David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep

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By ClassicosLP

Começando minha tia, suponho, a inquietar-se seriamente com o meu prolongado abatimento, lembrou-se de me mandar a Dover, com o pretexto de ver se tudo passava bem na sua casa da praia que ela alugara e com o fim de renovar o arrendamento com o actual inquilino. Joaninha tinha entrado para o serviço de Mistress Strong, aonde eu a via todos os dias. Ficara ela indecisa ao sair de Dover, se devia confirmar ou renegar, de uma vez para sempre, essa renúncia desdenhosa para com o sexo masculino, que fazia o fundo da sua educação. Tratava-se para ela de casar com um piloto. Mas, palavra! ela não quis arriscar-se, menos pela honra do princípio em si, suponho, do que porque o piloto não era do seu agrado.

Se bem que me custasse a deixar miss Mills, entrei muito de boa vontade nas intenções de minha tia; isso permitia-me passar algumas horas tranquilas junto de Inês. Consultei o bom doutor para saber se me podia dar uma licença de três dias; aconselhou-me a que gozasse de mais, mas eu trabalhava com muito gosto no dicionário para desejar uma licença maior. Enfim decidi-me a partir.

Quanto ao meu lugar dos Doctor's-Commons, não tinha grande razão de me inquietar com o que podia ali ter que fazer. Para falar verdade, não estávamos em cheiro de santidade entre os procuradores de primeira categoria e tínhamos mesmo caído numa posição equívoca. Os negócios não tinham sido brilhantes no tempo de Mister Jorkins, antes de Mister Spenlow e se bem que se tivessem animado mais depois que este sócio renovou, com uma infusão de sangue novo, a velha rotina do escritório e que lhe deu algum brilho pelo modo de existência que levava, todavia não tinha bases bastante sólidas para que a morte repentina do seu principal director não viesse abalá-lo. Os negócios diminuíram sensivelmente. Mister Jorkins, a despeito da reputação que tinha entre nós, era um homem fraco e incapaz e a sua reputação fora do escritório não era de molde a levantar-lhe o crédito. O meu lugar era ao pé dele, depois da morte de Mister Spenlow e de todas as vezes que eu o via tomar a sua pitada de rapé e parar com o trabalho, chorava mais que nunca às mil libras esterlinas de minha tia.

Não era esse ainda o maior mal. Havia nos Doctor's-Commons uma turba de ociosos e de corretores sem encarte, que, sem serem procuradores, açambarcavam, todavia, uma parte dos negócios, para os mandarem executar em seguida por verdadeiros procuradores dispostos a prestarem os seus nomes em troca de um quinhão no regabofe. Como precisávamos de trabalho por todo o preço, associamo-nos também a essa nobre corporação de zangãos e procuramos atrair os mandriões e os sem encarte. O que sobretudo pedíamos, porque isso nos rendia mais que o resto, eram autorizações de casamento ou autos probatórios de validação de testamentos, mas todos os queriam para eles e a conveniência era tamanha, que se punham de plantão, à embocadura de todas as ruas e caminhos que iam dar aos Commons, verdadeiros piratas e corsários encarregados de levarem até aos seus respectivos cartórios toda a gente de preto ou quaisquer pessoas novas que aparecessem com ar desassossegado. Estas instruções eram tão fielmente executadas, que me sucedeu por duas vezes, antes de ser bem conhecido, ser eu próprio agarrado para o escritório do nosso mais temível rival. Sendo os interesses contrários destes recrutadores de um novo género, de natureza a pôr em jogo a sua sensibilidade, isso acabava muitas vezes por combates corpo a corpo e o nosso principal agente, que tinha começado por negócio de vinhos a retalho, antes de passar ao cambalacho judiciário, deu mesmo ao Tribunal o escandaloso espectáculo, durante alguns dias, de andar de olhos pisados e inchados por efeito de pancadaria. Estes virtuosos personagens não tinham o menor escrúpulo, quando ofereciam a mão, para se apear, a alguma velha dama, em lhe dizerem que tinha morrido o procurador por quem ela perguntava, representando o seu patrão como o legítimo sucessor do defunto e de lhe trazerem em triunfo a velha dama, muitas vezes ainda bastante emocionada com a triste notícia que acabara de receber. Foi assim que a mim próprio me trouxeram bastantes prisioneiros. Quanto às autorizações de casamento, a concorrência era tão formidável, que um pobre diabo tímido, que viesse com esse fim caminhando do nosso lado, nada de melhor tinha a fazer do que abandonar-se ao primeiro agente que acabava de o apanhar de improviso, se não queria tornar-se motivo de guerra e presa do vencedor. Um dos nossos caixeiros, empregado nesta especialidade, nunca largava o chapéu quando se sentava, a fim de estar sempre pronto a lançar-se sobre as vítimas que no horizonte lobrigava. Este sistema de perseguição está ainda em vigor, segundo me parece. A última vez que estive nos Commons, um homem muito cortês, de avental branco, saltou de repente em cima de mim, murmurando aos meus ouvidos as palavras sacramentais «Uma autorização de casamento?», e foi com grande custo que eu o impedi de me levar à força até um escritório de procurador.

Mas, depois desta digressão, passemos a Dover. Encontrei tudo num estado muito satisfatório e pude lisonjear as paixões de minha tia contando-lhe que o seu inquilino herdara as suas antipatias e fazia uma guerra encarniçada aos burros. Passei uma noite em Dover para terminar alguns pequenos negócios e depois fui no dia seguinte, de manhã cedo, a Canterbury. Estávamos no Inverno; o tempo fresco e o vento picante reanimaram um pouco os meus sentidos.

Vagueei lentamente no meio das ruas antigas de Canterbury com um prazer tranquilo que me aliviou o coração. Tornava a ver as tabuletas, os nomes, as caras que dantes tinha conhecido. Parecia-me que havia tanto tempo que eu tinha estado no colégio dessa cidade, que não poderia compreender que tivesse sofrido tão poucas mudanças, se eu não pensasse que eu próprio tinha mudado muito pouco. O que é estranho é que a influência doce e pacífica que em mim exercia o pensamento de Inês, parecia espalhar-se sobre o próprio lugar que ela habitava. Encontrava em todas as coisas um ar de serenidade, uma aparência tranquila e pensativa nas torres da veneranda catedral como nos velhos corvos cujos gritos lúgubres pareciam dar a esses edifícios antigos qualquer coisa de mais solitário do que não o poderia fazer um silêncio absoluto; nas portas em ruínas, outrora ornamentadas de estátuas, hoje derruídas e reduzidas a pó com os peregrinos respeitosos que lhes prestaram homenagem, como nos nichos silenciosos em que a erva centenária rastejava até ao telhado pelas paredes que pendem sobre as velhas casas, como na paisagem campestre; no pomar como no jardim; tudo parecia trazer em si, como Inês, o espírito de tranquilidade inocente, bálsamo soberano de uma alma agitada.

Chegado à porta de Mister Wickfield, encontrei Mister Micawber, que fazia correr a pena com a maior actividade, na saleta do rés-do-chão, aonde antigamente estava Uriah Heep. Estava todo vestido de preto e a sua pessoa maciça enchia, por completo, a pequena carteira em que trabalhava.

Mister Micawber pareceu a um tempo encantado e um pouco embaraçado por me ver. Queria levar-me imediatamente junto de Uriah, mas eu recusei.

— Conheço esta casa de velha data — disse-lhe eu — sei bem o caminho. E então, Mister Micawber, que me diz ao direito?

— Meu caro Copperfield — respondeu-me ele — para um homem dotado de uma imaginação transcendente, os estudos de direito têm um lado mau, afogam-no em minudências. Mesmo na nossa correspondência de processos — disse Mister Micawber deitando os olhos sobre as cartas que escrevia — o espírito não está livre de tomar um voo de expressão sublime que possa satisfazê-lo. Apesar disso, é um grande trabalho! Um grande trabalho!

Disse-me em seguida que morava na velha casa de Uriah Heep e que Mistress Micawber ficaria encantada de me receber mais uma vez sob o seu tecto.

— É uma morada humilde — disse Mister Micawber — para me servir de uma expressão favorita do meu amigo Heep; mas pode ser que nos sirva de degrau para nos elevar a disposições domiciliárias mais ambiciosas.

Perguntei-lhe se estava satisfeito da maneira como o tratava o seu amigo Heep. Começou por assegurar-se se a porta estava bem fechada, depois respondeu-me em voz baixa:

— Meu caro Copperfield, quando se está sob o peso de embaraços pecuniários, está-se, perante a maior parte das pessoas, numa posição muito fastidiosa, e o que não melhora essa situação é quando esses embaraços pecuniários obrigam a pedir os emolumentos antes do prazo legal. Tudo quanto posso dizer-lhe, é que o meu amigo Heep respondeu a apelos a que não quero fazer a mais ampla alusão, de um modo que faz igualmente honra quer à sua cabeça, quer ao seu coração.

— Não o supunha tão pródigo do seu dinheiro! — notei eu.

— Perdoe-me! — disse Mister Micawber com ar constrangido —, falo por experiência.

— Estou encantado de que a experiência tão bons resultados lhe tenha dado — respondi eu.

— O senhor é muito bondoso, meu caro Copperfield — disse Mister Micawber e pôs-se a trautear uma ária.

— Vê muitas vezes Mister Wickfield? — perguntei para mudar de assunto.

— Poucas vezes — disse Mister Micawber com um ar desprezador. — Mister Wickfield está por certo cheio das melhores intenções, mas... mas... Em resumo, não é bom para nada.

— Tenho receio de que o seu sócio faça tudo quanto é preciso para isso.

— Meu caro Copperfield! — replicou Mister Micawber depois de várias evoluções que executara no seu escabelo com ar enleado. — Permita-me que lhe faça uma observação. Acho-me aqui numa situação de intimidade; ocupo um cargo de confiança; as minhas funções não poderiam permitir-me discutir certos assuntos, nem mesmo cora Mistress Micawber (ela que por tanto tempo tem sido a companheira das vicissitudes da minha vida e que é uma mulher de uma lucidez de inteligência notável). Tomarei, pois, a liberdade de lhe observar que, nas nossas relações amigáveis que nunca serão perturbadas, espero, desejo estabelecer dois quinhões. De um lado — disse Mister Micawber traçando uma linha sobre a sua carteira — colocaremos tudo o que pode atingir a inteligência humana, com uma única e pequena excepção; do outro, encontrar-se-á essa única excepção, isto é, os negócios de Mister's Wickfield & Heep e tudo quanto lhes diga respeito. Confio que não ofendo o companheiro da minha mocidade, fazendo ao seu juízo esclarecido e discreto semelhante proposta.

Eu via bem que Mister Micawber tinha mudado de maneiras; parecia que os seus novos deveres lhe impusessem um acanhamento penoso, mas todavia eu não tinha o direito de me sentir ofendido. Pareceu aliviado com isso e estendeu-me a mão.

— Estou encantado com miss Wickfield, Copperfield, juro-lhe — disse Mister Micawber. — É uma encantadora menina, cheia de encantos, de graça e de virtude. Pela minha honra — disse Mister Micawber fazendo o cumprimento mais galante como para enviar um beijo — presto homenagem a miss Wickfield. Hum!

— Estou encantado — disse-lhe.

— Se não me tivesse certificado, meu caro Copperfield, no dia em que tivemos o prazer de passar a manhã consigo que o D era a sua letra predilecta, eu estava convencido de que era o A que o senhor preferia.

Momentos há, todo o mundo passa por isso, em que o que dizemos, o que fazemos, cremos tê-lo já dito, tê-lo já feito numa época afastada, há muito, muitíssimo tempo; em que nos recordámos que fomos, há séculos, rodeados pelas mesmas pessoas, pelos mesmos objectos, pelos mesmos incidentes; em que perfeitamente sabemos com antecipação o que se nos vai dizer depois, como se nos recordássemos disso de repente! Nunca experimentei tão vivamente esse sentimento misterioso, como antes de ouvir estas palavras da boca de Mister Micawber.

Despedi-me dele pouco depois, rogando-lhe que transmitisse todas as minhas saudades à sua família. Ele retomou o seu lugar e a sua pena, esfregou a testa como para recomeçar o seu trabalho; eu bem notava que havia nas suas novas funções qualquer coisa que nos impediria de ser doravante tão íntimos como dantes.

Não havia vivalma na velha sala de visitas, mas Mistress Heep lá tinha deixado os vestígios da sua passagem. Abri a porta do quarto de Inês: ela estava sentada junto ao fogão e escrevia na sua secretária de madeira de talha.

Ergueu a cabeça para ver quem acabava de entrar. Que prazer o meu quando observei o ar alegre que tomou à minha vista esse rosto reflectido e a bondade e afecto com que era recebido!

— Ah, Inês! — disse-lhe eu quando nos sentávamos ao lado um do outro —, tem-me feito bastante falta há certo tempo!

— Deveras? — respondeu ela. — Não há todavia muito tempo que estivemos juntos.

Eu abanei a cabeça.

— Não sei como isto é, Inês; mas falta-me evidentemente qualquer faculdade que desejaria possuir. Habituou-me por tal forma a deixar-se pensar por mim nos belos tempos passados; eu vinha tão naturalmente inspirar-me nos seus conselhos e procurar a sua ajuda, que receio ter perdido deveras o uso de uma faculdade de que eu não tinha necessidade junto de si.

— Mas então que vem isso a ser? — disse alegremente Inês.

— Não sei que nome lhe darei — respondi — creio que sou sério e perseverante!

— Disso estou eu certa — disse Inês.

— É paciente, Inês? — prossegui com um pouco de hesitação.

— Sim — disse ela rindo — bastante paciente!

— E todavia — disse — sinto-me algumas vezes tão desgraçado e tão agitado, sinto-me tão irresoluto e tão incapaz de tomar uma resolução, que efectivamente me falta, como, pois, dizer?... que me falta um ponto de apoio!

— Concordo — disse Inês.

— Olhe! — repliquei. — Verá pelos seus próprios olhos. Venha a Londres, deixar-me-ei guiar por si; no mesmo instante encontrarei um fim e uma direcção. Esse fim escapa-me, chego aqui e dentro de pouco sou outro homem. Não mudaram as circunstâncias que me afligiam, desde que entrei neste aposento; mas, nesse curto espaço de tempo, tenho sofrido uma influência que me transforma, que me torna melhor! Isto que vem a ser, Inês, qual é o seu segredo?

Ela tinha a cabeça inclinada e os olhos fixos no fogo.

— É sempre a minha velha história — disse-lhe eu. — Não se ria, se eu lhe disser que é agora para as grandes coisas, como antigamente para as pequenas. Os meus desgostos de outrora eram criancices, hoje são sérios; mas todas as vezes que eu deixei a minha irmã adoptiva...

Inês ergueu a cabeça (que rosto celestial!) e estendeu-me a mão que eu beijei.

— Todas as vezes, Inês, que não tem estado junto de mim para me aconselhar e me dar, no princípio, a sua aprovação, eu perco-me, embrenho-me num horror de dificuldades. Quando vim visitá-la, por fim (como faço sempre), encontrei de passo a paz e a felicidade. Ainda hoje, eis-me regressado a casa, pobre viageiro fatigado e não se lhe afigura a suavidade do descanso que eu experimento junto de si.

Eu sentia tão profundamente o que dizia e estava tão verdadeiramente emocionado, que a voz faltou-me; escondi a cabeça entre as mãos e pus-me a chorar. Aqui só escrevo a verdade exacta! Eu não pensava nem nas contradições nem nas consequências que se encontravam no meu coração, como no da maior parte dos homens; eu não dizia de mim para mim que poderia fazer muito diversamente e melhor do que até então tinha feito, nem que fizera muito mal em fechar voluntariamente o ouvido ao grito da minha consciência; não, tudo o que eu sabia, é que andava de boa fé, quando lhe dizia com tanto fervor que junto dela encontrava repouso e paz.

Ela acalmou num instante este lance de sensibilidade, com a expressão da sua doce e fraterna afeição, com os seus olhos radiantes, com a sua voz cheia de ternura; e, com essa tranquilidade encantadora que me tinha feito olhar a sua habitação como um lugar abençoado, levantou-me o ânimo e levou-me naturalmente a contar-lhe tudo quanto se tinha passado desde a nossa última entrevista.

— E não tenho nada mais a dizer-lhe, Inês — acrescentei, quando terminou a minha confidência — a não ser que conto agora inteiramente consigo.

— Mas não é comigo que é preciso contar, Trotwood — prosseguiu Inês com um doce sorriso —, é com outra.

— Com Dora? — perguntei.

— Com certeza.

— Mas, Inês, não lhe disse eu — respondi com algum embaraço — que é difícil, não direi contar com Dora, porque ela é a rectidão e a firmeza em pessoa, mas enfim que é difícil não sei como exprimir-me, Inês... Ela é tímida, perturba-se e assusta-se facilmente. Algum tempo antes da morte de seu pai, julguei dever falar-lhe... Mas se tiver paciência para me escutar, contar-lhe-ei tudo...

Em consequência disso, contei a Inês o que tinha dito a Dora acerca da minha pobreza, do manual do cozinheiro, do livro das contas, etc., etc., etc.

— Oh! Trotwood! — prosseguiu ela com um sorriso. — O senhor há-de ser sempre o mesmo. Razão tinha de querer procurar livrar-se de apuros neste mundo; mas escusava de proceder assim bruscamente com uma menina tímida, amorosa e sem experiência! Pobre Dora!

Nunca voz humana pôde falar com mais bondade e doçura que a sua, dando-me esta resposta. Parecia-me que a via abraçar amorosamente Dora e beijá-la ternamente; parecia-me que me censurava tacitamente, com a sua generosa protecção, de me ter apressado demasiadamente a perturbar esse coraçãozinho; parecia-me que estava vendo Dora, com toda a sua graça ingénua, acariciar Inês, agradecer-lhe e apelar docemente para a sua justiça para a tornar uma auxiliar contra mim, sem cessar de me amar com toda a força da sua inocência infantil.

Como eu estava reconhecido a Inês, como eu a admirava! Via-as a ambas, numa encantadora perspectiva, intimamente unidas, mais admiráveis ainda, por causa dessa união, uma e outra.

— Que devo fazer agora, Inês? — perguntei-lhe depois de ter contemplado o fogo. — Que me aconselha que faça!

— Creio — disse Inês — que o caminho honroso a seguir é escrever a essas duas senhoras. Não lhe parece que seria indigno de si andar com segredinhos?

— Certamente, já que assim lhe parece? — disse-lhe.

— Eu sou mau juiz nestas matérias — respondeu Inês com uma modesta hesitação —, mas parece-me... numa palavra, acho que não seria mostrar-se digno de si próprio recorrer a meios clandestinos.

— A Inês forma muito boa opinião de mim, creio bem!

— Não seria digno da sua franqueza habitual — replicou ela. — Eu escreveria a essas duas senhoras; contar-lhes-ia tão simplesmente e tão francamente quanto possível, tudo o que se passou e pedir-lhes-ia licença para ir algumas vezes a casa delas. Como o senhor é novo e ainda não tem posição, creio que faria bem dizer que se submete de boa vontade a todas as condições que quiserem impor-lhe. Rogar-lhes-ia com instância que não repelissem o meu pedido, sem darem parte a Dora e discutirem com ela, se o julgassem conveniente. Eu não seria nem muito ardente — disse Inês suavemente — nem muito exigente; teria fé na minha fidelidade, na minha perseverança e em Dora!

— Mas se Dora se assustar quando lhe falarem nisso, se ela desatar ainda em cima a chorar, sem querer dizer nada a meu respeito?

— Mas isso pode dar-se? — perguntou Inês com o mais afectuoso interesse.

— Palavra que eu não juraria! Ela toma medo e assusta-se como um passarinho. E se as senhoras Spenlow não acharem conveniente que eu me dirija a elas? (isto de senhoras de idade são às vezes tão esquisitas)...

— Não creio, Trotwood — disse Inês erguendo suavemente os olhos para mim — que seja preciso preocupar-se a gente muito com isso. Mais vale, segundo me parece, perguntar simplesmente se é bom fazê-lo, e, se é bom, não hesitar.

Não hesitei por mais tempo. Sentia o coração mais leve, conquanto muito compenetrado da imensa importância da minha tarefa e prometi comigo mesmo empregar toda a minha tarde em escrever a minha carta. Inês abandonou-me a sua secretária, para fazer o meu borrão. Mas eu comecei primeiro por descer, a fim de ver Mister Wickfield e Uriah Heep.

Encontrei o Uriah instalado num novo gabinete, que exalava um cheiro a cal ainda fresca e que fora construído no jardim. Nunca figurou catadura mais abjecta no meio de uma massa igual de livros e de papelada. Recebeu-me com o servilismo do costume, fingindo que não tinha sabido da minha chegada, por Mister Micawber, coisa que eu não acreditei. Levou-me ao gabinete de Mister Wickfield, ou antes à sombra do seu antigo gabinete, porque o haviam despojado de uma porção de comodidades em proveito do novo sócio. Mister Wickfield e eu trocámos as nossas saudações mútuas, enquanto que Uriah se conservava de pé diante do fogo, esfregando o queixo com a sua mão ossuda.

— O Trotwood vai ficar cá em casa todo o tempo que conta passar em Canterbury, não é assim? — disse Mister Wickfield, não sem deitar a Uriah um olhar que parecia pedir a sua aprovação.

— Tem lugar para mim? — perguntei.

— Estou pronto, mestre Copperfield, eu deveria dizer senhor, mas é uma palavra de camaradagem que me vem naturalmente à boca — disse Uriah —; estou pronto a ceder-lhe o seu antigo quarto, se isso lhe pode ser agradável.

— Não, não — disse Mister Wickfield — para que se há-de incomodar? Há outro quarto; há outro quarto.

— Oh! Mas — prosseguiu Uriah, fazendo uma careta bastante feia — eu ficaria contentíssimo!

Para terminar, eu declarei que ou aceitaria o outro quarto ou iria hospedar-me noutra parte; decidiu-se pois pelo outro quarto; em seguida despedi-me dos dois sócios e subi.

Esperava não encontrar lá em cima outra companhia senão Inês, mas Mistress Heep tinha pedido licença para ir instalar-se junto do fogão, ela e a sua meia, sob o pretexto de que o quarto de Inês estava melhor exposto. Na sala de visitas, ou na sala de jantar, ela sofria cruelmente dos seus reumatismos. Tê-la-ia exposto bem de boa vontade e sem o menor remorso, a toda a fúria do vento no campanário da catedral, mas era preciso fazer das tripas coração e dei-lhe os bons dias num tom amigável.

— Agradeço-lhe muito humildemente, senhor — disse Mistress Heep, quando eu lhe pedi notícias da sua saúde —; vou indo, vou indo. Não há que gabar. Se eu pudesse ver o meu Uriah bem casado, não pediria mais nada, asseguro-lhe! Como é que achou o meu Uriahzinho, senhor?

Eu tinha-o achado tão horrendo como de ordinário; respondi que não me pareceu mudado.

—Ah! Não o acha mudado? — disse Mistress Heep. — Peço-lhe humildemente licença de não ser da sua opinião. Não o acha magro?

— Acho-o regular — respondi.

— Deveras? — disse Mistress Heep. — É que o senhor não o vê com os olhos de uma mãe.

O olhar de uma mãe pareceu-me de um mau-olhado para o resto da espécie humana, quando ela o dirigiu sobre mim, por mais terno que ele pudesse ser e creio que ela e o filho pertenciam-se exclusivamente um ao outro. O olhar de Mistress Heep passou de mim para Inês.

— E a menina, miss Wickfield, não acha que ele está muito mudado? — perguntou Mistress Heep.

— Não — disse Inês continuando sempre tranquilamente a trabalhar. — A senhora inquieta-se de mais; ele passa muito bem.

Mistress Heep aspirou pelo nariz com toda a força e pôs-se a fazer meia.

Não nos deixou um instante nem a nós, nem à sua meia. Ia-se para o meio-dia e tínhamos muitas horas diante de nós antes da do jantar, mas ela não se mexia, as suas agulhas agitavam-se com a monotonia de uma ampulheta que se vai esvaziando. Estava sentada a um canto do fogão; eu estava abancado à secretária em frente do lume; Inês estava do outro lado, não longe de mim. Todas as vezes que eu erguia os olhos, enquanto compunha lentamente a minha epístola, via diante de mim o pensativo rosto de Inês, que me inspirava coragem, com a sua doce e angélica expressão; mas sentia ao mesmo tempo o mau olhado que a velha me deitava, para se dirigir da meia sobre Inês e voltar outra vez a mim, para recair enfim na meia que estava fazendo. Eu não sou muito versado na arte de fazer meia, para poder dizer o que ela fabricava, mas, para ali sentada, ao pé do lume, fazendo mover as compridas agulhas, Mistress Heep assemelhava-se a uma fada má, momentaneamente retida nos seus maus desígnios pelo anjo sentado em frente dela, mas prestes a aproveitar-se de um bom momento para enlaçar a sua presa, nos seus odiosos laços.

Durante o jantar, continuou a vigiar-nos com o mesmo olhar. Depois do jantar, seu filho substituiu-a e quando ficámos sós à sobremesa, Mister Wickfield, ele e eu, ele pôs-se a observar-me de soslaio, entregando-se todo às mais odiosas contorções. Na sala de visitas tornámos a encontrar a mãe, fiel à sua meia e à sua vigilância. Enquanto Inês cantou e fez música, a mãe instalou-se à ilharga do piano. Uma vez pediu a Inês para cantar uma balada de que o seu Uriah gostava perdidamente (durante esse tempo, o sobredito Uriah bocejava na poltrona); depois ela fitava-o e contava a Inês que ele estava entusiasmado. Ela quase que não abria a boca que não fosse para pronunciar o nome do filho. Tornou-se evidente para mim que eram instruções que lhe tinham sido dadas.

Durou isso até à hora de nos deitarmos. Eu sentia-me tão indisposto à força de ter visto mãe e filho escurecerem essa vivenda com a sua atroz presença, como dois grandes morcegos pairando sobre aquela casa, que preferiria ficar a pé toda a noite, com a meia e o resto, do que ir-me deitar. Mal pude cerrar os olhos. No dia seguinte, nova repetição da meia e da vigilância, que durou todo o dia.

Não pude arranjar dez minutos para falar a Inês, mal tive ocasião de lhe mostrar a minha carta. Propus-lhe que saísse comigo, mas Mistress Heep repetiu tantas vezes que estava incomodada, que Inês teve a caridade de se deixar ficar para lhe fazer companhia. Perto da noite, saí só, para reflectir no que devia fazer, embaraçado por saber se me era permitido calar por mais tempo a Inês o que Uriah Heep me tinha dito em Londres; porque isso começava a inquietar-me extremamente.

Ainda eu não tinha saído da cidade, do lado da estrada de Ramsgate por onde era magnífico passear-se, quando ouvi chamar por mim, na escuridão, alguém que me vinha na peugada. Era impossível equivocar-se a gente com esse casacão no fio, com esse andar desengonçado; parei para esperar por Uriah Heep.

— Que há? — perguntei.

— Como o senhor caminha depressa! — disse ele. — Eu tenho as pernas bastante compridas, mas o senhor tem-nas lindamente exercitadas!

— Aonde é que vai?

— Vou consigo, mestre Copperfield, se consentir que o acompanhe um velho camarada.

E dizendo isto, com um movimento irregular que podia ser tomado por uma zumbaia ou por uma mangação, pôs-se a caminhar à minha ilharga.

— Uriah! — disse-lhe eu tão delicadamente quanto pude, após um momento de silêncio.

— Mestre Copperfield! — respondeu Uriah.

— Para lhe falar franco (não se ofenda), se saí só foi porque já estava um pouco maçado de ter estado acompanhado de mais.

Olhou-me de revés e disse-me com uma horrível careta:

— É de minha mãe que quer falar?

— Nem mais.

— Ah! Com a fortuna! Como sabe, somos muito humildes — prosseguiu ele — e conhecendo, como nós conhecemos, a nossa humilde condição, somos obrigados a vigiar que aqueles que não são humildes como nós não nos ponham o pé em cima. Em amor, meu caro senhor, todos os estratagemas são de boa guerra.

E esfregando docemente o queixo com as duas manápulas fez ouvir um surdo grunhido. Eu nunca tinha visto criatura humana que se parecesse tanto com um bugio mandril.

— É que o senhor, sabe — disse ele, continuando sempre a afagar assim a cara e abanando a cabeça —, é um perigoso rival, mestre Copperfield, e sempre o tem sido, convenha!

— O quê! É por minha causa que o senhor exerce essa vigilância em volta de miss Wickfield e que lhe tira toda a liberdade na própria casa que é dela? — disse eu.

— Oh! Mestre Copperfield! Que palavras tão duras — replicou ele.

— Pode tomar as minhas palavras no sentido que lhe parecer; mas sabe tão bem como eu o que eu quero dizer-lhe, Uriah.

— Oh! Não! É preciso que mo explique — disse ele —; não o compreendo.

— Supõe — disse-lhe eu, esforçando-me, por amor de Inês, por não me exaltar —, supõe que miss Wickfield seja para mim outra coisa mais do que uma irmã ternamente amada?

— Palavra de honra, Copperfield, não sou obrigado a responder a essa pergunta. Talvez que sim, talvez que não.

Eu nunca vi nada de comparável à ignóbil expressão dessa cara, desses olhos pelados, sem sombra de uma pestana.

— Então venha! — disse-lhe eu. — Por amor de miss Wickfield...

— Minha Inês! — exclamou ele com uma contorção angulosa mais que repugnante. — Seja suficientemente bom para lhe chamar Inês, mestre Copperfield!

— Por amor de Inês Wickfield... que Deus abençoe.

— Agradeço-lhe esse voto, mestre Copperfield!

— Eu vou dizer-lhe o que, em outra qualquer circunstância, eu tanto desejaria dizer a... Jacques Retch.

— A quem, senhor? — disse Uriah estendendo o pescoço e abrigando a orelha no covo da mão para melhor ouvir.

— Ao carrasco — prossegui eu —; isto é, à última pessoa em que se devesse pensar... — E todavia, é preciso ser franco, era a cara de Uriah que me tinha sugerido naturalmente esta alusão. — Eu sou noivo de outra pessoa. Espero que ficará satisfeito.

— Palavra de honra? — disse Uriah.

Eu ia a repetir a minha declaração com uma certa indignação quando ele me tomou a mão e apertou-a com força.

— Oh! Mestre Copperfield! — disse ele —, se apenas se dignasse testemunhar-me essa confiança quando lhe revelei o estado da minha alma no dia em que tanto o incomodei quando me fui deitar na sua sala nunca pensaria em duvidar de si. Já que assim é, vou imediatamente mandar retirar minha mãe; muito feliz me considero por lhe dar esta prova de confiança. Desculpará, confio, em precauções inspiradas pelo afecto. Que pena, mestre Copperfield, que o senhor não se dignasse conceder-me confidência por confidência! Tantas ocasiões lhe tenho oferecido para isso, mas o senhor não tem querido conceder-me a benevolência que sempre desejei. Oh! Não! É bem certo que o senhor nunca me estimou como eu o tenho estimado!

E, de passo que dizia isto, apertava-me a mão entre os seus dedos húmidos e viscosos. Baldadamente me esforcei por desenvencilhar-me. Passou-me o braço pela manga do meu sobretudo cor de chocolate e fui assim forçado a acompanhá-lo.

— Vamos para casa? — disse Uriah, retomando o caminho da cidade.

A lua começava a iluminar as janelas com os seus raios argênteos.

— Antes de deixar este assunto — disse-lhe após um longo silêncio — é preciso que o senhor fique sabendo bem que, a meus olhos, Inês Wickfield acha-se tão elevada acima de si e tão longe de todas as suas pretensões como a lua que nos alumia!

— Ela é tão pacífica, não é? — disse Uriah. — Mas confesse, mestre Copperfield, que o senhor nunca me estimou como eu o estimava. Achava-me muito humilde, estou certo disso...

— Eu não gosto que se faça tanta profissão de humildade, nem também de outra coisa — respondi.

— Ah! — disse Uriah, com o rosto mais pálido e mais amortecido que nunca —, estava certo disso. Mas o senhor não sabe, mestre Copperfield, a que ponto a humildade convém a uma pessoa na minha situação. Meu pai e eu fomos educados numa escola de caridade; minha mãe foi também educada num estabelecimento dessa natureza. De manhã até à noite, ensinavam-nos a ser humildes e mais não. Devíamos ser humildes para com este e humildes para com aquele; aqui, era preciso tirar o chapéu; ali, era preciso fazer reverência e nunca esquecer a nossa situação e apoucarmo-nos sempre diante dos nossos superiores; Deus sabe quantos superiores nós tínhamos! Se meu pai ganhou a medalha de monitor, foi à força de humildade; e eu também. Se meu pai chegou a sacristão, foi à força de humildade. Entre as pessoas bem-educadas ele tinha a reputação de saber colocar-se tão bem no seu lugar, que se decidiram a dar-lhe impulso. «Sê humilde, Uriah», dizia meu pai, «e abrirás caminho». Foi isto com que nos repisaram, tanto ao senhor como a mim, na escola; e é o que melhor êxito alcança. «Sê humilde», dizia ele, «e alcançarás». E realmente, isto não tem corrido mal.

Pela primeira vez, eu sabia que esse detestável semblante de humildade era hereditário na família Heep; eu via a colheita, mas nunca tinha pensado na sementeira.

— Eu era ainda bem pequeno — disse Uriah — quando aprendi a apreciar a humildade e a aproveitar-me dela. Comia a minha humilde torta de maçãs com bom apetite. Não quis levar muito além os meus humildes estudos e disse de mim para mim: «Aguenta-te». O senhor ofereceu-se para me ensinar latim, mas nessa não caía eu! Meu pai dizia-me sempre: «As pessoas gostam de te dominar, curva a cabeça e deixa correr». Neste momento, por exemplo, bem humilde sou, mestre Copperfield, mas isso não impede que eu já tenha adquirido algum poder!

Tudo o que ele me dizia, lia-o eu bem na sua cara, à luz do luar, muito de feição para me fazer compreender que ele estava decidido a servir-se desse poder. Eu nunca tinha posto em dúvida a sua baixeza, a sua astúcia e a sua malícia; mas começava então apenas a compreender tudo quanto o longo constrangimento da sua mocidade tinha amontoado de vingança implacável nessa alma baixa e vil.

O que de mais satisfatório se notou nessa narrativa repugnante que ele acabava de fazer-me é que me largou o braço para poder levar as duas mãos ao queixo. Uma vez separado dele, eu estava decidido a conservar essa posição. Caminhámos a uma certa distância um do outro, trocando apenas algumas palavras.

Não sei o que lhe tinha dado alegria, se era a comunicação que eu lhe tinha feito, se a narrativa que me tinha prodigalizado do seu passado; mas estava muito mais de maré do que de costume. Ao jantar, falava muito; perguntou à mãe (que mandara retirar de sentinela quando regressámos do passeio) se não seria já tempo de se casar; e de uma vez lançou sobre Inês um tal olhar que eu teria dado tudo o que havia no mundo para me deixarem dar-lhe uma sova.

Quando ficámos sós depois de jantar, Mister Wickfield, ele e eu, Uriah adiantou-se ainda mais. Tinha bebido pouco vinho; não era, pois, isso que o tinha excitado; era preciso que fosse a embriaguez do seu triunfo insolente e o desejo de fazer ostentação disso na minha presença.

Na véspera, eu tinha notado que ele procurava fazer beber Mister Wickfield; e, por um olhar que me deitara Inês ao sair, eu propus, passados cinco minutos, para irmos ter com miss Wickfield à sala de visitas. Eu ia a fazer outro tanto, quando Uriah se me adiantou.

— Como vemos raras vezes o nosso visitante de hoje — disse ele dirigindo-se a Mister Wickfield, sentado na outra extremidade da mesa (que contraste nesses dois tipos!) — e, se está de acordo, poderíamos beber um ou dois copos de vinho à sua saúde. Senhor Copperfield, bebo à sua saúde e à sua prosperidade!

Eu fui obrigado a tocar, pró fora, a mão que ele me estendia através da mesa; depois toquei, com uma comoção bem diferente, a mão da sua pobre vítima.

— Vamos, meu bom sócio — disse Uriah — permita-me que lhe dê o exemplo, bebendo ainda à saúde de algum amigo do Copperfield.

Eu passo rapidamente os diversos toasts propostos por Mister Wickfield, a minha tia, a Mister Dick, ao Tribunal dos Doctor's-Commons e a Uriah. A cada saúde despejava duas vezes o copo, sentindo sempre a sua fraqueza, baldadamente lutando contra essa miserável paixão: pobre homem! Como sofria com o procedimento de Uriah e no entanto como procurava conciliar-se com ele! Heep triunfava e contorcionava-se de prazer, fazia troféu do vencido, cuja vergonha estadeava a meus olhos. Eu tinha o coração lancinado; ainda neste momento, repugna à minha mão escrevê-lo.

— Vamos, meu bom sócio — disse enfim Uriah —, cabe-me agora levantar uma saúde; mas peço humildemente que venham copos maiores; bebamos à mais divina do seu sexo.

O pai de Inês tinha na mão o copo vazio. Pousou-o e fixou os olhos no retrato de sua filha, levou a mão à fronte e caiu para trás na poltrona.

— Eu não passo de um muito humilde personagem para lhe fazer uma saúde — prosseguiu Uriah —, mas admiro-a, ou antes adoro-a!

Que angústia a desse pai que apertava convulsivamente a cabeça grisalha em ambas as mãos para comprimir um sofrimento interno mil vezes mais cruel de ver do que todas as dores físicas que jamais pudesse sofrer!

— Inês — disse Uriah sem fazer caso do estado de Mister Wickfield ou sem querer parecer compreendê-lo — Inês Wickfield é, posso dizê-lo, a mais divina das mulheres. Olhem, podemos falar livremente, entre amigos, pois bem! Pode-se ser ufano de ser seu pai, mas de ser seu marido...

Deus me livre de nunca mais ouvir um grito como o que soltou Mister Wickfield levantando-se de repente.

— Mas que é que ele tem? — disse Uriah pálido como um defunto. — Ah, vamos, espero que não seja um ataque de loucura, senhor Wickfield! Tenho tanto direito como qualquer outro de dizer, parece-me, que um dia a sua Inês há-de ser a minha Inês! Tenho mesmo mais direito que ninguém!

Eu lancei os meus braços em volta de Mister Wickfield, supliquei-lhe em nome de tudo o que pude imaginar que sossegasse, mas sobretudo em nome da sua afeição por Inês. Ele estava fora de si, arrepelava os cabelos, batia na fronte, tentava repelir-me para longe, sem responder uma só palavra, sem ver o que quer que fosse, sem saber, ai de mim!, no seu cego desespero, o que queria, com o rosto parado e desfigurado. Que medonho espectáculo!

Supliquei-lhe, na minha dor, que não se abandonasse a essa angústia e que me prestasse atenção. Supliquei-lhe que pensasse em Inês; em Inês e em mim; que se recordasse como Inês e eu tínhamos crescido juntos, ela a quem eu amava e respeitava, ela que era o seu orgulho e a sua alegria. Esforcei-me em lhe tornar a pôr a filha diante dos seus olhos; censurei-o mesmo de não ter bastante firmeza para lhe poupar o conhecimento de uma semelhante cena. Não sei se as minhas palavras tiveram algum efeito, ou se a violência da sua paixão acabou por se destruir a si própria; mas foi-se acalmando pouco a pouco, começou a olhar para mim, primeiro com alucinação, depois com um clarão de razão. Enfim disse-me:

— Bem sei, Trotwood! Minha filha querida e o senhor... bem sei! Mas ele, olhe para ele!

E mostrava-me Uriah, pálido e trémulo a um canto. Evidentemente o patife tinha feito uma escola; tinha contado com uma coisa muito diferente!

— Olhe para o meu carrasco — prosseguiu Mister Wickfield. — É esse homem que me tem feito perder, pouco a pouco, o meu nome, a minha reputação, a minha paz, a felicidade do meu lar doméstico.

— Diga antes que sou eu quem lhe tem conservado o seu nome, a sua reputação, a sua paz e a felicidade do seu lar — disse Uriah procurando com um ar aborrecido, descontente e irritado, compor as coisas. — Não se enfade, senhor Wickfield: se eu fui mais além de que o senhor esperava, posso bem recuar um pouco, penso! No fim de contas, aonde é que está o mal?

— Eu sabia que cada qual tem o seu fito na vida — disse Mister Wickfield — e julgava tê-lo preso a mim por motivos de interesse. Mas veja!... oh! Veja o que é esse homem!

— Bem fará com que ele se cale, Copperfield, se puder — exclamou Uriah voltando para mim as suas mãos descarnadas. — Ele vai para aí dizer coisas, preste bem atenção, vai para aí dizer coisas que o incomodarão a ele depois de as ter dito e que mesmo o incomodarão ao senhor quando as ouvir!

— Vou dizer tudo! — exclamou Mister Wickfield com ar desesperado. — Já que estou à sua mercê, porque é que não me porei à mercê do mundo inteiro?

— Tome cautela, repito — prosseguiu Uriah continuando a dirigir-se-me — se não fizer com que ele se cale, é que não é seu amigo. O senhor pergunta porque é que não se poria à mercê do mundo inteiro, senhor Wickfield? Porque tem uma filha. O senhor e eu sabemos o que sabemos, não é verdade? Não despertemos o leão que dorme! Não sou eu que terei essa imprudência, bem vê que sou tão humilde quanto se pode ser. Disse-lhe já que se me adiantei de mais, estou arrependido. Que mais quer o senhor?

— Oh! Trotwood, Trotwood! — exclamou Mister Wickfield torcendo as mãos. — Caí bastante fundo desde que o vi pela primeira vez nesta casa! Já estava neste fatal pendor, mas ai de mim! Quanto caminho, que triste caminho eu tenho percorrido depois! Foi a minha fraqueza que me perdeu. Ah! Se eu ao menos tivesse a força de me recordar ou ao menos de esquecer! A recordação dolorosa da perda que tive ficando sem a mãe de minha filha tornou-se uma doença; o meu amor pela minha filha, levado até ao esquecimento de todo o resto, vibrou-me o último golpe. Uma vez atingido por esse mal incurável, infectei por minha vez tudo aquilo em que toquei. Causei a desgraça de tudo quanto ternamente amo: o senhor sabe se eu a amo! Julguei possível amar uma criatura no mundo com exclusão de todas as outras; julguei possível chorar uma que tinha deixado o mundo, sem chorar com os que choram. E aqui está como gastei a vida. Devorei o coração numa cobarde tristeza e ele vinga-se devorando-me por sua vez. Fui egoísta na minha dor, egoísta no meu amor, egoísta no cuidado com que participei da dor e do afecto comuns. E agora, não sou mais que uma ruína; veja, oh! Veja a minha miséria! Fuja de mim! Aborreça-me!

Caiu numa cadeira e pôs-se a soluçar. Já não o sustentava a exaltação do seu desgosto. Uriah saiu do seu canto.

— Não sei tudo quanto pude fazer na minha loucura — disse Mister Wickfield estendendo as mãos como para me suplicar que o não condenasse ainda —, mas ele sabe-o, ele que esteve sempre a meu lado para me apontar aquilo que eu devia fazer. Veja a bala rasa que ele me pôs ao pé; o senhor encontra-o instalado na minha casa, encontra-o metido em todos os meus negócios. O senhor ouviu-o, não há muito. Que poderei dizer-lhe mais?

— Nem tem necessidade de dizer mais e melhor fora não ter dito absolutamente nada — replicou Uriah com um ar a um tempo arrogante e servil. — O senhor não se teria posto nesse belo estado, se não tivesse bebido tanto; amanhã há-de arrepender-se. Se eu mesmo disse um pouco mais do que talvez desejava, olha a grande coisa! Bem vê que não usei da menor obstinação.

A porta abriu-se e entrou suavemente Inês, pálida como uma defunta; passou o braço ao pescoço de seu pai e disse-lhe com firmeza:

— O papá não se acha aqui bem, venha comigo!

Ele deixou cair a cabeça no ombro da filha, como acabrunhado de vergonha e subiram juntos. Os olhos de Inês encontraram os meus; vi bem que ela sabia o que se tinha passado.

— Eu não pensava que ele tomasse a coisa às avessas como tomou, mestre Copperfield — disse Uriah —, mas isto não é nada. Amanhã estaremos congraçados. É para bem dele. Eu desejo humildemente o bem dele.

Não lhe respondi palavra e subi tranquilo ao quarto aonde Inês tantas vezes se fora sentar ao pé de mim enquanto eu estudava. Lá me demorei até tarde, sem que ninguém fosse fazer-me companhia. Peguei num livro e tentei ler; ouvi os relógios bater meia-noite e lia ainda sem saber o que lia, quando Inês me tocou levemente no ombro.

— Como parte amanhã cedo, Trotwood, venho dizer-lhe adeus.

Tinha chorado, mas o rosto tornara-se-lhe lindo e sereno.

— Que Deus o abençoe! — disse ela estendendo-me a mão.

— Minha querida Inês — respondi — vejo que não quer que lhe fale no caso, esta noite; não, não haverá nada a fazer?

— Confiar em Deus! — prosseguiu ela.

— Não posso fazer nada... eu que venho enfadá-la com os meus pobres desgostos?

— Torna os meus menos amargos — respondeu ela — meu caro Trotwood!

— Minha querida Inês, é uma grande presunção da minha parte pretender dar-lhe um conselho, eu que tão pouco tenho do que a miss possui em tão alto grau: bondade, coragem, nobreza; mas sabe quanto a amo e tudo quanto lhe devo. Inês, a miss nunca se sacrificará a um dever mal compreendido, pois não?

Ela recuou um passo e largou-me a mão. Nunca a tinha visto tão agitada.

— Diga-me que nunca tal pensamento lhe passou pela ideia, querida Inês. A miss que é para mim mais que uma irmã, pense no que valem um coração como o seu, um amor como o seu.

Ah! Quantas vezes depois eu reavivei em pensamento esse doce rosto e esse olhar de um instante, esse olhar em que não havia nem espanto, nem censura, nem pesar! Quantas vezes tornei a ver o encantador sorriso com que ela me disse que estava muito segura de si, que era escusado recear por ela; depois chamou-me seu irmão e desapareceu.

Era ainda noite, no dia seguinte de manhã, quando subi para a diligência, à porta da hospedaria. íamos partir e o dia começava a clarear, quando no momento em que o meu pensamento incidia sobre Inês, descobri a cabeça de Uriah que trepava para junto de mim.

— Copperfield — disse-me ele em voz baixa agarrando-se ao carro — pensei que o senhor estimaria saber antes de partir que tudo estava arranjado. Já estive no quarto dele e tornei-o manso como um cordeiro. Veja, vale-me o ser humilde, sou-lhe útil; e quando não está com a pinga, compreende os seus interesses! No fim de contas, que homem amável, não é verdade, mestre Copperfield!

Tomei à minha conta dizer-lhe que estimava muito que ele se tivesse desculpado.

— Oh, certamente — disse Uriah; — quando se é humilde, sabe, que faz isso de pedir desculpa? É tão fácil. A propósito, suponho, mestre Copperfield — acrescentou com uma leve contorção — que alguma vez lhe sucedeu colher uma pêra antes de amadurecer?

— É muito provável — respondi.

— Foi o que eu fiz ontem à noite — disse Uriah —, mas a pêra há-de amadurecer. Basta estar vigilante. Eu posso esperar.

E sempre a encher-me de despedidas, desceu do carro no momento em que o cocheiro subia para a boleia. Tanto quanto posso crer, ele comia sem dúvida qualquer coisa para arrostar com o frio da manhã; pelo menos, ao ver o movimento da sua boca, dir-se-ia que a pêra já estava madura e que ele a saboreava dando estalos com os beiços.

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