David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XLI - As tias de Dora

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By ClassicosLP

Recebi finalmente uma resposta das duas velhas senhoras. Apresentavam os seus cumprimentos a Mister Copperfield e informavam-no de que tinham lido a sua carta com a mais séria atenção, «no interesse das duas partes». Esta expressão pareceu-me suficiente para alarmar, não só porque já se tinham servido dela noutros tempos na discussão que tiveram com o irmão, mas também porque eu tinha notado que as frases de convenção são como essas girândolas de fogo de artifício de que não se pode prever, à partida, a variedade de formas e de cores que as diversificam, sem o menor respeito pela sua forma original. Essas senhoras acrescentavam que não julgavam conveniente exprimir, «por carta», a sua opinião sobre o assunto de que as informara Mister Copperfield; mas que se Mister Copperfield quisesse dar-lhes a honra de uma visita, num dia designado, felicitar-se-iam por conversar com ele; Mister Copperfield podia, se o julgasse conveniente, fazer-se acompanhar de uma pessoa de confiança.

Mister Copperfield respondeu imediatamente a esta carta que apresentava às senhoras Spenlow os seus respeitosos cumprimentos, que teria a honra de as visitar no dia que designassem e que se acompanharia, como haviam por bem permitir-lhe, do seu amigo Mister Tomás Traddles, do Templo. Uma vez expedida esta carta, Mister Copperfield entrou num estado de excitação nervosa que lhe durou até ao dia fixado.

O que muito aumentava a minha inquietação, era não poder, numa crise tão importante, recorrer aos inestimáveis serviços de miss Mills. Mas Mister Mills, que parecia empenhar-se em me contrariar (pelo menos eu acreditava-o, o que vinha a dar na mesma), Mister Mills, vinha eu dizendo, acabava de tomar uma resolução extrema, metendo-se-lhe na cabeça partir para as índias. Façam favor de me dizer o que é que ele queria fazer nas índias, se não era para me vexar? Dir-me-ão talvez que não tinha nada que fazer noutra qualquer parte do mundo e que aquela o interessava particularmente, pois que todo o seu negócio se fazia com a índia. Não sei bem qual pudesse ser esse comércio (eu tinha, sobre este assunto, noções bastante vagas de chales de lhama de ouro e de dentes de elefantes); ele tinha estado em Calcutá, quando novo e queria voltar a instalar-se lá, como sócio residente. Mas isso tudo pouco me importava, o que era bem verdade é que ia partir, que levava Júlia e que Júlia andava de viagem para despedir-se dos parentes; a sua casa tinha escritos para vender ou alugar; o mobiliário (tanto a máquina de lavar roupa como o resto) devia ser vendido por avaliação. Aí tinha eu ainda um tremor de terra debaixo dos pés, antes de estar ainda bem restabelecido do primeiro!

Eu hesitava muito sobre o caso de saber como havia de ir vestido nesse dia solene; estava inclinado entre o desejo de aparecer bem posto e o receio de que algum preparo no meu vestuário viesse a ofuscar a minha reputação de homem sério aos olhos das meninas Spenlow. Tentei um feliz mezzo termino, cuja ideia minha tia aprovou, e, para assegurar o êxito da nossa empresa, Mister Dick, segundo os usos matrimoniais do país, atirou o seu sapato atrás de Traddles e de mim, quando descíamos a escada.

Apesar de toda a minha estima pelas boas qualidades de Traddles e apesar de todo o afecto que eu lhe votava, não podia deixar, numa ocasião tão delicada, de desejar que não se penteasse em ar de escova, como sempre fazia: os cabelos arrepiados davam-lhe uma aparência desvairada, poderia mesmo dizer uma catadura de vassoura de piaçaba de que as minhas apreensões supersticiosas nada de bom me faziam agoirar.

Tomei a liberdade de lhe dizer pelo caminho e de lhe insinuar que, se pudesse, alisasse um pouco a gaforina...

— Meu caro Copperfield — disse Traddles tirando o chapéu e alisando os cabelos em todos os sentidos — nada me poderia ser mais agradável, mas eles não querem!

— Eles não querem alisar-se?

— Não — disse Traddles. — Nada os pode decidir. Poderia levar em cima da cabeça um peso de cinquenta libras, daqui até Putney, que os cabelos arrepiar-se-iam logo, mal tirasse o peso. Não pode fazer uma ideia da teimosia deles, Copperfield. Sou como um porco espinho enraivecido.

Confesso que fiquei um pouco desapontado, apesar de lhe levar a bem a sua bonomia. Disse-lhe que adorava o seu carácter e que certamente toda a teimosia que podia haver na sua pessoa lhe passou para os cabelos, porque nele nem vestígio havia.

— Oh! — prosseguiu Traddles, rindo —, não é de hoje que tenho a queixar-me destes desastrados cabelos. A mulher de meu tio não podia suportá-los. Dizia que a exasperavam. E isto prejudicou-me bastante, no começo, quando namorava a Sofia! Oh! Mas muito!

— Ela não gostava dos seus cabelos?

— Ela não — prosseguiu Traddles —, mas a irmã mais velha, a beleza da família, não se cansava de rir, segundo parece. O facto é que todas as suas irmãs se divertem à custa da minha gaforina.

— É agradável.

— Oh! Sim — prosseguiu Traddles com uma inocência adorável — isso diverte-nos a todos. Pretendem que Sofia tem uma madeixa dos meus cabelos na sua escrivaninha e que, para eles se não arrepiarem, ela se vira obrigada a metê-los dentro de um livro com fechos. Nós ríamos bastante, palavra!

— A propósito, meu caro Traddles, a sua experiência poderá ser-me útil. Quando o senhor foi considerado como noivo da menina de que acaba de me falar, diga-me: teve de fazer à família uma proposta em forma? Por exemplo, realizou a cerimónia pela qual vamos passar hoje? — acrescentei emotivamente.

— Olhe, Copperfield — disse Traddles e o seu rosto tornou-se mais sério — foi um caso que me afligiu bastante. Compreende que Sofia é tão útil na sua família, que não se podia suportar a ideia de ter um dia de casar. Tinham mesmo decidido, entre eles, que ela nunca se casaria e até já lhe chamavam a solteirona. Assim, quando eu disse uma palavra a Mistress Crewler, com todas as precauções imagináveis...

— É a mãe?

— É; o pai é o Rev. Horácio Crewler. Quando eu disse essa palavra a Mistress Crewler, a despeito de todas as minhas precauções oratórias, ela soltou um grande grito e desmaiou. Foi me preciso esperar meses e meses antes de poder abordar de novo o mesmo assunto.

— Mas finalmente conseguiu?

— Foi o Rev. Horácio — disse Traddles — o excelente homem! Exemplar em todas as suas relações; representou-lhe que, como cristã, devia submeter-se a esse sacrifício, tanto mais que não era talvez nenhum e guardar-se de todo o sentimento contrário à caridade a meu respeito. Quanto a mim, Copperfield, dou-lhe a minha palavra de honra, que me fazia horror a mim próprio; considerava-me um abutre que acabava de cair sobre esta estimável família.

— As irmãs tomaram o seu partido, Traddles, não é verdade?

— Não posso dizer isso. Quando Mistress Crewler se reconciliou um pouco com essa ideia, tivemos que a anunciar a Sara. Lembra-se do que eu lhe disse de Sara? Aquela que tem qualquer coisa na espinha dorsal!

— Oh! Perfeitamente.

— Pôs-se a torcer as mãos angustiada, olhando para mim com um ar desolado; depois fechou os olhos, empalideceu muito; o corpo ficou-lhe mais hirto do que um madeiro e durante dois dias só pode tomar água panada, às colheres!

— É então uma rapariga insuportável, Traddles?

— Peço-lhe perdão, Copperfield. É uma rapariga encantadora, mas tem tanta sensibilidade! O facto é que são todas assim. Sofia disse-me em seguida que nada poderia dar-me uma ideia das censuras que a si própria se dirigiu, ao tratar de Sara. Estou certo de que ela deve ter sofrido, Copperfield; julgo-o por mim, porque eu tinha-me lá na conta de um verdadeiro criminoso. Quando Sara se restabeleceu, foi preciso anunciá-lo às outras oito e em cada uma delas o efeito foi dos mais enternecedores. As duas irmãs mais pequenas que Sofia agora educa, só há pouco é que começaram a deixar de me ter zanga.

— Mas enfim, estão todos agora reconciliados com essa ideia, não é verdade?

— Sim... sim, no fim de contas, creio que se resignaram. — disse Traddles num tom de dúvida. — Para lhe dizer a verdade, evitámos falar nisso; o que muito as consola, é a incerteza do meu futuro e a mediocridade da minha situação. Mas, se algum dia nos casarmos, haverá uma cena deplorável. A cerimónia parecer-se-á bem mais com um enterro do que com uma boda e todas me aborrecerão por eu lha ir buscar.

O seu rosto tinha uma expressão de candura a um tempo séria e cómica, cuja recordação me impressiona talvez ainda mais agora do que então, porque então encontrava-me num tal estado de ansiedade e de tremor por mim próprio, que estava completamente incapaz de fixar a minha atenção sobre o que quer que fosse. À medida que nos aproximávamos da casa das meninas Spenlow, sentia-me tão pouco tranquilizado sobre as minhas exterioridades pessoais e sobre a minha presença de espírito, que Traddles me propôs, para me restabelecer, ir beber qualquer coisa levemente excitante, como um copo de ale. Levou-me a um café vizinho; depois, ao sair, dirigi-me em passo trémulo para a porta dessas meninas.

Tive como uma vaga sensação de que tínhamos chegado, quando vi uma criada abrir-nos a porta. Pareceu-me que entrava cambaleando num vestíbulo aonde havia um barómetro e que dava para uma saleta ao rés-do-chão. Essa saleta abria sobre um lindo jardinzinho. Depois, creio que me sentei num canapé, que Traddles tirou o chapéu e que os seus cabelos, arrepiando-se, lhe deram o aspecto de um desses pequenos bonecos de molas que saltam de uma caixa quando se lhes abre a tampa. Creio ter ouvido um velho relógio rococó, que ornamentava o fogão, bater o seu tique-taque e que tentei afinar por ele o do meu coração; mas, essa é boa! O meu coração batia muito forte. Creio que procurei com a vista qualquer coisa que me recordasse Dora e que não vi nada. Creio também que ouvi Jip ladrar ao longe e que alguém lhe abafou os gritos. Enfim, por pouco que não empurrei Traddles contra o fogão, ao fazer uma mesura, com extrema confusão, a duas senhoras baixas, idosas, vestidas de preto, que se pareciam com duas diminutivas reproduções encarquilhadas do defunto Mister Spenlow.

— Queira sentar-se — disse uma das pequenas senhoras.

Quando cessei de fazer cair Traddles e que procurei uma outra cadeira ao mesmo tempo que um gato, sobre o qual me sentei, recuperei suficientemente os sentidos para notar que Mister Spenlow devia ser evidentemente o mais novo da família e devia ter seis ou oito anos menos do que as duas irmãs. A mais nova parecia encarregada de dirigir a conferência, tanto mais que tinha na mão a minha carta (a minha pobre carta! Reconhecia-a bem e todavia tremia de a reconhecer) e ela consultava-a de tempos a tempos com a sua luneta. As duas irmãs estavam vestidas iguais, mas a mais nova tinha todavia na sua pessoa não sei quê de um pouco mais juvenil e também no seu vestuário alguma renda a mais na gola, talvez um broche ou um bracelete, ou qualquer coisa assim que lhe dava uma aparência mais moça. Eram ambas hirtas, tranquilas e circunspectas. A irmã que não tinha a minha carta na mão cruzava os braços sobre o peito como um ídolo.

— É o senhor Copperfield, penso eu? — disse a irmã que tinha a carta, dirigindo-se a Traddles.

Que deplorável começo! Traddles obrigado a explicar que eu é que era Mister Copperfield e eu reduzido a reclamar a minha personalidade! E elas forçadas, por sua vez, a emendarem a opinião preconcebida de que Traddles era Mister Copperfield. Vejam lá como era agradável! E ainda por cima ouvimos distintissimamente dois pequenos latidos de Jip, desta vez abafados ainda.

— Senhor Copperfield! — disse a irmã que tinha a carta na mão.

Eu fiz não sei quê, provavelmente uma mesura e depois prestei toda a atenção ao que me disse a outra irmã.

— Minha mana Savínia, que é mais versada do que eu em tais matérias, é quem vai dizer-lhe o que julgamos de melhor a fazer no interesse das duas partes.

Soube mais tarde que miss Savínia fazia autoridade nos negócios de coração, porque houvera noutros tempos um certo Mister Pidger, que jogava o whist e que, ao que se supunha, a namoriscara. A minha opinião pessoal é que a suposição era inteiramente gratuita e que Pidger estava perfeitamente inocente de tal sentimento; o que há de positivo, é que nunca ouvi dizer que ele fizesse por isso. Mas enfim, miss Savínia e miss Clarissa, criam como num artigo de fé que ele teria declarado a sua paixão, se não tivesse sido levado na flor da idade (tinha uns sessenta anos), pelo abuso dos licores fortes, corrigido depois tarde e mal pelo abuso das águas de Bath como antídoto. Elas tinham até uma secreta suspeita de que ele morrera de um amor recolhido, o mesmo que consagrava a Savínia. Devo dizer que o retrato que elas conservavam dele apresentava um nariz carmesim que parecia não ter de forma alguma sofrido desse amor dissimulado.

— Nós não queremos — disse miss Savínia — ir buscar ao passado a origem do caso. A morte do nosso pobre mano Francis apagou tudo isso.

— Nós não tínhamos — disse miss Clarissa — frequentes relações com o mano Francis; mas não havia divisão nem desunião positiva entre nós. Francis ficou do seu lado, nós do nosso. Achámos que era o que havia de melhor a fazer no interesse das duas partes e era verdade.

As duas irmãs inclinavam-se igualmente para a frente quando falavam, depois abanavam a cabeça e punham-se direitas quando acabavam. Miss Clarissa nunca gesticulava. Com os dedos tocava algumas vezes piano sobre os joelhos, minuetes, marchas, suponho, mas os seus braços ficavam sempre imóveis.

— A posição da nossa sobrinha, pelo menos a sua posição suposta, mudou bastante desde a morte de nosso mano Francis. Devemos pois crer — disse miss Savínia — que a opinião de nosso mano acerca da posição de sua filha já não tem a mesma importância. Não temos razão para duvidar, Mister Copperfield, que o senhor não possua uma excelente reputação e um carácter honrado, nem que não tenha afeição por nossa sobrinha, ou pelo menos que não creia firmemente ter afeição por ela.

Respondi, como não queria em caso algum deixar fugir a ocasião, que nunca ninguém tinha amado alguém como eu amava Dora. Traddles auxiliou-me logo com um murmúrio confirmativo.

Miss Savínia ia a fazer um reparo, quando miss Clarissa, que parecia obcecada sem cessar pela necessidade de aludir ao seu mano Francis, tornou a tomar a palavra.

— Se a mãe de Dora — disse ela — nos dissesse, no dia em que desposou o nosso mano Francis, que não havia lugar para nós à sua mesa, melhor valeria no interesse das duas partes.

— Mana Clarissa — disse miss Savínia — é talvez melhor deixar isso de lado.

— Mana Savínia — disse miss Clarissa — isso tem relação com o assunto. Não terei a pretensão de imiscuir-me no ramo do assunto que lhe diz respeito. A mana é mais que competente para tratar disso. Mas, quanto ao outro ramo do assunto, reservo a minha voz e a minha opinião. Melhor valeria, no interesse das duas partes, que a mãe de Dora nos exprimisse claramente as suas intenções no dia em que desposou o mano Francis. Teríamos sabido a que ater-nos. Ter-lhe-íamos dito «Não se incomode mais a convidar-nos» e qualquer mal entendido teria sido evitado.

Quando miss Clarissa acabou de abanar a cabeça, miss Savínia tornou a tomar a palavra, consultando sempre a minha carta através da sua luneta. As duas irmãs tinham olhinhos redondos e brilhantes que se pareciam com olhos de pássaro. Em geral, tinham muita relação com passarinhos e havia no seu tom breve, pronto e brusco, como também no cuidado muito asseado com que compunham o vestuário, qualquer coisa que recordava a natureza e os costumes dos canários.

Miss Savínia retomou, pois, a palavra.

— O senhor Copperfield pede-nos, à mana Clarissa e a mim, autorização para nos vir visitar, como noivo da nossa sobrinha?

— Se conveio ao mano Francis — disse miss Clarissa que rompeu de novo (se tanto se pode dizer romper ao falar de uma interrupção feita com um ar tão sossegado) — se lhe aprouve rodear-se da atmosfera dos Doctor's-Commons tínhamos, por ventura, o direito ou o desejo de nos opor a isso? Não, por certo. Nunca procuramos impor-nos a ninguém. Mas porque não o dizer? O mano Francis e sua mulher eram perfeitamente senhores de escolher a sua companhia, como a mana Clarissa e eu, de escolhermos a nossa. Somos suficientemente maiores para não nos deixarmos cair em falta, suponho!

Como esta apóstrofe parecia dirigir-se a Traddles e a mim julgamo-nos obrigados a dar-lhe alguma resposta. Traddles falou muito baixo, não pôde ouvir-se; eu disse, segundo creio, que isso fazia grande honra a toda a gente. Palavra que não sei o que queria dizer com isso.

— Mana Savínia — disse miss Clarissa assim que ela acabou de aliviar o coração — continue.

Miss Savínia continuou:

— Senhor Copperfield, a mana Clarissa e eu reflectimos maduramente acerca da sua carta; e, antes de reflectirmos, começámos por mostrá-la à nossa sobrinha e por a discutirmos com ela. Não duvidamos que o senhor creia amá-la muito.

— Se creia amá-la, minha senhora! Oh!...

Ia entrar em êxtase, mas miss Clarissa lançou-me tal olhar (exactamente o de um canarinho), como para me rogar que não interrompesse o oráculo, que me calei pedindo desculpa.

— A afeição — disse miss Savínia olhando para sua irmã como para lhe pedir que a apoiasse com o seu assentimento, e miss Clarissa não faltava no fim de cada frase com um pequeno meneio de cabeça ad hoc —, a afeição sólida, o respeito, a dedicação custam a exprimir-se. A sua voz é débil. Modesto e reservado, o amor esconde-se, espera, espera sempre. E como um fruto que aguarda a maturidade. Muitas vezes a vida passa e ele fica ainda a amadurecer à sombra.

Naturalmente, não compreendi então que era uma alusão aos sofrimentos presumidos do desditoso Pidger; vi somente, pela gravidade com que miss Clarissa agitava a cabeça, que havia um profundo sentido nessas palavras.

— As inclinações ligeiras (porque não poderia compará-las com os sentimentos sólidos de que falo) — continuou miss Savínia — as inclinações ligeiras da gente moça não são ao pé disto senão o que a poeira é para a rocha. É tão difícil saber se têm um fundamento sólido, que a mana Clarissa e eu não sabíamos que fazer, a falar verdade, senhor Copperfield e senhor...

— Traddles — disse o meu amigo ao ver que o indicavam.

— Peço-lhe perdão, senhor Traddles do Templo, não é assim que se chama? — disse miss Clarissa deitando a luneta para a carta.

— Precisamente — disse Traddles, e ficou vermelho como um pimentão.

Eu não tinha recebido ainda nenhum estímulo positivo, mas parecia-me notar que as duas irmãs e sobretudo miss Savínia, se compraziam nessa nova questão de interesse doméstico; que procuravam tirar dela todo o partido possível e fazê-la durar o mais possível e isso dava-me boas esperanças. Julgava entrever que miss Savínia ficaria encantada de ter de governar dois jovens amantes, como Dora e eu e que miss Clarissa ficaria quase tão contente de a ver governar-nos, dando-se de tempos a tempos o prazer de dissertar sobre o ramo da questão que se tinha reservado para si. Isso deu-me coragem para declarar com a maior intensidade que amava Dora mais do que o podia dizer, ou do que se podia crer; que todos os meus amigos sabiam quanto eu a amava; que minha tia, Inês, Traddles, todos quantos me conheciam, sabiam quanto o meu amor por ela me tinha tornado sério. Invoquei o testemunho de Traddles. Traddles tomou calor como se mergulhasse impetuosamente num debate parlamentar e veio nobremente em meu auxílio; evidentemente, as suas palavras simples, sensatas e práticas, produziram uma impressão favorável.

— Tenho, se me é permitido dizê-lo, uma certa experiência nesta matéria — disse Traddles —; sou noivo de uma menina que é a mais velha de dez filhas, no Devonshire e até, no actual momento, não vejo probabilidade alguma de que possamos casar-nos.

— O senhor pode, pois, confirmar o que tenho dito, Mister Traddles — replicou miss Savínia, à qual ele inspirava evidentemente um interesse completamente novo sobre a afeição modesta e reservada que sabe esperar e sempre esperar.

— Inteiramente, minha senhora — replicou Traddles.

Miss Clarissa olhou para miss Savínia, fazendo-lhe com a cabeça um sinal cheio de gravidade.

Miss Savínia olhou para miss Clarissa com um ar sentimental e soltou um ligeiro suspiro.

— Mana Savínia — disse miss Clarissa — tome lá o meu frasco.

Miss Savínia reconfortou-se com os sais de sua irmã, depois continuou com uma voz mais fraca, enquanto que Traddles e eu a fitávamos com solicitude.

— Tivemos grandes dúvidas, a mana e eu, senhor Traddles, sobre a marcha que convinha seguir quanto à inclinação, ou pelo menos quanto à inclinação suposta de dois jovens como o seu amigo Mister Copperfield e a nossa sobrinha.

— A filha do mano Francis — fez notar miss Clarissa. — Se a mulher do mano Francis houvesse, quando viva, julgado conveniente (se bem que tivesse certamente o direito de proceder diferentemente) convidar a família a jantar em casa dela, conheceríamos hoje melhor a filha do mano Francis. Continue, mana Savínia.

Miss Savínia voltou a minha carta, para passar os olhos pelo endereço, depois percorreu com a luneta algumas notas bem alinhadas que ali escrevera.

— Parece-nos prudente, senhor Traddles — disse ela — julgar por nós próprias da profundeza de tais sentimentos. Por agora não sabemos nada e não podemos saber o que realmente é; tudo quanto julgamos, pois, poder fazer é autorizar Mister Copperfield a vir-nos ver.

— Nunca esquecerei a sua bondade, minha senhora — exclamei com o coração aliviado de um grande peso.

— Mas por agora — prosseguiu miss Savínia — desejamos, senhor Traddles, que estas visitas se nos dirijam. Não queremos sancionar nenhum compromisso positivo entre Mister Copperfield e a nossa sobrinha, antes de termos ocasião...

— Antes da mana Savínia ter ocasião — emendou miss Clarissa.

— Desejo-o bem — respondeu miss Savínia com um suspiro — antes de eu ter ocasião de fazer o meu juízo.

— Copperfield — disse Traddles voltando-se para mim — o senhor aprecia, estou certo, que não se poderia dizer nada de mais razoável nem de mais sensato.

— Não, por certo — exclamei —, e estou o mais sensibilizado possível.

— No estado actual das coisas — disse miss Savínia, que recorreu de novo às suas notas — e uma vez que está estabelecido que autorizamos as visitas de Mister Copperfield, pedimos-lhe para que nos dê a sua palavra de honra de que não haverá com a nossa sobrinha comunicação alguma, de qualquer espécie que seja, sem que sejamos prevenidas; e que não formará, com respeito à nossa sobrinha, projecto algum sem previamente no-lo submeter...

— Sem lho submeter, mana Savínia — interrompeu miss Clarissa.

— Desejo-o bem, Clarissa — respondeu miss Savínia num tom resignado — a mim pessoalmente... e sem que tenha obtido a nossa aprovação. Fazemos disso uma condição expressa e absoluta que não deverá ser infringida sob nenhum pretexto. Pedimos a Mister Copperfield que se fizesse acompanhar hoje por uma pessoa de confiança (e voltou-se para Traddles que fez uma mesura), a fim de que não pudesse haver nem dúvida nem mal entendido sobre este ponto. Mister Copperfield, se o senhor ou Mister Traddles têm o mínimo escrúpulo em nos fazerem esta promessa, peço-lhes que tomem tempo para reflectir.

Exclamei, no meu entusiasmo, que não precisava de reflectir um instante mais. Jurei solenemente e, no tom mais apaixonado, invoquei o testemunho de Traddles; declarei-me antecipadamente o mais atroz e o mais perverso dos homens, se algum dia faltasse por qualquer forma a esta promessa.

— Queiram esperar — disse miss Savínia erguendo a mão — antes de termos o prazer de os receber, meus senhores, tínhamos resolvido deixá-los sós um quarto de hora, para lhes dar o tempo de reflectirem sobre este assunto. Dêem-nos licença que nos retiremos.

Baldadamente repeti que não tinha precisão de reflectir; elas persistiram em retirar-se por um quarto de hora. Os dois passarinhos foram embora saltitando com dignidade e ficámos sós; eu, transportado a regiões deliciosas e Traddles ocupado em me cumular com as suas felicitações. Ao cabo de um quarto de hora, nem mais nem menos, reapareceram, sempre com a mesma dignidade! Quando saíram, o roçar dos seus vestidos tinha produzido um ligeiro sussurro como se fossem compostos de folhas secas; quando regressaram, fez-se ouvir ainda o mesmo frémito.

Prometi de novo observar fielmente a prescrição.

— Mana Clarissa — disse miss Savínia — o resto é consigo.

Miss Clarissa cessou, pela primeira vez, de ter os braços cruzados, pegou nas suas notas e passou-lhes uma vista de olhos.

— Felicitar-nos-emos — disse miss Clarissa — em convidarmos Mister Copperfield para jantar todos os domingos, se assim lhe convier. Jantamos às três horas.

Fiz uma mesura.

— Na semana corrente — continuou miss Clarissa — muito estimaremos que Mister Copperfield venha tomar chá connosco. Tomámos o chá às seis horas e meia.

Fiz outra mesura.

— Duas vezes por semana — observou miss Clarissa —; mais não.

Fiz nova mesura.

Miss Trotwood, de quem Mister Copperfield faz menção na sua carta — disse miss Clarissa — há-de talvez vir ver-nos. Quando as visitas são úteis, no interesse das duas partes, estimamos muito receber visitas e pagá-las. Mas quando vale mais, no interesse das duas partes, que se não façam visitas (como nos sucedeu com o mano Francis e a sua família), então é completamente diferente.

Eu assegurei que minha tia se daria por feliz e se desvaneceria de as conhecer e todavia devo dizer que não estava bem certo que elas devessem sempre entender-se perfeitamente. Fixadas todas as condições, exprimi calorosamente os meus agradecimentos e pegando na mão, primeiro de miss Clarissa e depois de miss Savínia, levei-as sucessivamente aos lábios.

Então miss Savínia levantou-se e, pedindo a Mister Traddles que nos esperasse um instante, pediu-me para a acompanhar. Obedeci a tremer; conduziu-me a uma antecâmara. Encontrei lá a minha bem amada Dora, com a cabeça encostada à parede e Jip encerrado no escalfador dos pratos, com a cabeça embrulhada num guardanapo.

Oh! Como ela estava bonita no seu vestuário de luto! Como chorou a princípio e como me custou a tirá-la do seu canto! E como nos demos ambos por felizes quando acabou por se decidir! Que alegria ao tirar Jip do escalfador, ao restitui-lo à luz do dia e de nos encontrarmos todos três reunidos!

— Minha querida Dora! Agora és minha para sempre!

— Oh! Deixe-me! — disse ela em tom suplicante —, peço-lhe!

— Não é agora minha para sempre, Dora?

— Sim, certamente — gritou Dora —, mas tenho medo!

— Medo, minha querida!

— Oh, sim! Eu não gosto dele — disse Dora. — Porque é que ele não vai embora?

— Ele quem, meu tesouro?

— O seu amigo — disse Dora. — Ele tem alguma coisa com isto? É preciso ser muito estúpido!

— Meu amor! (Nunca vi nada de mais sedutor do que as suas maneiras infantis). É o melhor dos rapazes!

— Mas para que temos precisão de um rapaz melhor? — disse ela amuada.

— Minha querida — prossegui eu — há-de conhecê-lo não tarda e há-de gostar dele. Minha tia também há-de cá vir e estou certo de que há-de igualmente gostar dela de todo o seu coração.

— Oh! Não, não a traga! — disse Dora beijando-me com um ar um pouco assustado e juntando as mãos. — Não! Eu bem sei que é uma velhota má. Não a traga cá, meu Dodyzinho. (Era uma corrupção de Davidzinho, que ela empregava por amizade).

As admoestações não serviriam de nada; pus-me a rir, a contemplá-la com amor, com felicidade: ela mostrou-me como Jip sabia bem pôr-se de pé, sentado nas patas e deve dizer-se em verdade que, de facto, punha-se bem de pé o tempo que dura um relâmpago e caía logo. Enfim, não sei quanto tempo eu poderia estar assim, sem pensar por forma alguma em Traddles, se miss Savínia não viesse buscar-me. Miss Savínia amava muito Dora (disse-me ela que Dora era exactamente o seu retrato quando ela era nova. Deus do céu! Como se desfigurou tanto!) e tratava-a como um brinquedo. Eu quis persuadir Dora a que fosse ver Traddles; mas a esta proposta, ela correu a fechar-se no seu quarto; fui, pois, sem ela, ao encontro de Traddles e saímos juntos.

— Nada podia sair de mais satisfatório — disse Traddles — e as duas velhotas são amabilíssimas. Não me causaria grande surpresa, se o Copperfield se casasse muito antes de mim.

— A sua Sofia toca algum instrumento, Traddles? — perguntei-lhe no orgulho do meu coração.

— Sabe tocar piano suficientemente bem para o ensinar às suas irmãzinhas — disse Traddles.

— E canta?

— Canta às vezes baladas para divertir as outras, quando não estão bem dispostas — disse Traddles —, mas não executa nada de artístico.

— Não canta, acompanhando-se à guitarra?

— Oh, céus! Não!

— E pinta?

— Absolutamente nada — disse Traddles.

Prometi a Traddles que lhe havia de proporcionar a ocasião de ouvir cantar Dora e que lhe havia de mostrar as suas pinturas de flores.

Traddles disse-me que muito estimaria e regressámos a minha casa de braço dado, o mais alegremente que se pode imaginar. Animei-o a falar-me de Sofia, o que ele fez com uma eterna confiança nela, que me emocionou. Eu comparava-a a Dora dentro do meu coração, com uma grande satisfação de amor próprio; mas, é o mesmo, reconhecia de muito boa vontade dentro de mim próprio que ela seria evidentemente uma excelente mulher para Traddles.

Naturalmente, minha tia foi imediatamente posta ao facto do feliz resultado da nossa conferência e ao corrente de todas as minudências. Sentiu-se feliz por me ver feliz e prometeu-me ir muito brevemente ver as tias de Dora. Mas, nessa noite, andou tanto tempo de cá para lá na sala, enquanto eu escrevia a Inês, que eu começava a crer que ela tencionava continuar assim até ao dia seguinte de manhã.

A minha carta a Inês era cheia de afecto e de reconhecimento; pormenorizava-lhe todos os bons efeitos dos conselhos que me dera. Na volta do correio recebi carta dela, carta cheia de confiança, de razão e de bom humor, e, a datar desse dia, mostrou sempre a mesma jovialidade.

Eu tinha mais que fazer do que nunca. Putney ficava longe de Highgate, aonde eu ia todos os dias e todavia eu desejava ir a Putney as mais vezes que pudesse. Como não havia meio de poder ir a casa de Dora à hora do chá, obtive, por capitulação, licença de miss Savínia para lá ir todos os sábados de tarde, sem que prejudicasse o domingo. Ficava, pois, com dois belos dias no fim de cada semana e os outros decorriam muito suavemente à espera daqueles.

Aliviou-me extremamente ver que minha tia e as tias de Dora se entenderam, no fim de contas, umas com as outras, muito melhor do que eu esperava. Minha tia fez a sua visita quatro ou cinco dias depois da minha conferência, e, dois ou três dias depois, as tias de Dora pagavam-lhe a visita, com todas as regras, com grande cerimónia. Essas visitas amiudaram-se, mas de uma maneira mais amigável, de três em três semanas. Eu bem sei que minha tia perturbava todas as ideias das tias de Dora, pelo seu desdém pelos trens, de que não se servia, preferindo mais ir a pé até Putney e pelo seu pouco respeito pelos preconceitos da civilização, chegando a horas inconvenientes, logo a seguir ao almoço, ou um quarto de hora antes do chá, ou então pondo o chapéu da maneira mais extravagante, sob o pretexto de que isso lhe era mais cómodo. Mas não tardou que as tias de Dora se habituassem a considerar minha tia como uma pessoa excêntrica e um tanto máscula, mas de uma grande inteligência, e, conquanto minha tia exprimisse por vezes, acerca de certas conveniências sociais, opiniões heréticas que atordoavam as tias de Dora, todavia ela amava-me muito para sacrificar à harmonia geral algumas das suas singularidades.

O único membro da nossa pequena roda que recusava positivamente adaptar-se às circunstâncias, era Jip. Nunca via minha tia que não fosse logo encafuar-se debaixo de uma cadeira, arreganhando os dentes e rosnando constantemente; de tempos a tempos fazia ouvir um uivo doloroso, como se ela lhe afligisse os nervos. Tentou-se tudo: afagaram-no, ralharam-lhe, bateram-lhe, levaram-no para Buckingham Street (aonde ele se atirou imediatamente aos dois gatos, com grande terror dos espectadores); mas nunca puderam fazer com que suportasse a companhia de minha tia. As vezes fazia supor que acabara por ser razoável e vencera a sua antipatia; fingia-se mesmo amável durante um momento, mas daí a pouco arreganhava o focinho e uivava tão alto, que era preciso encafuá-lo logo no escalfador dos pratos, para que não pudesse ver nada. Enfim, Dora tomara a resolução de o embrulhar imediatamente num guardanapo e metê-lo no escalfador, mal se anunciava a chegada de minha tia.

Havia uma coisa que muito me inquietava, mesmo no meio desta doce vida: era que Dora parecia passar, aos olhos de todo o mundo, por um brinquedo encantador. Minha tia, com quem ela se fora familiarizando pouco a pouco, chamava-lhe a sua florzinha; e miss Savínia passava o tempo a cuidar dela, a fazer-lhe os caracóis, a preparar-lhe lindos vestuários: tratavam-na como uma criança de mimo. O que miss Savínia fazia, sua irmã também naturalmente o fazia pelo seu lado. Isso pareceu-me singular; mas toda a gente tinha, até certo ponto, o ar de tratar Dora como Dora tratava Jip.

Decidi-me a falar-lhe nisso e um dia que estávamos sós juntos (porque miss Savínia permitira, ao fim de pouco tempo, que saíssemos sós), eu disse-lhe que desejava muito que ela pudesse persuadir-se que a tratassem de outra maneira.

— Porque, olhe, minha querida Dora, a miss não é nenhuma criança!

— Ora! — disse Dora — Então não me está agora a sair resmungão!?

— Resmungão, meu amor?

— Eu acho que todos são bons para mim — disse Dora — e sinto-me muito feliz.

— Em boa hora seja; mas, minha querida menina, não será menos feliz quando a tratarem como uma pessoa razoável.

Dora lançou-me um olhar de censura, que olharzinho encantador! E pôs-se a soluçar, dizendo que, «já que não a amava, não sabia porque desejara tanto ser seu noivo e já que não podia suportá-la, melhor faria em me ir embora».

Que podia eu fazer, senão beijar os seus lindos olhos cheios de lágrimas e repetir-lhe que a adorava?

— E eu que o amo tanto! — disse Dora. — Não devia ser tão cruel para mim, David!

— Cruel? Meu amor! Como se eu pudesse ser cruel para si!

— Então não me ralhe — disse Dora com esse pequeno amuo que fazia da sua boca um botão de rosa — e eu serei muito cuidadosa.

Fiquei encantado um instante depois de a ouvir pedir-me de seu moto próprio, se eu lhe queria dar o livro do cozinheiro, de que lhe tinha falado uma vez e ensinar-lhe a escriturar contas, como eu lhe prometera. Na visita seguinte, levei-lhe o livro muito bem encadernado, para que tivesse a aparência mais atraente e animadora; e sempre passeando pelos campos, mostrei-lhe um velho livro de contas de minha tia e dei-lhe uma carteirinha, uma linda lapiseira e uma caixa de plumbagina, para que ela pudesse exercitar-se no governo de casa.

Mas o livro do cozinheiro fez-lhe dores de cabeça e os algarismos fizeram-na chorar. Eles não queriam deixar-se somar, dizia ela; assim, pôs-se a safá-los todos e a desenhar no lugar deles, na carteira, ramalhetes de flores, ou então o retrato de Jip e o meu.

Tentei em seguida de dar-lhe verbalmente alguns conselhos acerca das coisas de casa, nos nossos passeios do sábado. Algumas vezes, por exemplo, quando passávamos diante de um açougue, dizia-lhe eu:

— Ora vamos a ver, meu amor: se já fôssemos casados e que tivesse de comprar uma pá de carneiro para o nosso jantar, saberia comprá-la?

O lindo rosto de Dora entristecia-se e adiantava os lábios, como se quisesse fechar os meus com um beijo.

— Saberia comprar uma, meu amor? — repetia eu então com um ar inflexível.

Dora reflectia um momento e depois respondia-me com ar de triunfo:

— O carniceiro havia de ma saber vender; não é o bastante? Oh, David, como o senhor é peguenho!

De outra vez, perguntei a Dora, olhando para o livro do cozinheiro, o que ela faria se estivéssemos casados e eu lhe pedisse para me arranjar um bom estufado à irlandesa. Ela respondeu-me que diria assim à cozinheira: «Faça-me um estufado». Depois bateu palmas, rindo tão alegremente, que me pareceu mais encantadora do que nunca.

Em consequência disso, o livro do cozinheiro não serviu para outra coisa senão para pôr a um canto, a fim de colocar sobre ele, em pé, o pequeno Jip. Num dia em que Dora conseguiu assim equilibrá-lo em cima do livro, com a lapiseira entre os dentes, ficou tão contente, que não me arrependi de o ter comprado.

Voltámos à guitarra, aos ramos de flores, às canções acerca do prazer de dançar sempre, trá-lá-lá, e toda a semana ia decorrendo em divertimentos e pândegas. De tempos a tempos eu desejaria poder insinuar a miss Savínia que ela tratava a minha querida Dora um pouco como um brinquedo e às vezes acabava por confessar de mim para mim que eu também cedia à sedução geral e tratava-a igualmente como um brinquedo, tanto como os outros, algumas vezes, mas não muitas.

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