David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XX - Em casa de Steerforth

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By ClassicosLP

Quando a criada me bateu à porta, no dia seguinte de manhã, para me anunciar que tinha ali a água quente para a barba, pensei com desgosto que não precisava dela e corei na cama, aonde ainda me encontrava. A suspeita de que a criada ria à socapa fazendo-me esse oferecimento, perseguiu-me durante todo o tempo em que me vestia e deu-me, estou certo, o aspecto de um culpado, quando a encontrei nas escadas ao descer para almoçar. Sentia tão vivamente que era mais novo do que desejaria, que não pude decidir-me nem por um momento a passar junto dela; ouvia-a varrer as escadas e demorava-me ao pé da janela a olhar para a estátua equestre do rei Carlos, conquanto essa estátua nada tivesse de bastante real, rodeada como estava por um dédalo de trens de praça, debaixo de uma medonha carga de água e por um nevoeiro cerrado; o criado tirou-me de embaraços, prevenindo-me de que Steerforth estava à minha espera.

Encontrei-o, não na sala comum, mas numa linda saleta particular, com cortinas vermelhas e um tapete da Turquia. O fogo era brilhante e um almoço suculento esperava-nos numa mesinha coberta com uma toalha branca; o aposento, o fogo, o almoço e Steerforth reflectiam-se alegremente num pequeno espelho oval colocado por cima do aparador. Senti-me, a princípio, um pouco constrangido. Steerforth era tão elegante, tão seguro de si, por tal forma superior a mim em todas as coisas, compreendida a idade, que foi preciso que ele empregasse toda a graça protectora das suas maneiras para me pôr à vontade. Conseguiu-o, todavia e eu não me cansava de admirar a transformação que se operara na Cruz de Ouro, quando comparava o triste estado de abandono em que eu estava mergulhado na véspera com a refeição da manhã e com tudo o que agora me rodeava. Quanto à familiaridade do criado, tinha desaparecido. Servia-nos com a humildade de um penitente cingido de cilício e coberto de cinza.

— Agora, Copperfield — disse-me Steerforth quando ficámos sós — desejaria saber ao certo o que faz, aonde vai e tudo quanto lhe interessa; parece-me que é propriedade minha.

Corei de prazer ao ver que me consagrava ainda tanto interesse e disse-lhe as intenções de minha tia mandando-me fazer esta pequena viagem.

— Já que não tem pressa — disse Steerforth — venha comigo daí até Highgate; passará em nossa casa um dia ou dois. Há-de agradar-lhe minha mãe; envaidece-se tanto comigo que repisa um pouco, mas releve-lhe esse fraco e esteja certo que lhe há-de agradar.

— Desejaria assegurar-me disso, tendo o senhor a bondade de lho dizer — respondi-lhe sorrindo.

— Oh! — disse Steerforth —, todos os que são meus amigos têm sobre minha mãe direitos que ela reconhece logo.

— Espero então estar nas suas boas graças.

— Está dito! — disse Steerforth. — Venha verificar a prova. Vamos ver as curiosidades da cidade durante uma hora ou duas; nem sempre se tem a boa fortuna de as mostrar a um inocente como o senhor Copperfield e depois tomaremos a diligência de Highgate.

Eu supunha sonhar, tinha medo de despertar no quarto número quarenta e quatro, para ir encontrar uma mesa solitária, na sala de jantar, com um criado impertinente. Depois de ter escrito a minha tia e tê-la informado de que tinha encontrado o meu antigo camarada, o objecto de tanta admiração e que tinha aceitado o seu convite, subimos para um trem, a fim de irmos ver um panorama e alguns outros espectáculos curiosos; demos uma volta pelo museu e não pude deixar de notar ao mesmo tempo tudo quanto Steerforth sabia acerca dos assuntos mais variados e o pouco caso que parecia fazer da sua instrução.

— O senhor alcançará as honras nos exames da Universidade, Steerforth — disse-lhe — se já não as alcançou, e os seus amigos terão boas razões de se orgulharem de si.

— Eu, fazer um exame brilhante! — exclamou Steerforth. — Não, não, meu querido Malmequer. Não se contraria por eu lhe chamar Malmequer?

— Absolutamente nada — respondi.

— O senhor é um bom rapaz, meu querido Malmequer — disse Steerforth rindo —, não tenho o menor desejo nem a menor intenção de me distinguir dessa maneira. Já sei bastante para o que quero fazer. Acho que me sinto já sofrivelmente aborrecido...

— Mas a glória... — ia eu continuar.

— Oh! Malmequer romanesco! — disse Steerforth rindo mais alto. — Para que terei eu o trabalho de escancarar a boca e erguer as mãos entusiasmado a uma malta de pedantes? Deixo isso a qualquer outro, que procure a glória; não lha disputarei.

Eu estava confundido por me ter tão grosseiramente enganado e não me incomodei em mudar de conversação. Felizmente não era difícil, porque Steerforth sabia passar de um assunto a outro com uma facilidade e uma graça que lhe eram peculiares.

Depois de termos tomado alguns refrescos, subimos para a diligência e, graças à brevidade dos dias de Inverno, era já lusco-fusco quando parámos à porta de um velho solar, construído de tijolo, no cimo da montanha em Highgate. Uma senhora de certa idade, sem ser ainda muito idosa, de presença distinta e uma linda figura, estava à porta, no momento em que chegámos; chamou a Steerforth «meu querido Jaime» e apertou-o nos braços. Ele apresentou-me a essa senhora, dizendo que era sua mãe e ela acolheu-me com uma graça majestosa.

A casa era antiga, mas elegante e bem tratada. Das janelas do meu quarto, descobri, muito ao longe, Londres envolta num grande vapor, com algumas luzes tremeluzindo aqui e ali. Só tive tempo de lançar, ao vestir-me, uma vista de olhos sobre o mobiliário maciço, as paisagens à agulha encaixilhadas e penduradas na parede e que eram, suponho, obra da mãe de Steerforth, na sua juventude e examinava ainda retratos de mulheres a pastel, com cabelos empoados e anquinhas, iluminadas pela chama crepitante do fogo que acabavam de acender, quando me chamaram para jantar.

Havia na sala de jantar uma outra senhora, baixa, morena e delgada; não era agradável, conquanto as suas feições fossem regulares e finas. A minha atenção incidiu logo a princípio sobre ela, talvez porque não a esperava, talvez porque estava sentado na frente dela, talvez, enfim, porque havia realmente nela qualquer coisa de notável. Tinha cabelos e olhos negros, o olhar era animado, era magra e tinha no lábio superior uma cicatriz antiga, ou melhor uma costura, porque estava fundida no tom geral da sua tez e via-se que o ferimento se curara há muito tempo; devia ter atravessado a boca até ao queixo, mas o vestígio era apenas visível do outro lado da mesa, excepto no lábio superior que lhe tinha ficado um pouco disforme. Decidi de mim para mim que ela devia ter os seus trinta anos e que tinha vontade de se casar. Estava um pouco avariada como uma casa por muito tempo desabitada, por falta de inquilino, mas todavia ainda era bem encarada. A magreza parecia provir de um fogo interior que a devorava e que brilhava em seus olhos ardentes.

Apresentaram-ma sob o nome de miss Dartle, mas Steerforth e sua mãe chamavam-lhe Rosa. Soube que vivia em casa de Mistress Steerforth e que há muito que era sua dama de companhia. Pareceu-me que não dizia francamente o que queria dizer, que se contentava em insinuá-lo e que isso não lhe saía mal efectivamente. Por exemplo, quando Mistress Steerforth observou, mais gracejando do que a sério, que receava que seu filho levasse uma vida um pouco malbaratada na Universidade, eis como se houve miss Dartle:

— Oh! Certamente! A senhora sabe que sou muito ignorante e que não desejo senão instruir-me; mas dar-se-á caso que não seja sempre assim? Eu supunha que era corrente que esse género de vida fosse...?

— Uma preparação para uma profissão muito séria; se é isso o que quer dizer, Rosa — disse Mistress Steerforth com alguma frieza...

— Oh! Por certo, é bem verdade — respondeu miss Dartle —, mas dar-se-á o caso, apesar de tudo, de não ser sempre assim? Eu não peço senão que me rectifiquem, se me enganar; mas supunha que na realidade era sempre assim.

— Sempre o quê? — disse miss Steerforth.

— Oh! A senhora quer dizer que não — respondeu miss Dartle. — Muito bem! Estou encantada por o saber. Agora sei o que devo pensar, eis a vantagem das perguntas. Não consentirei mais que se fale diante de mim de extravagâncias e de prodigalidades de todo o género, como sendo consequências inevitáveis de uma vida de estudante.

— E fará muito bem — disse Mistress Steerforth —; o preceptor de meu filho é um homem muito consciencioso e quando eu não tiver plena confiança em meu filho, terei plena confiança na vigilância do seu mestre.

— Em verdade? — disse miss Dartle. — Ah! Ele é consciencioso, realmente consciencioso?

— É, estou disso convencida — disse Mistress Steerforth.

— Que felicidade! — exclamou miss Dartle. — Que tranquilidade para si! Realmente consciencioso? Então ele não é... não, está visto, se é realmente consciencioso. Pois bem! Estou satisfeita por poder ter boa opinião dele para futuro. A senhora não faz ideia do que ele ganhou na minha estima desde que sei que ele é realmente consciencioso.

Era assim que miss Dartle insinuava, em todas as circunstâncias, as suas opiniões sobre qualquer questão e corrigia na conversa tudo o que não entrava nas suas ideias. Devo dizer que por vezes obtinha êxito, mesmo quando estava em contradição com miss Steerforth. Tive um exemplo antes do fim do jantar. Mistress Steerforth falava da viagem que eu tinha tenção de ir fazer ao Suffolk; eu disse à ventura que ficaria muito contente se Steerforth quisesse acompanhar-me e expliquei-lhe que ia ver a minha velha criada e a família de Mister Peggotty, esse marinheiro que ele tinha visto quando estávamos juntos no colégio.

— Oh! Esse bom homem — disse Steerforth — que trazia com ele um filho, não é assim?

— Não; é sobrinho dele — repliquei —, mas adoptou-o. Tem também em casa uma sobrinhita muito linda que adoptou igualmente. Numa palavra, a casa dele (ou antes o barco dele, porque habita num barco em terra firme) está cheio de gente que é objecto da sua bondade e da sua generosidade. Ficaria encantado se visse esse interior.

— Palavra? — disse Steerforth. — Pois bem! Tenho grande desejo disso. Hei-de ver se posso arranjar a ir, porque não falando no prazer da sua companhia, Malmequer, far-se-ia de boa vontade a viagem para ver gente dessa espécie reunida junta e viver um pouco no meio dela.

O coração batia-me com a esperança deste novo prazer. Mas miss Dartle, que nos vigiava com os seus olhos penetrantes, meteu-se nesta altura na conversa a propósito do tom com que ele disse «gente dessa espécie»:

— Ah, sim? Diga-me, essa gente é realmente...?

— É... o quê? Que quer dizer? — perguntou Steerforth.

— Gente dessa espécie! Dar-se-á o caso que sejam realmente animais, brutos, criaturas de outra natureza? É tudo quanto queria dizer.

— Há certamente uma grande diferença entre eles e nós — disse Steerforth com ar indiferente —; não se pode esperar que sejam tão sensíveis como nós. A delicadeza deles não é muito susceptível e não se melindra facilmente. São pessoas de uma virtude maravilhosa, pelo menos é o que dizem e não tenho nenhum desejo de dizer o contrário; mas não são naturezas muito delicadas e devem dar-se por felizes de que os seus sentimentos não sejam mais fáceis de ferir do que a sua pele rude e grosseira.

— Deveras? — disse miss Dartle. — Muito bem! Não podia dar-me maior prazer que cientificar-me disso; é muito consolador! Acho delicioso saber que não sentem os seus sofrimentos. Por vezes tenho sido levada a lastimar essa espécie de gente, mas doravante não pensarei mais nisso. Aprende-se todos os dias qualquer coisa... eu tinha dúvidas, convenho nisso, mas dissiparam-se-me agora; não sabia o que sei agora. Eis a vantagem das discussões, não é verdade?

Eu pensava que Steerforth quisera gracejar para fazer dar à língua miss Dartle e esperava ouvi-lo confessar isso depois da saída de Mistress Steerforth e da sua dama de companhia. Estávamos sós, sentados ao fogão; mas ele limitou-se a perguntar-me o que pensava dela.

— Tem espírito, não é verdade?

— Espírito! Ela passa a vida a epilogar; afia tudo na sua pedra de amolar como afiou, há anos, a sua figura bicuda e a sua estatura afilada; e tanto afia que se estragou no ofício; dela só resta uma lâmina de faca.

— Que notável cicatriz que ela tem no lábio! — disse-lhe eu.

Steerforth empalideceu um pouco e guardou silêncio por um momento.

— A verdade é — disse ele enfim — que foi por minha culpa.

— Por acidente?

— Não. Eu era criança ainda, ela fez-me desesperar e eu atirei-lhe com um martelo à cabeça. Como vê devia ser um anjinho que já prometia muito.

Eu estava apoquentado por ter aludido a um assunto tão desagradável, mas era muito tarde.

— Desde então que ficou com essa marca, como vê — disse Steerforth — e para a cova a levará, se é verdade que possa descansar algum dia numa cova, porque duvido que possa descansar jamais em qualquer parle. Era filha de um primo afastado de meu pai, perdeu a mãe quando o pai também morreu; minha mãe, que já era viúva, tomou-a para casa, a fim de lhe fazer companhia. Tem o pé-de-meia de um par de mil libras esterlinas, cujo rendimento todos os anos economiza para juntar ao capital. Ei-lo ao corrente da história de miss Rosa Dartle.

— E, naturalmente, ela tem-no na conta de um irmão?

— Oh! — disse Steerforth contemplando o fogo —, há irmãos que não são o objecto de um afecto bem intenso; outros há, porém, que se amam... Mas sirva-se, Copperfield; vamos beber à saúde dos malmequeres dos campos em sua honra e à dos lírios do vale que não trabalham nem Ham, em lembrança da minha pessoa... porque não posso dizer em minha honra.

Um sorriso zombeteiro que errava nos seus lábios havia um momento desaparecera quando ele pronunciou estas palavras, mas recuperou toda a sua graça e a sua franqueza costumadas.

Não pude fugir a contemplar a cicatriz com um desagradável interesse, ao entrar na sala para tomar o chá. Bem depressa percebi que era a parte mais sensível do seu rosto e que quando ela empalidecia, essa cicatriz mudava também de cor e tornava-se numa risca cinzenta, plúmbea, que se distinguia então em toda a sua extensão como uma linha de tinta simpática, quando se expõe ao calor do fogo. Jogando o gamão com Steerforth, levantou-se entre ele e ela uma pequena discussão que excitou na miss um instante de violenta cólera e vi a cicatriz desenhar-se de súbito como as palavras misteriosas escritas na parede do festim de Baltazar.

Não me admirei de ver Mistress Steerforth absorvida no seu afecto por seu filho. Parecia não poder ocupar-se ou falar de outra coisa; mostrou-me um medalhão contendo a miniatura dele com um anel de cabelos da sua primeira infância, depois um outro retrato da idade em que primeiro o conheci; ao peito trazia um terceiro retrato recente. Conservava numa secretária perto da sua poltrona, todas as cartas que ele lhe tinha escrito; de boa vontade me leria algumas e eu ficaria encantado de as ouvir, mas Steerforth interveio pedindo-lhe que não fizesse tal.

— Foi em casa de Mister Creakle que o senhor conheceu meu filho, ao que parece — disse-me Mistress Steerforth conversando comigo durante a partida de gamão do filho com miss Dartle. — Lembro-me bem dele me falar, por esse tempo, de um aluno mais novo que ele que lhe tinha agradado, mas o seu nome apagou-se naturalmente da minha memória.

— Foi sempre cheio de bondade e generosidade comigo nesse tempo, minha senhora e asseguro-lhe que tinha necessidade de um amigo assim; sem ele, bem oprimido seria eu.

— Ele foi sempre bom e generoso — disse Steerforth com elevação.

— Não era um colégio conveniente para o meu filho — disse ela —, longe disso; mas havia a considerar circunstâncias particulares mais importantes ainda do que a escolha de professores. O espírito independente de meu filho tornava indispensável que ele fosse colocado em casa de um homem que sentisse a sua superioridade e que consentisse em inclinar-se diante dele: em Mister Creakle encontrámos o homem que nos era preciso.

Ela não me dava novidade nenhuma; eu conhecia o homem; mas por isso não desprezava mais Mister Creakle; parecia-me bastante desculpável que não soubesse resistir ao encanto irresistível de Steerforth.

— Meu filho foi levado, nessa casa, a aplicar as suas grandes faculdades, por um sentimento de emulação voluntária e de orgulho natural — continuou ela. — Ter-se-ia revoltado contra qualquer sujeição, mas lá sentia-se soberano, amo e senhor e tomou a resolução de ser digno em tudo da sua situação; não esperava menos dele.

Respondi com ela, de toda a minha alma, que bem o reconhecia.

— Meu filho tomou então, de vontade própria e sem constrangimento algum, o primeiro lugar da instituição, como fará sempre, uma vez que se lhe meter no espírito ultrapassar os seus concorrentes — continuou ela. — Meu filho disse-me, Copperfield, que o senhor lhe era dedicado e que ontem, ao encontrá-lo, se recordou dele com lágrimas de alegria. Seria afectação da minha parte descrever qualquer surpresa ao ver meu filho inspirar tão intensas emoções, mas não posso ser indiferente para quem quer que sinta tão profundamente o que vale o meu Steerforth; estou, pois, maravilhada por o ver aqui, senhor Copperfield e posso assegurar-lhe, de mais a mais, que ele lhe consagra uma amizade muito particular; pode contar com a sua protecção.

Miss Dartle jogava o gamão com o ardor que mostrava em todas as coisas. Se a primeira vez em que a vi, ela estivesse diante dessa mesa, havia de imaginar que a sua magreza e os seus olhos esgazeados eram o efeito naturalíssimo da sua paixão pelo jogo. Mas, com tudo isso, ou eu me engano muito, ou ela não perdia uma única palavra da conversação e não deixava passar despercebido um só dos olhares de prazer com que eu recebia os protestos de Mistress Steerforth, honrado a meus olhos pela sua confiança e sentindo no meu amor próprio que eu era bem mais velho depois da minha partida de Canterbury.

Ao fim da noite, quando trouxeram uma bandeja cheia de cálices e garrafas, Steerforth, sentado ao canto do fogão, prometeu-me pensar seriamente em acompanhar-me na minha digressão.

— Tenho tempo de pensar — disse ele. — Ainda temos oito dias diante de nós.

E sua mãe disse-me a mesma coisa com muita bondade.

Conversando, Steerforth chamou-me várias vezes Malmequer, o que atraiu sobre nós as perguntas de miss Dartle.

— Ora diga-me, senhor Copperfield: é realmente alguma alcunha? — perguntou ela. — E porque é que ele lha dá? Será... talvez, será porque o considere como um moço inocente? Sou tão inábil para adivinhar estas coisas!

Respondi, corando, que supunha não se ter ela enganado nas suas conjecturas.

— Oh! — disse miss Dartle —, estou encantada por saber isso! O meu gosto é aprender e estou satisfeita pelo que me diz. Ele considera-o como um jovem inocente e é por isso que fez de si um amigo. Ora, aqui está o que é deveras encantador!

Foi deitar-se logo a seguir e Mistress Steerforth retirou-se também. Steerforth e eu, depois de passarmos uma meia hora perto do fogo a falarmos de Traddles e de todos os nossos antigos camaradas, subimos as escadas juntos. O quarto de Steerforth era contíguo ao meu; entrei para dar uma vista de olhos. Era asseado e cómodo: poltronas, almofadas, tamboretes bordados por sua mãe, nada ali faltava que não contribuísse para o tornar agradável e, para coroar tudo, o belo rosto de Mistress Steerforth reproduzido num quadro suspenso da parede, seguindo com a vista o filho, as suas queridas delícias, como se quisesse velar, pelo menos em efígie, até o seu sono!

Encontrei um fogo claro aceso no meu quarto. As cortinas do leito e das janelas estavam fechadas e instalei-me comodamente numa grande poltrona perto do fogo, para reflectir na minha felicidade; achava-me mergulhado nas minhas divagações havia apenas um momento, quando descobri um retrato de miss Dartle colocado por cima do fogão, dardejando os seus olhos ardentes sobre mim.

A parecença era empolgante, e, por conseguinte, também a expressão. O pintor havia esquecido a cicatriz, mas eu não a esquecia, com as suas mudanças de cor e os seus movimentos variados, ora não aparecendo senão no lábio superior, como ao jantar, ora marcando de repente toda a extensão do ferimento feito pelo martelo, como tinha notado quando ela se encolerizava.

Perguntei de mim para mim com impaciência por que é que não a tinham colocado noutra qualquer parte, em vez de me condenarem à sua companhia. Despi-me apressadamente para me ver livre dela, apaguei a vela e deitei-me; mas, ao adormecer, não podia esquecer-me de que ela olhava sempre para mim, parecendo dizer-me «Ah! Realmente, é assim, eu desejava muito saber...» e, quando despertei pela manhã, recordei-me de que, em sonhos, eu me cansei de perguntar a quantas pessoas encontrava, se realmente era assim, ou não, sem, de resto, saber patavina do que queria dizer.

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