, Trot! — dizia-me orgulhosamente minha tia, quando conversávamos. — Dick há-de distinguir-se qualquer dia.

É necessário que antes de terminar este capítulo eu passe a outro assunto. Enquanto o doutor ainda tinha os seus hóspedes em sua casa, notei que o carteiro trazia todas as manhãs duas ou três cartas a Uriah Heep, que tinha permanecido em Highgate tanto tempo como os outros, visto que se estava em férias. O sobrescrito era sempre da escrita oficial de Mister Micawber; ele tinha adoptado a letra redonda para os negócios. Eu havia concluído com prazer, por esses leves indícios, que Mister Micawber ia bem; fiquei, pois, muito surpreendido ao receber um dia a seguinte carta da sua amável esposa:

Canterbury, segunda-feira à noite.

Por certo que há-de ficar admirado, meu caro Mister Copperfield, ao receber esta carta. Talvez que ainda mais o fique do conteúdo e talvez mais ainda do pedido de absoluto segredo que lhe dirijo. Mas, na minha dupla qualidade de esposa e de mãe, preciso de expandir o meu coração e como não quero consultar a minha família (já pouco favorável a Mister Micawber), não conheço ninguém a quem possa dirigir-me com mais confiança do que ao meu amigo e antigo inquilino.

Há-de saber, talvez, meu caro senhor Copperfield, que tem havido sempre uma perfeita confiança entre mim e Mister Micawber (a quem nunca abandonarei). Não digo que Mister Micawber não tenha assinado por vezes uma letra sem me consultar, ou que não me tenha induzido em erro sobre a época do vencimento. É possível, mas em geral Mister Micawber não escondeu nada do «seio do seu afecto» (é de sua mulher que quero falar) e à hora das nossas refeições, recapitulou sempre diante dela os acontecimentos do seu dia.

Pode figurar-se, meu caro senhor Copperfield, todo o pesar do meu coração, quando eu lhe disser que Mister Micawber está inteiramente mudado. É todo reservado. Faz de discreto. A sua vida é um mistério para a companheira das suas alegrias e dos seus pesares (é ainda de sua mulher que eu falo) e posso dizer-lhe que já não sei o que ele faz todo o dia no escritório, que não estou ao corrente da existência desse homem milagroso, de quem se conta às criancinhas que vivia de lamber as paredes. Isto ainda se sabe bem que é uma fábula popular, enquanto que o que lhe conto de Mister Micawber, infelizmente, não deixa de ser muito verdadeiro.

Mas não é tudo: Mister Micawber tornou-se rabugento; é severo; vive retirado do nosso filho mais velho, da nossa filha; não fala já com orgulho dos seus gémeos; lança mesmo um olhar glacial sobre o inocente desconhecido que veio ultimamente juntar-se à nossa roda familiar. Não obtenho dele senão com a maior dificuldade os recursos pecuniários que me são indispensáveis para ocorrer a despesas bastante reduzidas, asseguro-lhe; ameaça-me, sem cessar, de se fazer fazendeiro (é a sua expressão) e recusa-se com barbárie a dar-me a menor razão de um procedimento que me magoa.

É bem duro de suportar: o meu coração despedaça-se. Se quiser dar-me algum conselho, ajuntarei uma fineza a mais às muitas que lhe devo. Conhece os meus fracos recursos: diga-me como posso empregá-los numa situação tão equívoca. Os meus filhos enviam-lhe mil ternuras; o pequeno desconhecido, que tem a felicidade, ai de mim!, de ignorar ainda todas as coisas, sorri-lhe e eu, meu caro Mister Copperfield, sou

Sua amiga bem aflita.

EMA MICAWBER

Eu não me reconhecia o direito de dar a uma mulher tão cheia de experiência, como Mistress Micawber, outro conselho senão o de procurar reconquistar a confiança de Mister Micawber à força de paciência e de bondade (e eu estava certo de que ela não faltaria a isso), mas esta carta não me dava menos que pensar.

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