David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece

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By ClassicosLP

Não pensei mais em falar de Peggotty depois da minha fuga, mas naturalmente tinha-lhe escrito desde que me instalara em Douvres e uma segunda carta, mais comprida que a primeira, tinha-a posto ao facto de todos os pormenores das minhas aventuras, quando minha tia me tomou formalmente sob a sua protecção. Uma vez instalado em casa do doutor Strong, escrevi-lhe de novo para lhe notificar a minha boa situação e as minhas alegres esperanças. Gastando o dinheiro que Mister Dick me dera, não podia eu sentir metade da satisfação que senti ao enviar, dentro dessa última carta, uma peça de ouro de oito xelins a Peggotty, a fim de a reembolsar da quantia que lhe pedi emprestada e só nessa epístola é que lhe falei do carroceiro ladrão que me roubou a mala e o meio guinéu; até então tinha evitado falar-lhe disso.

Peggotty respondeu a todas essas comunicações com prontidão, se não com a concisão de um caixeiro de escrituração de uma casa comercial; esgotou todos os seus talentos de redacção para exprimir o que sentia a propósito da minha viagem. Quatro páginas de frases incoerentes semeadas de interjeições, sem outra pontuação senão manchas no papel, não bastavam para aliviar a sua indignação. Mas as manchas diziam-me mais do que a mais bela composição, porque me provavam que Peggotty estivera sempre a chorar enquanto me escrevia; e que podia eu desejar mais?

Vi claramente que ela ainda não tinha concebido muito gosto por minha tia e não me admira. «Ninguém jamais se podia lisonjear de conhecer bem uma pessoa, dizia ela, mas achar miss Betsy tão diferente do que sempre lhe parecera até então, era uma lição contra os juízos precipitados». Tal era a sua expressão. Ela tinha evidentemente ainda um pouco de medo de miss Betsy e só com uma certa timidez é que me pedia para lhe apresentar os seus respeitos; também parecia inquietar-se um pouco a meu respeito e supunha sem dúvida que eu não tardaria a fugir de casa, a julgar pelos seus repetidos protestos de que era só pedir-lhe o dinheiro necessário para ir a Yarmouth, que logo o receberia.

Informou-me de um acontecimento que me causou uma grande impressão: tinha-se vendido a mobília da nossa antiga habitação. Mister e miss Murdstone tinham abandonado a terra; a casa fechara-se e estava ou para vender ou para alugar. Deus sabe como era pequeno o lugar que eu tinha em casa de minha mãe depois que eles lá tinham entrado, todavia eu pensava com pena que essa casa, que me fora cara, estava abandonada, que as ervas ruins cresciam no jardim e que havia folhas secas por toda a parte. Afigurava-se-me ouvir o vento de Inverno assobiar em volta de tudo e a chuva gelada bater de encontro às janelas, enquanto a lua povoava de fantasmas os quartos desabitados e só ela velava durante a noite nessa solidão. Pus-me a pensar no túmulo debaixo da árvore do cemitério e parecia-me que a casa também estava morta e que tudo quanto se ligava com meu pai e com minha mãe igualmente desaparecera.

As cartas de Peggotty não continham outras novidades. «Mister Barkis era um excelente marido, dizia, conquanto fosse sempre um pouco agarrado; mas cada qual tem os seus defeitos e ela não deixava de os ter pelo seu lado (eu nunca pudera descobri-los), ele mandava-me recomendações e recordava-me que o meu pequeno quarto lá estava à minha espera. Mister Peggotty passava bem, Ham também, Mistress Gummidge ia assim-assim e a Emilita não tinha querido mandar-me recomendações, mas tinha dito que Peggotty podia encarregar-se disso, se quisesse».

Comuniquei todas estas novidades a minha tia como sobrinho submisso, guardando somente para mim o que dizia respeito à Emilita, por um sentimento instintivo de que a tia Betsy não gostaria muito dela. No começo da minha estada em Canterbury, ela foi lá muitas vezes com o pretexto de ver-me e sempre a horas em que eu não podia esperá-la, com o fim, suponho, de me encontrar em falta. Mas como pelo contrário me encontrava sempre ocupado e sabia por informações certas que eu tinha boa reputação e que ia muito adiantado nos meus estudos, não tardou a renunciar a essas imprevistas visitas. Eu via-a todos os meses quando ia a Douvres, ao sábado, para lá passar o domingo e todos os quinze dias Mister Dick chegava na quarta-feira ao meio-dia, pela diligência, para só regressar no dia seguinte de manhã.

Nessas ocasiões, Mister Dick nunca viajava sem um estojo que continha provisão de papelaria e a famosa memória, porque se lhe tinha metido em cabeça que o tempo urgia e que, decididamente, era preciso terminar esse documento.

Mister Dick era grande amador de pão de espécies. Para lhe tornar as suas visitas mais agradáveis, minha tia tinha-me encarregado de lhe abrir um crédito num pasteleiro, com ordem de nunca lhe fornecer por dia mais de dez pence. Esta regra estrita e o pagamento que se reservava fazer ela própria das contas do hotel em que ele dormia, levavam-me a crer que ela lhe dava licença para fazer tilintar o dinheiro no bolso do colete, mas não para o gastar. Descobri mais tarde que era esse o caso, efectivamente, ou que pelo menos se combinara entre minha tia e ele, que ele lhe prestaria contas de todas as suas despesas. Como não tinha ideia de a enganar, mas sim o maior desejo de lhe ser agradável, fazia-as com a maior moderação. Nesse ponto como noutro qualquer, Mister Dick estava convencido de que minha tia era a mais sábia e a mais admirável mulher do mundo, como muitas vezes mo confiou sob sigilo de segredo e ao ouvido.

— Trotwood — disse-me Dick com ar misterioso depois de me ter feito essa confidência uma quarta-feira — quem é aquele homem que se esconde perto da nossa casa para lhe causar medo?

— Para causar medo à minha tia, senhor Dick?

Mister Dick fez um sinal de assentimento.

— Eu imaginava que nada no mundo a podia amedrontar — disse ele — porque ela é... (neste ponto baixou a voz) é... não vale repeti-lo... a mais sábia e a mais admirável de todas as mulheres.

Depois de dar um passo atrás para ver o efeito que em mim produzia esta definição de minha tia:

— A primeira vez que ele apareceu — disse Mister Dick — era... veja lá: mil seiscentos e quarenta e nove, a data da execução do rei Carlos. Creio que o senhor disse bem mil seiscentos e quarenta e nove, não disse?

— Sim, senhor.

— Eu não compreendo nada — disse Mister Dick perturbadíssimo e meneando a cabeça — não creio que eu possa ser assim tão velho.

— Então foi nesse ano que o tal homem apareceu, senhor Dick? — perguntei.

— Em verdade — disse Mister Dick — não vejo bem como isso pode ser, Trotwood. O senhor encontrou essa data na história?

— Sim, senhor.

— E a história não mente nunca? Que me diz? — arriscou-se a dizer Mister Dick num clarão de esperança.

— Oh! Céus! Não senhor, certamente que não — respondi eu no tom mais positivo. — Eu ainda era novo e inocente e já o acreditava.

— Não compreendo nada — prosseguiu Mister Dick meneando a cabeça. — Há qualquer coisa de oblíquo não sei aonde. Em todo o caso, pouco tempo depois que houve a inépcia de me instalarem na cabeça um pouco da perturbação existente na do rei Carlos, foi que esse homem apareceu pela primeira vez. Passeava eu com miss Trotwood depois do chá; era já de noite quando eu o vi ao pé de nossa casa.

— Andaria a passear? — perguntei eu.

— Se andaria a passear? — repetiu Mister Dick. — Vamos a ver se me lembro. N... ão, não; não andava a passear.

Perguntei, para mais depressa chegar ao fim, o que é que ele fazia.

— Mas ninguém o viu — disse Mister Dick — até ao momento em que se aproximou dela pelo lado de trás e lhe disse qualquer coisa ao ouvido. Então ela voltou-se e depois sentiu-se mal; eu parei para o ver e ele retirou-se; mas o que há de mais extraordinário é que é preciso que ele se tivesse escondido... pela terra dentro ou não sei por onde!

— E esteve escondido desde então? — perguntei.

— Com certeza — replicou Mister Dick meneando gravemente a cabeça. — Nunca mais reapareceu até ontem à noite. Andávamos a passear, quando ele se aproximou de novo, por trás dela; reconheci-o bem.

— E minha tia, teve ainda medo dele?

— Começou a tremer — disse Mister Dick imitando-lhe o movimento e fazendo bater os dentes. — Encostou-se à paliçada e chorou. Mas venha cá, Trotwood.

Fez-me aproximar muito perto de si para me dizer baixinho:

— Porque é que ela lhe deu dinheiro à luz do luar, meu rapaz?

— Era talvez algum mendigo...

Mister Dick meneou a cabeça para repelir absolutamente essa suposição e, depois de ter repetido diversas vezes no tom mais positivo: «Não era um mendigo, não era um mendigo», acabou por me contar que vira mais tarde, da janela, quando já a noite ia alta, minha tia dar dinheiro à luz do luar, a esse tal homem que estava fora da grade do jardim e que ele então se afastara; que talvez se sumisse pela terra dentro, era muito provável, mas o que havia de seguro, é que nunca mais foi visto; quanto a minha tia, regressou muito depressa a casa, pé ante pé; e no dia seguinte, de manhã, não tinha a cara do costume, o que perturbava muito o espírito de Mister Dick.

Quando Mister Dick me principiou a contar isto eu não tinha a menor ideia que fosse outra coisa senão uma fantasia da sua imaginação, exactamente como esse desgraçado príncipe que lhe causava tantos desgostos; mas, após algumas reflexões, cheguei a perguntar a mim mesmo se, porventura, não se fizera a tentativa ou a ameaça de raptar o pobre Mister Dick à protecção de minha tia e se, fiel a essa afeição por ele que ela própria me contara, não seria obrigada a comprar por dinheiro, a paz e o repouso do seu protegido. Como eu já tinha um grande fundo de afecto por Mister Dick e consagrava muito interesse à sua felicidade, o receio que eu próprio tinha de o perder fez-me acolher de mais boa vontade essa suposição e durante muito tempo, a quarta-feira em que ele devia vir, encontrava-me inquieto, por saber se ele viria na imperial, como de ordinário. Mas eram infundados alarmes, porque descobria sempre de longe os seus cabelos grisalhos, o seu rosto radioso, o seu sorriso alegre e nunca mais me informou de nada acerca do homem que possuía a faculdade rara de causar medo a minha tia.

As quartas-feiras eram os dias mais felizes da vida de Mister Dick e não eram os menos felizes para mim. Ele não tardou a travar conhecimento com todos os meus camaradas e conquanto nunca tomasse parte activa em outro qualquer passatempo que não fosse o do papagaio, consagrava tanto interesse como nós a todos os nossos divertimentos. Quantas vezes eu o vi tão absorvido com uma partida de jogo da bola, ou de jogo de pião, não cessando de examinar tudo com o mais profundo interesse, sem poder mesmo respirar nos momentos críticos! Quantas vezes o vi, sobre uma pequena eminência, vigiar de lá todo o campo de acção aonde estávamos a jogar e agitar o chapéu, completamente esquecido da cabeça do rei Carlos, o mártir e de toda a sua malfadada história! Quantas horas o vi passar, como se fossem bem-aventurados minutos, a ver, de Verão, uma grande partida de barras! Quantas vezes o vi, de Inverno, com o nariz vermelho da neve e do vento leste, ao pé de um lago, a vernos patinar, enquanto no seu entusiasmo dava palmas com as mãos agasalhadas em luvas de lã!

Todos gostávamos dele e era incomparável a sua habilidade para pequenas coisas. Sabia cortar laranjas de cem maneiras diferentes; fazia barcos dos materiais mais estranhos; sabia fazer peões para o xadrez dum osso de costeleta, carros antigos de velhas cartas de jogar, com rodas de carrinhos de algodão e gaiolas para pássaros de velhos bocados de arame; mas no que mais se distinguia era quando exercia o seu talento com bocados de palha ou de fio; estávamos todos convencidos de que não lhe faltaria muito para executar todas as obras que pode produzir a mão do homem.

A fama de Mister Dick chegara até mais longe. Ao fim de algumas visitas, o próprio doutor Strong fez-me algumas perguntas a seu respeito e eu disse-lhe tudo quanto minha tia me tinha contado. O doutor tomou tal interesse por essas minudências que me pediu para lho apresentar na primeira visita. Efectuada essa cerimónia, o doutor pediu a Mister Dick que fosse para os seus aposentos todas as vezes que não me encontrasse no escritório da diligência e que ali descansasse enquanto esperava que acabasse a aula. De sorte que Mister Dick habituou-se a ir direito ao colégio e quando ainda estávamos na aula, o que muitas vezes sucedia às quartas-feiras, esperava-me passeando no pátio. Foi lá que ganhou conhecimento com a jovem esposa do doutor, mais pálida, menos alegre e mais retirada que dantes, mas que nada tinha perdido da sua beleza; e foi-se familiarizando pouco a pouco, a ponto de entrar para a aula e esperar até que acabassem as lições. Sentava-se sempre no mesmo sítio, num banco certo a que já chamavam Dick como ele e ali se deixava estar, inclinando para a frente a sua cabeça grisalha e ouvindo atentamente as lições com uma profunda admiração por essa instrução que nunca pudera adquirir.

Mister Dick repartia uma parte dessa veneração pelo doutor que ele considerava como o filósofo mais profundo e o mais subtil de toda a série das idades. Decorreu muito tempo antes que ele pudesse decidir-se a falar-lhe de outra maneira que não fosse de cabeça descoberta e mesmo quando o doutor contraiu para com ele uma verdadeira amizade e que os seus passeios duraram horas inteiras, de cá para lá no pátio, de um certo lado que nós chamávamos, o passeio do doutor, Mister Dick tirava de tempos a tempos o chapéu para testemunhar o seu respeito por tanta sabedoria e ciência. Não sei porque acaso durante esses passeios o doutor começou a ler-lhe alto fragmentos do famoso dicionário; talvez pensasse logo que o mesmo valeria lê-los sozinho. Em todo o caso, este hábito fazia a felicidade de Mister Dick que escutava com um rosto radiante de orgulho e de prazer e que ficou convencido no fundo do seu coração de que o dicionário era efectivamente o livro mais encantador do mundo.

Quando penso nesses passeios diante das janelas da sala da aula; no doutor a ler com um sorriso de complacência e acompanhando a sua leitura com um grave movimento de cabeça ou com um gesto explicativo; quando penso em Mister Dick escutando com o mais profundo interesse enquanto a sua pobre cabeça errava sabe Deus por onde, nas asas das grandes palavras do dicionário, essa recordação representa para mim um dos mais pacíficos e mais doces espectáculos que jamais tenho contemplado. Parece-me que se eles pudessem passear eternamente assim, o mundo não teria sido mais mau e que milhares de coisas com as quais se faz muito ruído não valem os passeios de Mister Dick e do doutor, tanto para mim como para os outros.

Inês não tardou a tornar-se uma das amigas de Mister Dick e como ele ia muitas vezes a casa dela, também travou conhecimento com Uriah. A amizade que existia entre mim e o amigo de minha tia, ia crescendo sempre, mas as relações entre nós ambos eram extraordinárias: Mister Dick, que era nominalmente meu tutor e que vinha ver-me nessa qualidade, consultava-me sempre acerca de questiúnculas com que se via atrapalhado e guiava-se infalivelmente pelo meu conselho, aumentando muito o seu respeito pela minha sagacidade natural, convencido como estava de que eu me parecia muito com minha tia.

Uma quinta-feira de manhã, no momento em que eu ia acompanhar Mister Dick do hotel ao escritório da diligência, antes de regressar ao colégio, porque tínhamos uma hora de aula antes do almoço, encontrei na rua Uriah, que me lembrou a promessa que lhe tinha feito de ir um dia tomar chá com ele a casa de sua mãe acrescentando com um gesto de modéstia:

— Conquanto, para falar verdade, eu nunca esperasse que cumprisse a sua palavra, senhor Copperfield. Nós estamos numa situação tão humilde!

Eu não tinha ainda pensado no caso de saber se Uriah me agradava ou se me repugnava e hesitava ainda quando com ele estava na rua; mas tomava com afronta a ideia de que pudessem acusar-me de orgulhoso e disse-lhe que só tinha correspondido a um convite.

— Oh! Se é só por isso, senhor Copperfield — disse Uriah — e se não é realmente a nossa situação que detém, quer ir a minha casa esta tarde? Mas se é por causa da nossa humilde situação, espero que não se incomodará a dizer-mo, senhor Copperfield, nós não temos ilusões acerca da nossa condição.

Respondi que havia de falar a Mister Wickfield e no caso dele não achar inconveniente, como esperava, iria com todo o gosto. Assim, pois, nessa tarde, às seis horas, como o escritório devia fechar cedo, anuncie a Uriah que estava pronto.

— Minha mãe vai orgulhar-se — disse ele, enquanto caminhávamos juntos. — Isto é, orgulhar-se-ia se não fosse um pecado, senhor Copperfield.

— Todavia, o senhor não hesitou em me julgar capaz de tal pecado, hoje de manhã! — objectei eu.

— Oh! Não, senhor Copperfield! — replicou Uriah. — Oh! Não, esteja certo! Nunca na minha cabeça entrou tal pensamento! Eu nunca o acusaria de orgulhoso por ter pensado que estávamos numa situação bastante humilde para o senhor, porque realmente a nossa posição é tão baixa!

— Tem estudado muito direito ultimamente? — perguntei, para mudar de assunto.

— Oh! Senhor Copperfield — disse ele com um ar de modéstia — as minhas leituras mal podem chamar-se estudos. Passo algumas vezes uma hora ou duas por noite com Mister Tidd.

— É um pouco fatigante, suponho — disse-lhe eu.

— Algumas vezes é um pouco fatigante para mim — respondeu Uriah. — Mas não sei se sucederia o mesmo com uma pessoa que tivesse melhores meios do que eu.

Depois de ter executado com a mão direita uma pequena ária no queixo com os seus dois dedos de esqueleto, acrescentou:

— Há expressões, sabe, senhor Copperfield, palavras e termos latinos que se encontram em Mister Tidd e que são muito embaraçosas para um leitor de uma instrução tão modesta como a minha.

— Gostaria de aprender latim? — disse-lhe vivamente. — Eu poderia dar-lhe lições à medida que o vou estudando.

— Oh! Obrigado, senhor Copperfield — respondeu ele meneando a cabeça. — É na realidade muito bom em me fazer esse oferecimento, mas eu sou muito humilde para o aceitar.

— Que loucura, Uriah!

— Oh! Perdoe-me, senhor Copperfield. Agradeço-lhe infinitamente e teria nisso muito gosto, asseguro-lhe, mas sou muito humilde para isso. Já há muita gente disposta a atormentar-me com a minha situação inferior, para que eu vá melindrá-la ainda mais tornando-me um sábio. A instrução não se fez para mim. Na minha posição, mais vale não aspirar a subir muito alto. Para avançar na vida, é preciso que eu caminhe humildemente, senhor Copperfield.

Nunca tinha visto a boca dele tão aberta, nem as rugas da sua face tão cavadas, como no momento em que ele me enunciava este princípio, meneando a cabeça e contorcendo-se modestamente.

— Creio que faz mal, Uriah. Estou certo de que há coisas que eu poderia ensinar-lhe, se tivesse vontade de as aprender.

— Oh! Não duvido nada, senhor Copperfield — respondeu ele. — Mas como o senhor não se vê em humilde situação, não pode talvez julgar dos que nela se vêem. Não tenho desejo de insultar com a minha instrução os que estão colocados mais alto do que eu; sou muito humilde para isso... Mas eis-nos chegados à minha humilde casa, senhor Copperfield!

Entrámos logo num aposento ao rés-do-chão, ornamentado à moda antiga e aí encontrámos Mistress Heep, o verdadeiro retrato de Uriah, mas um pouco mais baixa. Recebeu-me com a maior humildade e pediu-me perdão por ter beijado o filho.

— Mas veja, senhor — disse ela — por mais pobres que sejamos, temos um pelo outro um afecto natural que não faz mal a ninguém, espero.

O aposento não era perfeitamente uma sala, nem perfeitamente uma cozinha, mas tinha uma aparência decente, sentindo-se unicamente que faltava ali qualquer coisa que o tornasse agradável. Havia uma cómoda com uma escrivaninha em cima, aonde Uriah lia ou escrevia à noite. Lá estava a saca azul de Uriah toda cheia de papelada. Vi uma série de livros, que lhe pertenciam, à frente dos quais reconheci o de que era autor Mister Tidd. Havia uma mesa de jantar a um canto, com os móveis indispensáveis. Não me lembro que estes objectos, vistos um por um, tivessem aspecto miserável nem que dessem a nota de penúria e de economia, mas recordo-me de que, no conjunto, o aposento deixava essa impressão.

O luto perpétuo que assinalava a viuvez de Mistress Heep, fazia, sem dúvida, parte da sua humildade. Apesar do tempo que decorrera desde a morte de Mister Heep, trajava sempre de preto. Creio bem que havia alguma modificação na touca, mas, quanto ao resto, o luto era tão rigoroso como no primeiro dia em que enviuvara.

— É um dia memorável para nós, meu caro Uriah — disse Mistress Heep fazendo o chá — este em que Mister Copperfield nos faz a sua visita. Se eu pudesse, Uriah, fazer com que seu pai permanecesse mais tempo neste mundo, fá-lo-ia só para que ele pudesse receber hoje connosco Mister Copperfield.

— Eu estava certo de que minha mãe não deixaria de falar nisso — objectou o filho.

Constrangiam-me um pouco estes cumprimentos, mas no fundo lisonjeava-me ver que me tratassem como a hóspede respeitado e achei Mistress Heep amabilíssima.

— O meu Uriah há muito que esperava por esta honra, senhor — disse Mistress Heep. — Ele receava que a nossa humilde situação, fosse um obstáculo a isso e eu receava-o igualmente, porque estamos, estivemos e estaremos sempre numa situação muito humilde.

— Não vejo razão para tal, minha senhora, a menos que não seja isso do seu agrado.

— Obrigado, senhor — replicou Mistress Heep. — Conhecemos a nossa posição e mais reconhecidos lhe ficámos por isso.

Daí a pouco vi Mistress Heep aproximar-se timidamente de mim, enquanto Uriah se sentava na minha frente e começaram a oferecer-me, com grande respeito, os bocados mais especiais que se encontravam sobre a mesa; deve dizer-se que não havia nada de mais especial, mas tomei a intenção pelo facto e senti-me emocionado com as suas atenções. Caindo a conversação sobre as tias, falei-lhes naturalmente da minha; depois chegou a vez dos papás e das mamãs e falei de meus pães; em seguida Mistress Heep pôs-se a contar histórias de padrastos e eu comecei a falar do meu, mas não continuei, porque minha tia tinha-me aconselhado a que guardasse silêncio sobre tal assunto. Em resumo: uma pobre rolhinha de tenra idade não teria mais probabilidades de resistir a dois saca-rolhas, ou um pobre dentinho de leite, de lutar contra dois dentistas, ou um pequeno volante contra duas raquetas, do que eu tinha de escapar aos assaltos combinados de Uriah e de Mistress Heep. Faziam de mim o que queriam, obrigavam-me a dizer coisas em que eu não tinha a menor tenção de falar e coro de dizer que eles acertavam com tanta mais certeza, quanto é verdade que, na minha ingenuidade infantil, eu achava-me honrado com essas conversas confidenciais e considerava-me como o patrono dos meus dois respeitosos hospedeiros.

Amavam-se muito, era um facto seguro e averiguado e havia nisso uma feição natural que não deixava de operar sobre mim; mas a natureza era bem coadjuvada pela arte. Era de ver a habilidade com que o filho ou a mãe reatava o fio do assunto que o outro lançava em discussão e como conseguiam o que queriam da minha inocência. Quando viram que nada mais havia que tirar de mim a meu respeito (porque não dei pio acerca da minha vida na casa Murdstone & Grinby e acerca da minha viagem), dirigiram a conversação sobre Mister Wickfield e Inês. Uriah atirava a bola a Mistress Heep; Mistress Heep apanhava-a e tornava-a a atirar a Uriah; Uriah conservava-a por um momento e reenviava-a a Mistress Heep e este manejo perturbou-me dentro em pouco tão completamente que eu já não sabia de que freguesia era. Por outro lado, a bola mudava de rumo. Ora se tratava de Mister Wickfield, ora de Inês.

Fazia-se alusão às virtudes de Mister Wickfield, depois à minha admiração por Inês. Falava-se um momento da extensão dos negócios ou da fortuna de Mister Wickfield, e, passado um instante, do que fazíamos depois de jantar. Em seguida tratava-se do vinho que bebia Mister Wickfield, do motivo que o levava a beber; ah! Que grande pena que era! Enfim, ora de uma coisa, ora de outra, ou de tudo ao mesmo tempo e entrementes, sem a aparência de falar muito nisso, nem de fazer outra coisa que não fosse animá-los às vezes um pouco para evitar que estivessem atormentados pelo sentimento da sua humildade e pela honra da minha companhia, eu percebia a cada instante que deixava escapar alguma minudência que não precisava de confiar-lhes e via o efeito sobre as delgadas narinas de Uriah, que se enrugavam com delícia ao canto do nariz.

Eu começava a sentir-me bastante aborrecido e desejava pôr termo a essa visita, quando uma pessoa que descia a rua passou por junto da porta, que estava aberta para arejar o aposento (fazia calor e o tempo estava pesado para a estação), depois voltou atrás, olhou e entrou, exclamando:

— Copperfield! Será possível!

Era Mister Micawber! Mister Micawber, com a sua luneta, a sua bengala, o seu colarinho largo, o seu ar elegante e o seu tom de condescendência; nada lhe faltava!

— Meu caro Copperfield — disse Mister Micawber, estendendo-me a mão — ora aqui está um encontro talhado para imprimir ao espírito um sentimento profundo da instabilidade e da incerteza das coisas humanas... numa palavra, é um encontro muito extraordinário; andava eu a passear na rua reflectindo na possibilidade da boa sorte me favorecer, porque é um ponto sobre o qual tenho algumas esperanças por agora e eis que justamente me encontro cara a cara com um jovem amigo que tão caro me é e cuja recordação se liga à da época mais importante da minha vida, da que decidiu da minha existência, posso dizer. Copperfield, meu caro amigo, como está?

Não pude dizer, de forma alguma, não pude dizer realmente, em consciência, que ficasse satisfeito por Mister Micawber me encontrar em tal lugar; mas, no fim de contas, sempre estimei vê-lo e apertei-lhe a mão cordialmente, perguntando-lhe por Mistress Micawber.

— Mas — disse Mister Micawber, fazendo um gesto com a mão, como dantes, e metendo o queixo dentro do colarinho — ela está quase restabelecida. Os gémeos já não tiram a sua subsistência das fontes da natureza; numa palavra — disse Mister Micawber, num dos seus impulsos de confiança — já não se amamentam e Mistress Micawber acompanha-me actualmente nas minhas viagens. Ela há-de estimar imenso, Copperfield, o reatar relações com um mancebo que se mostrou, sob todos os aspectos, um digno ministro do altar sagrado da amizade.

Eu disse-lhe que, por minha parte, me daria por muito feliz em a ver.

— O senhor é muito bondoso — disse Mister Micawber.

E, sorrindo-se, meteu de novo o queixo no colarinho e lançou os olhos em torno de si.

— Já que tornei a encontrar o meu amigo Copperfield — disse ele, sem se dirigir a alguém em particular — não solitário, mas ocupado a tomar parte numa refeição com uma senhora viúva e um mancebo que parece ser o seu pimpolho... em suma, seu filho, (isto foi dito num novo impulso de confiança), considerarei como uma honra ser-lhes apresentado.

Eu não podia proceder de outra maneira, nesta conjuntura, senão apresentar Mister Micawber a Uriah Heep e a sua mãe e desempenhei-me desse dever. Em consequência da humildade das suas maneiras, Mister Micawber sentou-se e teve um gesto da aparência mais cortês.

— Os amigos do meu amigo Copperfield — disse Mister Micawber — meus amigos são.

— Não temos a audácia, senhor — disse Mistress Heep — de ousarmos pretender ser amigos de Mister Copperfield. Ele foi unicamente muito bondoso em vir tomar o chá connosco e somos-lhe muito gratos pela honra da sua companhia, como também lhe agradecemos, senhor, a atenção que se dignou ter connosco.

— É muito bondosa, minha senhora — disse Mister Micawber, cumprimentando-a. — E o que é que faz agora, Copperfield? Ainda se emprega no negócio de vinhos?

Eu estava com muita pressa de levar dali para fora Mister Micawber e estou certo de que respondi, já de chapéu na mão e corando muito, que era discípulo do doutor Strong.

— Discípulo! — disse Mister Micawber alteando as sobrancelhas. — Estou encantado com o que me diz. Conquanto um espírito como o do meu amigo Copperfield não demande toda a cultura que lhe seria precisa, se não possuísse, como possui, todo o conhecimento dos homens e das coisas — continuou ele, dirigindo-se a Uriah e a Mistress Heep — nem por isso deixa de ser um terreno rico para cultivar e de uma fertilidade oculta; numa palavra — disse Mister Micawber, sorrindo, num novo acesso de confiança — é uma inteligência capaz de adquirir uma instrução clássica do mais alto grau.

Uriah, esfregando vagarosamente as compridas mãos, teve um movimento de busto para exprimir que partilhava dessa opinião.

— Se quiser, vamos ver Mistress Micawber — atalhei eu, na esperança de arrastar Mister Micawber.

— Se quiser dar-lhe esse prazer, Copperfield — replicou ele levantando-se. — Não tenho escrúpulo em dizer diante dos nossos amigos aqui presentes que há muitos anos venho lutando com dificuldades pecuniárias (eu tinha a certeza de que ele havia de dizer alguma coisa desse género, pois nunca deixava de se gabar do que ele chamava as suas dificuldades); umas vezes pude triunfar das minhas dificuldades, outras vezes as minhas dificuldades... numa palavra, triunfaram de mim. Momentos houve em que eu lhes resisti de frente e outros em que tive de ceder ao número e em que disse a Mistress Micawber na linguagem de Catão: «Platão, tu raciocinas maravilhosamente, está tudo acabado, não lutarei mais»; mas em nenhuma época da minha vida — disse Mister Micawber — gozei um maior grau de satisfação do que quando pude desabafar os meus pesares, se assim posso chamar a dificuldades provenientes de penhoras, de letras e de protestos, no coração do meu amigo Copperfield.

Quando Mister Micawber acabou de me dar esse glorioso testemunho, acrescentou «Boa tarde, senhor Heep» e saiu comigo com o ar mais elegante, fazendo retinir as pedras debaixo dos tacões das botas e, de passo, trauteando uma ária.

A estalagem em que se hospedava Mister Micawber era pequena e o quarto que ocupava também não era grande; separava-se por um tabique da sala comum e cheirava muito a tabaco. Creio que devia ficar por cima da cozinha, porque de tempos a tempos subia pelas frinchas do soalho um fumo de gordura queimada que ressumava pelas paredes mal cheirosas. Devia também ficar próximo do balcão, porque andava no ar um cheiro a misturas de aguardentes e ouvia-se o tinir de copos. Aí, estendida num pequeno canapé, por baixo de uma gravura representando um cavalo de corridas, com a cabeça junto do fogão e os pés contra a mostardeira, que estava em cima de um aparador na outra extremidade do quarto, encontrava-se Mistress Micawber, à qual seu marido, que entrou primeiro, se dirigiu assim:

— Minha querida, permita que lhe apresente um discípulo do doutor Strong.

Notei de passagem que, por mais confusão que sempre existisse no espírito de Mister Micawber acerca da minha idade e da minha situação, nunca se esquecia de que eu era o discípulo do doutor Strong: era como que uma homenagem indirecta que prestava à distinção da minha posição no mundo.

Mistress Micawber ficou admirada, mas encantada por me ver. Eu próprio estava satisfeitíssimo por a tornar a ver, e, depois de uma troca de cumprimentos afectuosos, sentei-me no canapé ao lado dela.

— Minha querida — disse Mister Micawber — se quiser contar a Copperfield a situação actual, que ele estimará muito saber, creio bem, nesse meio tempo irei deitar uma vista de olhos pelo jornal, a ver se encontro qualquer coisa nos anúncios.

— Eu julgava que estivesse em Plymouth, minha senhora! — disse eu a Mistress Micawber, quando o marido saiu.

— Estivemos lá, efectivamente, meu caro senhor Copperfield — replicou ela.

— Para tomar posse de algum emprego? — prossegui eu.

— Precisamente — disse Mistress Micawber — para tomar posse de um emprego; mas o facto é que na alfândega não se precisa de um homem dotado de grandes faculdades. A influência local da minha família não podia ser-nos muito eficaz para procurar emprego na administração a um homem dotado das faculdades de Mister Micawber. Além disso, não lhe ocultarei, meu caro senhor Copperfield — continuou Mistress Micawber — que o ramo da minha família estabelecido em Plymouth, ao saber que eu acompanhava Mister Micawber com o pequeno Wilkins, sua irmã e os gémeos, não o recebeu com toda a cordialidade que seria de esperar, no momento em que acabava de sair da prisão. O facto é — ultimou Mistress Micawber baixando a voz — e isto fica aqui entre nós, que a nossa recepção foi um pouco fria.

— Deveras? — interroguei.

— É verdade! — disse Mistress Micawber. — É custoso considerar a humanidade sob este aspecto, senhor Copperfield, mas a recepção que nos fizeram era decididamente um pouco fria. Não há que duvidar. O facto é que o ramo da minha família estabelecido em Plymouth foi completamente incivil com Mister Micawber, antes que a nossa estada ali completasse sequer uma semana; eu não lhes ocultei o que pensava; disse-lhes que deviam envergonhar-se da forma como se portaram. Eis, portanto, o que se passou — continuou Mistress Micawber. — Em tais circunstâncias, que podia fazer um homem tão altivo como Mister Micawber? Havia apenas uma resolução a tomar: pedir emprestado a esse ramo da minha família o dinheiro necessário para regressarmos a Londres, custasse o que custasse.

— Então regressaram todos, minha senhora?

— Regressámos todos — respondeu Mistress Micawber. — Desde então, consultei outros ramos da minha família sobre a resolução que havia de se tomar para Mister Micawber, porque eu sustento que é preciso tomar uma resolução, senhor Copperfield — disse-me Mistress Micawber, como se eu lhe dissesse o contrário. — É claro que uma família composta de seis pessoas, sem contar com a criada, não pode sustentar-se de ar.

— Está visto, minha senhora — respondi eu.

— A opinião dos diversos ramos da minha família — continuou Mistress Micawber — é que Mister Micawber faria bem em voltar imediatamente a sua atenção para o lado do carvão.

— Para o lado de quê, minha senhora?

— Do carvão, o comércio do carvão — disse Mistress Micawber. — Mister Micawber foi levado a pensar, segundo as suas informações, que poderia haver probabilidades de êxito, para um homem capaz, no comércio de carvão do Medway. Então, Mister Micawber achou naturalmente que o primeiro passo a dar era ir ver o Medway. Foi para isso que nós viemos. Digo «nós», senhor Copperfield, porque nunca abandonarei Mister Micawber — acrescentou com vivacidade.

Murmurei algumas palavras de admiração e de aprovação.

— Viemos — repetiu Mistress Micawber — e vimos o Medway. A minha opinião sobre o comércio do carvão por esse rio é que é preciso talvez capacidade, mas que é preciso com certeza capitães. Visitámos, creio, a maior parte do curso do Medway e foi a conclusão a que cheguei, segundo a minha opinião pessoal. Visto que estávamos tão perto, Mister Micawber achou que seria uma tolice não dar um passo mais para ver a catedral, primeiro porque nós nunca a tínhamos visto e porque vale a pena e depois porque havia muitas probabilidades de o favorecer uma boa sorte numa cidade que possui uma catedral. Achamo-nos aqui há três dias — continuou Mistress Micawber — e ainda não se apresentou essa boa sorte. O senhor admirar-se-á menos do que um estranho, meu caro senhor Copperfield, se souber que estamos aqui à espera de dinheiro de Londres para saldarmos a nossa conta neste hotel. Até à chegada dessa quantia — disse Mistress Micawber com muita emoção — estou privada de regressar a minha casa (quero dizer, ao nosso quarto mobilado de Pentonville) e de tornar a ver meu filho, minha filha e os meus gémeos.

Eu sentia a mais viva simpatia por Mister e Mistress Micawber nestas circunstâncias difíceis e disse-o a Mister Micawber, que acabava de entrar, acrescentando que eu somente lamentava não ter bastante dinheiro para lhes emprestar a quantia necessária. A resposta de Mister Micawber indicava a agitação do seu espírito. Disse-me, ao dar-me um aperto de mão:

— Copperfield, o senhor é um verdadeiro amigo, mas tomando as coisas pelo pior, um homem que possui uma navalha de barba tem sempre à mão um amigo.

A esta terrível ideia, Mistress Micawber abraçou Mister Micawber, conjurando-o para que se tranquilizasse. Ele chorou, mas por pouco tempo, porque um momento depois chamou pelo criado para lhe encomendar rins no espeto e camarões para o almoço do dia seguinte.

Quando me despedi, ambos instaram tão vivamente para ir jantar com eles antes de partirem, que me foi impossível recusar. Mas como sabia que não poderia ir no dia seguinte e que teria muitos temas a preparar de tarde, combinou-se que Mister Micawber iria a casa do doutor Strong (ele estava convencido de que os fundos que esperava de Londres deviam chegar-lhe nesse dia) e propor-me-ia que fosse no dia imediato, se isso me conviesse mais. Em consequência disso, vieram chamar-me à aula na tarde seguinte e encontrei Mister Micawber na sala, aonde me disse que me esperava para jantar, como estava combinado. Quando lhe perguntei se tinha chegado o dinheiro, deu-me um aperto de mão e desapareceu.

Olhando nessa tarde pela janela, fiquei um tanto surpreendido e um pouco inquieto ao ver passar Mister Micawber dando o braço a Uriah Heep, que parecia sentir com uma profunda humildade a honra que recebia, enquanto Mister Micawber se comprazia em estender sobre ele uma mão protectora. Mas mais surpreendido fiquei ainda quando fui à hospedaria, às quatro horas (era a hora marcada) e soube que Mister Micawber tinha ido a casa de Uriah e que tomara um grog de aguardente que lhe oferecera Mistress Heep.

— Dir-lhe-ei uma coisa, meu caro Copperfield — disse-me Mister Micawber — o seu amigo Heep é um rapaz que daria um bom advogado geral. Se eu o tivesse conhecido na época em que as minhas dificuldades acabaram por uma crise, tudo o que posso dizer é que creio que as minhas dificuldades com os meus credores teriam sido muito melhor encaminhadas do que foram.

Eu não compreendia bem como isso seria possível, atendendo a que Mister Micawber não tinha pago nada, mas não queria fazer perguntas. Não me atrevia também a dizer-lhe que esperava que não tivesse sido comunicativo com Uriah, nem a perguntar-lhe se tinham falado muito de mim. Eu receava melindrar Mister Micawber, ou, antes, Mistress Micawber, que era muito susceptível. Mas tal ideia inquietava-me e nisso pensei muito depois.

O jantar era soberbo: um belo prato de peixe, um traço de vitela assada com rim, salsichas, uma perdiz e um pudim; havia vinho e ale e depois de jantar, Mistress Micawber preparou por suas próprias mãos uma taça de punch.

Mister Micawber estava extremamente alegre. Raras vezes o vi de tão bom humor. Bebeu tanto punch que a cara reluzia-lhe como se estivesse envernizada. Tomou um tom alegremente sentimental e propôs que se bebesse à prosperidade da cidade de Canterbury, declarando que nela tinha sido muito feliz bem como Mistress Micawber e que nunca esqueceria as agradáveis horas que ali tinha passado. Fez-me em seguida uma saúde; depois Mistress Micawber, ele e eu recordámos as nossas antigas relações, entre outras a venda de tudo quanto possuíam. Então eu propus beber-se à saúde de Mistress Micawber; pelo menos eu disse singelamente: «Se me dá licença, Mistress Micawber, terei agora o prazer de beber à sua saúde, minha senhora». Com o que Mister Micawber começou um elogio pomposo de Mistress Micawber, declarando que ela tinha sido para ele um guia, um filósofo e uma amiga e que me aconselhava, quando me encontrasse em idade de me casar, de desposar uma mulher como ela, se por acaso a houvesse.

À medida que o punch diminuía, Mister Micawber tornava-se cada vez mais alegre; Mistress Micawber cedendo à mesma influência, pôs-se a cantar. Numa palavra, nunca vi pessoa mais alegre que Mister Micawber nessa tarde até ao último momento da minha visita. Despedi-me dele e de sua amável esposa muito afectuosamente. Por consequência não supunha receber, no dia seguinte às sete horas da manhã, a seguinte carta datada da véspera às nove horas e meia, um quarto de hora depois da nossa separação:

Meu caro e jovem amigo.

Continua o enguiço, está tudo acabado. Escondendo sob a máscara de uma alegria fictícia a desolação causada pelos cuidados, não lhe disse esta noite que não há esperanças de receber dinheiro de Londres. Nestas circunstâncias igualmente humilhantes de suportar, de contemplar e de descrever, saldei as minhas dívidas com este estabelecimento por meio de uma letra a pagar a quinze dias de vista na minha residência de Pentonville, Londres. Quando ma apresentarem, não será paga. A minha ruína está no fim. Vai estalar o raio e a árvore vai ser deitada a terra.

Sirva-lhe de aviso em toda a sua vida, meu caro Copperfield, o desgraçado que lhe escreve. Dirigindo-lhe esta carta não tem ele outra intenção, outra esperança. Se ao menos pudesse lisonjear-se de lhe prestar um serviço, um clarão de alegria poderia, talvez, penetrar-lhe no sombrio torreão da existência que lhe resta a sustentar ainda, conquanto o prolongamento da sua vida (digo-lho confidencialmente) seja pelo menos muito problemático.

Esta é a última comunicação que para sempre receberá, meu caro Copperfield.

Do desditoso abandonado,

WILKINS MICAWBER

Eu fiquei tão perturbado pelo teor desta carta dilacerante, que corri logo à hospedaria, na intenção de lá entrar, ao ir para o colégio, a fim de tentar tranquilizar Mister Micawber com as minhas consolações. Mas a meio do caminho, encontrei a diligência de Londres; Mister e Mistress Micawber iam na imperial. Ele aparentemente tranquilo e feliz, sorria, escutando a mulher e comendo nozes que tirava de um saco de papel; enquanto se lhe via sair uma garrafa do bolso do lado. Não me viram e achei que, bem consideradas as coisas, mais valia que de mim não dessem fé. Com o espírito aliviado de um grande peso, segui por uma pequena rua que ia dar direita ao colégio e senti-me, afinal de contas, bastante satisfeito por terem partido, o que todavia não me impedia de consagrar muita amizade a ambos.

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