David Copperfield (1850)

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Obra do inglês Charles Dickens. Több

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XV - Recomeço

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Mister Dick e eu tornámo-nos dentro de pouco os melhores amigos do mundo, e quando ele acabava o seu trabalho diário saíamos muitas vezes juntos para deitarmos o grande papagaio. Ele trabalhava todos os dias muito tempo na sua memória, que não se adiantava nada, por mais que trabalhasse, pois que o rei Carlos vinha sempre intrometer-se-lhe, ora no princípio, ora no fim e como era preciso não se falar mais nisso, tornava-se ao princípio. A paciência e a coragem com que suportava estas contrariedades contínuas, a ideia vaga que tinha de que o rei Carlos I nada tinha que ver com aquilo, os fracos esforços que tentava para o expulsar e a teimosia com que esse monarca insistia em condenar a memória ao esquecimento, tudo isso me causou uma profunda impressão. Não sei o que Mister Dick contava fazer da memória, no caso de a acabar; creio que ele sabia tanto como eu onde tinha tenção de a mandar, ou os efeitos que esperava. Mas, de resto, não era preciso que se preocupasse com isso, porque se alguma coisa havia de certo sob a roda do sol, era que a memória nunca se acabaria.

Impressionava vê-lo com o seu papagaio, quando ele o fazia pairar nos ares a grande altura. O que ele me dissera, no quarto, acerca das esperanças que concebera dessa maneira de disseminar os factos expostos nos papéis que o cobriam e que não eram senão tiras sacrificadas de outra memória que abortou, podia bem preocupá-lo algumas vezes, mas vendo-se ao ar livre, em nada mais pensava. Só o preocupava estar a olhar para o papagaio que voava e largar o fio da maçaroca que tinha na mão. Nunca tinha o ar tão sereno como então. Eu dizia de mim para mim algumas vezes, quando me sentava ao pé dele à tarde, num montículo de relva e que o via seguir com os olhos os movimentos do papagaio nos ares, que o seu espírito saía então da sua confusão para se elevar com o seu brinquedo aos céus. Quando enrolava o fio e que o papagaio, descendo pouco a pouco, saía do horizonte iluminado pelo sol poente, para cair na terra como ferido de morte, parecia surgir pouco a pouco de um sonho e via-o apanhar o papagaio, depois olhar em volta com olhos esgazeados, como se tivessem caído ambos e eu tinha pena dele de todo o meu coração.

Os progressos que eu fazia na amizade e na intimidade de Mister Dick, em nada prejudicavam os que eu ganhava nas boas graças da sua fiel amiga, minha tia. Ao fim de algumas semanas ela tinha-me bastante afeição e para encurtar o nome de Trotwood que me dera, chamava-me Trot; e animou-me até a esperar que se continuasse como tinha começado, podia chegar a rivalizar no seu coração com minha irmã Betsy Trotwood.

— Trot — disse minha tia uma tarde, no momento em que, como de costume, traziam o tabuleiro de gamão para ela e Mister Dick — é preciso não esquecer a sua educação.

Era o meu único motivo de sobressalto e fiquei encantado com essa expansão.

— Gostaria de ir para um colégio de Canterbury?

Respondi que gostaria muito, tanto mais que ficava perto dela.

— Bem — disse minha tia — desejaria partir amanhã?

Não me era estranha a rapidez ordinária dos movimentos de minha tia, portanto não me surpreendeu essa resolução tão repentina e respondi que sim.

— Bem — repetiu minha tia. — Joaninha, há-de ir buscar o cavalo cinzento e o carrinho para amanhã às dez horas da manhã e trate de arranjar esta noite a roupa de Mister Trotwood.

Eu estava contentíssimo ao ouvir dar tal ordem, mas acusei-me de egoísmo, quando vi o seu efeito sobre Mister Dick que ficara muito abatido à perspectiva da nossa separação e que em consequência disso estava jogando tão mal, que depois de o ter avisado bastantes vezes batendo-lhe com o copo dos dados nas mãos, minha tia fechou o tabuleiro e declarou que não queria mais jogar com ele. Mas ao saber que eu viria a casa alguns sábados e que me poderia ir ver à terça-feira, tomou ânimo e fez votos de fazer para essas ocasiões um papagaio gigantesco, bem maior do que aquele com que nos divertíamos hoje. No dia seguinte, estava outra vez abatido e procurava consolar-se dando-me tudo quanto possuía em ouro e prata, mas minha tia interveio e as liberalidades foram reduzidas a uma dádiva de quatro xelins; à força de rogos, teve licença de a elevar a oito. Separámo-nos o mais afectuosamente, à porta do jardim e Mister Dick só entrou para casa quando nos perdeu de vista.

Minha tia, perfeitamente indiferente à opinião pública, guiou com mão de mestre o cavalo cinzento através de Douvres e conservava-se erecta na boleia como um cocheiro particular, seguindo com o olhar os mais pequenos movimentos do cavalo, decidida a não o deixar fazer a vontade fosse com que pretexto fosse. Quando chegámos a caminho plano, deu-lhe um pouco mais de rédea e deitando um olhar sobre as almofadas nas quais eu ia enterrado, perguntou-me se eu ia contente.

— Muito contente, minha tia, muito obrigado — disse eu.

Ela ficou tão satisfeita que, como não tinha as mãos livres para me testemunhar a sua alegria, afagou-me a cabeça com o cabo do chicote.

— O colégio tem muitos meninos, tia? — perguntei.

— Não sei — disse minha tia. — Vamos primeiro a casa de Mister Wickfield.

— É ele quem dirige o colégio? — perguntei.

— Não, Trot, ele é um agente de negócios.

Não pedi mais informações a respeito de Mister Wickfield, e como minha tia não me dissesse mais nada a conversa versou sobre outros assuntos, até ao momento em que chegámos a Canterbury. Era dia de feira e a minha tia custou-lhe muito fazer circular o cavalo cinzento por entre as carroças, os cestos, as pilhas de legumes e os montões de manteiga. Às vezes não era preciso mais que a grossura de um cabelo para que todo esse mostruário se esbarrondasse, o que nos valia discursos pouco lisonjeiros da parte da gente que nos rodeava; mas minha tia guiava sempre com a tranquilidade mais perfeita e creio que atravessaria com a mesma segurança um país inimigo.

Enfim parámos em frente de uma velha casa que saía do alinhamento da rua; as janelas do primeiro andar eram salientes e as vigas avançavam igualmente os seus topos esculturados por cima da calçada, de sorte que num momento perguntei eu de mim para mim se toda a casa não tinha curiosidade de se inclinar assim para diante a fim de ver o que se passava na rua até ao passeio. De resto, isso não a impedia de ser de um asseio distinto. O velho batente da porta em arco, brilhava como uma estrela, no meio das grinaldas e frutos esculpidos que a cercavam. Os degraus de pedra estavam tão lavados como se tivessem vestido roupa branca e todos os ângulos, cantos, esculturas, ornatos e pequenos vidros das velhas janelas, tudo isso era tão brilhante de asseio como a neve que cai nos montes.

Quando o carro parou à porta, descobri ao olhar para a casa um rosto cadavérico que apareceu um momento à janelinha de uma pequena torre, num dos ângulos da casa, depois desapareceu. Então a porta redonda abriu-se e tornei a ver a mesma cara. Era tão pálida como quando a tinha visto à janela, conquanto a sua tez fosse um pouco assinalada por muitas sardas que costumam ver-se na pele das pessoas ruivas e de facto o personagem era ruivo: podia ter quinze anos, ao que suponho, mas parecia ter muito mais idade; a fouce que lhe ceifara os cabelos tinha-lhos cortado rasos como o rastolho. De sobrancelhas nem raça; pestanas na mesma; os olhos de um vermelho escuro, tão desguarnecidos, tão descarnados que eu não podia explicar-me como pudesse dormir, assim a descoberto. Era alto de ombros, ossudo e anguloso, de uma apresentação decente, vestido de preto, com um bocado de gravata branca; o casaco abotoado até ao pescoço, uma mão tão comprida, tão magra, uma verdadeira mão de esqueleto, que atraiu a minha atenção, enquanto que, de pé à cabeça do pónei, passava a mão pelo queixo e olhava para nós que estávamos no carro.

Mister Wickfield está em casa, Uriah Heep? — perguntou minha tia.

Mister Wickfield está em casa, minha senhora; se quer ter o incómodo de entrar para aqui... — disse ele mostrando com a mão descarnada o aposento que queria designar.

Apeámo-nos, deixando Uriah Heep a tomar conta no cavalo; entrámos numa sala um pouco baixa, de forma oblonga que deitava para a rua; pela janela vi Uriah que soprava nas ventas do cavalo e depois cobria-as precipitadamente com a mão, como se fizesse um feitiço. Em frente do velho fogão viam-se dois retratos, um era o de um homem de cabelos grisalhos, mas que todavia não era velho; as sobrancelhas eram negras; olhava para papéis atados com uma fita encarnada. O outro era o de uma dama, cuja expressão de fisionomia era afável e séria; olhava para mim.

Creio que procurei com os olhos um retrato de Uriah, quando se abriu uma porta na outra extremidade do aposento; entrou um sujeito e eu ao vê-lo fui logo olhar para o retrato a ver se ele teria saído da sua moldura. Mas não, o retrato estava pacificamente no seu lugar; e quando o recém-vindo se aproximou da luz, vi que ele tinha mais idade do que quando se retratou.

Miss Betsy Trotwood — disse ele — faça favor de entrar. Eu estava ocupado quando a senhora chegou, há-de perdoar-me. Conhece a minha vida; sabe que não tenho senão um interesse no mundo.

Miss Betsy agradeceu-lhe e entrámos no seu gabinete que estava cheio como o de um agente de negócios, de papéis, de livros, de caixas de estanho, etc. Deitava sobre o jardim e era provido de um cofre forte de ferro, fixado na parede, justamente por cima do pano da chaminé, razão por que eu perguntava com os meus botões como é que os limpa-chaminés haviam de fazer para passar por trás dele, quando precisassem de limpar a chaminé.

— Muito bem, miss Trotwood — disse Mister Wickfield; porque eu logo descobri que era o dono da casa, que era advogado e que administrava as terras de um rico proprietário dos arredores —, que vento a trouxe por cá? É um bom vento, em todo o caso, creio bem?

— É, sim — respondeu minha tia — não vim para assuntos de justiça.

— Tem razão, minha senhora — disse Mister Wickfield — mais vale vir para outra qualquer coisa.

Os seus cabelos eram completamente brancos, conquanto as sobrancelhas fossem ainda pretas. O seu rosto era muito agradável, deve mesmo ter sido belo. Tinha um colorido de certo brilho que eu soubera, por mo dizer Peggotty, que só se alcançava com o uso do vinho do Porto e eu atribuía à mesma origem a entoação da sua voz e a sua visível nutrição.

Tinha uma maneira de vestir muito conveniente, um casaco azul, um colete de riscas e calças de nanquim; a camisa de peito pregueada e a gravata da Bretanha pareciam tão brancas e tão finas que lembravam à minha imaginação vagabunda, o pescoço de um cisne.

— Este é meu sobrinho — disse minha tia.

— Não sabia que tinha um sobrinho, miss Trotwood — disse Mister Wickfield.

— Quero dizer, meu segundo sobrinho — notou minha tia.

— Não sabia que tinha um segundo sobrinho, asseguro-lhe — continuou Mister Wickfield.

— Adoptei-o — disse minha tia com um gesto que indicava inquietar-se pouco com o que ele sabia ou não — e trouxe-o para cá a fim de o meter num colégio aonde seja bem ensinado e tratado. Diga-me aonde é que existe esse colégio e dê-me enfim todas as informações necessárias.

— Antes de arriscar um conselho — disse Mister Wickfield — dê-me licença: sabe a minha velha pergunta em todas as coisas, qual é o seu fim verdadeiro?

— Vá para o diabo! — exclamou minha tia. — Que necessidade tenho eu de procurar cinco pés ao gato? O meu fim é bem claro e bem simples: é tornar este pequeno feliz e útil.

— Ainda deve haver mais alguma coisa — disse Mister Wickfield, abanando a cabeça e sorrindo com ar de incredulidade.

— Que futilidades! — prosseguiu minha tia. — O senhor tem a pretensão de proceder sinceramente em tudo quanto faz; espero que não suponha que é a única pessoa que segue por um caminho recto neste mundo.

— Eu só tenho um único fito na minha vida, miss Trotwood; muita gente tem dez, vinte, cem; eu só tenho um, eis a diferença; mas estamos a afastar-nos da questão. A senhora pergunta-me qual é o melhor colégio? Seja qual for o seu fito, quer o melhor?

Minha tia fez com a cabeça um sinal de assentimento.

— Conheço perfeitamente um que vale mais que todos os outros — disse Mister Wickfield, reflectindo —, mas seu sobrinho não pode ser já admitido senão como externo.

— Porém, enquanto espera, não poderia morar noutra qualquer parte? — disse minha tia.

Mister Wickfield reconheceu que era possível. Depois de um momento de discussão, propôs levar minha tia a ir ver o colégio, a fim de que pudesse julgar por si própria; no regresso visitar-se-iam as casas em que ele pensava que se encontraria cama e mesa para mim. Minha tia aceitou a proposta e íamos a sair todos três, quando ele parou para me dizer:

— Mas o nosso amiguinho poderia ter alguns motivos para não querer acompanhar-nos. Eu creio que faríamos melhor deixá-lo aqui.

Minha tia parecia disposta a contestar a proposta; mas, para facilitar as coisas, eu disse que ficava a esperá-los em casa de Mister Wickfield, se assim lhes conviesse e voltei para o gabinete, onde tomei, para os esperar, outra vez posse da cadeira em que me tinha sentado quando cheguei.

Essa cadeira estava colocada em frente de um corredor estreito que deitava para o pequeno aposento redondo na janela do qual eu havia entrevisto o pálido rosto de Uriah Heep. Este, depois de ter levado o cavalo para uma estrebaria dos arredores, pusera-se a escrever numa banca e copiava um papel fixado num quadro de ferro suspenso sobre a banca. Conquanto estivesse voltado para o meu lado, julguei a princípio que ele transcrevia o que se encontrava entre mim e ele e que o impedia de me ver, mas olhando mais atentamente para esse lado, vi logo com um certo mau estar que os seus olhos penetrantes apareciam de tempos a tempos por baixo do manuscrito, como dois sóis inflamados e que me olhava furtivamente, pelo menos durante um minuto, não obstante ouvir-se-lhe correr a pena sobre o papel, tão depressa como de ordinário. Tentei por diversas vezes fugir aos seus olhares: subi a uma cadeira para ver um mapa colocado no outro lado do aposento; absorvi-me na leitura do jornal do condado, mas os seus olhos atraiam-me sempre e de todas as vezes que eu lançava um olhar sobre esses dois sóis ardentes, estava certo de os, ver imediatamente ou no nascente ou no ocaso.

Enfim, após uma ausência bastante demorada, reapareceram minha tia e Mister Wickfield, com grande alívio meu. O resultado das suas investigações não era tão satisfatório como o poderiam desejar, porque se eram incontestáveis as vantagens que o colégio oferecia, minha tia não estava igualmente satisfeita com as casas aonde eu me poderia alojar.

— É muito desagradável — disse ela. — Não sei que fazer, Trot.

— É efectivamente muito desagradável — disse Mister Wickfield —, mas vou dizer-lhe o que se poderia fazer, miss Trotwood.

— O que é? — disse minha tia.

— Deixe seu sobrinho em minha casa por agora. É um pequeno sossegado; não me incomodará nada. A casa é boa para estudar; é tão silenciosa e quase tão espaçosa como um convento. Deixe-o cá.

A proposta era evidentemente do gosto de minha tia, mas hesitava em a aceitar, por delicadeza. Eu, igualmente.

— Vamos, miss Trotwood — disse Mister Wickfield — não há outro meio de remediar a dificuldade. Bem sabe que é somente uma colocação temporária. Se não calhar, se nos incomodar a uns e outros, é sempre tempo de desistir e no intervalo poderemos achar qualquer coisa que mais convenha. Mas, presentemente, nada tem melhor a fazer do que deixá-lo aqui.

— Estou-lhe muito reconhecida — disse minha tia — e vejo que ele também o está, mas...

— Vamos! Bem sei o que quer dizer — exclamou Mister Wickfield. — Não quero coagi-la a aceitar de mim favores, miss Trotwood; a senhora pagará a pensão, se quiser. Não regatearemos o preço, mas pagará, se quiser.

— Essa condição — disse minha tia — sem diminuir em nada o meu reconhecimento pelo serviço que me presta, põe-me mais à vontade; fico satisfeitíssima por deixar meu sobrinho em sua casa.

— Então venha ver a minha mulherzinha de casa — disse Mister Wickfield.

Subimos uma velha escadaria de carvalho, com um corrimão tão largo que facilmente se poderia andar por cima dele e entrámos numa velha sala um pouco escura, a que davam luz três ou quatro das exóticas janelas que eu tinha notado da rua. Nos vãos havia assentos de carvalho, que pareciam provir das mesmas árvores que o pavimento encerado e as grandes traves do tecto. O aposento estava lindamente mobilado com um piano e um móvel brilhante, verde e vermelho; havia flores nos vasos. Não se viam senão cantos e recantos, guarnecidos cada um por uma pequena mesa, um contador, uma poltrona ou uma estante, tão bem que eu dizia com os meus botões, a todo o momento, que não havia na sala outro canto tão encantador como aquele em que eu me encontrava e um momento depois descobria outro mais agradável ainda. O salão tinha o cunho de repouso e de distinto asseio que caracterizava o exterior da casa.

Mister Wickfield bateu a uma porta envidraçada praticada num canto do aposento artesonado e uma menina quase da minha idade apareceu logo e beijou-o. Reconheci imediatamente no seu rosto a expressão doce e serena da dama cujo retrato me impressionou no rés-do-chão. Parecia-me na minha imaginação que era o retrato que tinha crescido de maneira a tornar-se mulher, mas que o original tinha permanecido criança. Tinha o ar alegre e feliz, o que não impedia que o seu rosto e as suas maneiras respirassem uma tranquilidade de alma, uma serenidade que nunca esqueci e que nunca esquecerei.

— Aqui está — disse Mister Wickfield — a minha governante, minha filha Inês.

Quando ouvi o tom com que ele pronunciava estas palavras, quando vi a maneira como ele lhe pegava na mão, compreendi que ela é que era o único fito da sua vida.

Pendia-lhe ao lado um cestinho em miniatura, aonde guardava um molho de chaves e tinha o ar duma dona de casa bastante grave e bastante entendida para governar essa velha habitação. Escutou com um ar de interesse o que seu pai de mim lhe disse e quando ele acabou, propôs a minha tia que subisse com ela para ver o meu quarto. Fomos todos juntos; indicou-nos o caminho e abriu a porta de um vasto aposento: um magnífico quarto a valer, com as suas traves de velho carvalho, como o resto e os seus pequenos ladrilhos facetados e uma linda balaustrada da escadaria que subia até ali.

Não pude lembrar-me aonde e quando tinha visto, na minha infância, vitrais pintados numa igreja. Não me lembro dos assuntos que representavam. Somente sei que quando a vi chegar ao cimo da velha escadaria e voltar-se para nos esperar sob essa luz velada, pensei nos vitrais que noutros tempos vira e o seu brilho suave e puro associou-se-me depois, no espírito, com a recordação de Inês Wickfield.

Minha tia estava tão encantada como eu das disposições que Inês acabara de tomar e descemos outra vez juntos para a sala, muito satisfeitos e muito reconhecidos. Não quis ouvir falar de ficar para jantar, com receio de não poder chegar a casa antes da noite com o famoso cavalo cinzento e creio que Mister Wickfield a conhecia muito bem para tentar dissuadi-la; serviram-lhe, pois, refrescos. Inês voltou para junto da sua professora e Mister Wickfield para o seu gabinete. Deixaram-nos sós, para que nos despedíssemos sem constrangimento.

Minha tia observou-me que tudo quanto me dissesse respeito seria arranjado por Mister Wickfield e que não me faltaria nada e depois acrescentou os melhores conselhos e as palavras mais afectuosas.

— Trot — disse minha tia terminando o seu discurso — honre-se a si próprio, a mim e a Mister Dick e fique com Deus!

Eu estava emocionadíssimo e tudo quanto pude fazer foi agradecer-lhe, encarregando-a de todos os meus sentimentos afectuosos para Mister Dick.

— Não cometa baixezas, não minta nunca e não seja desumano. Evite estes três vícios, Trot e terei sempre muito boa esperança em si.

Prometi, o melhor que pude, que não abusaria da sua bondade e que nunca me esqueceria das suas recomendações.

— O cavalo está à porta — disse minha tia — vou-me embora. Deixe-se ficar aí.

A estas palavras, beijou-me precipitadamente e saiu da sala, fechando a porta atrás de si. A princípio fiquei um pouco surpreendido com esta brusca partida e receava ter desagradado a minha tia; mas, olhando pela janela, vi-a subir para o carro, com ar abatido e retirar-se sem erguer os olhos; compreendi então melhor o que ela sentia e não lhe fiz a injustiça de acreditar que tivesse alguma indisposição contra mim.

Jantava-se às cinco horas em casa de Mister Wickfield; eu tinha recuperado a coragem e sentia-me com apetite. Só havia dois talheres. Todavia, Inês, que tinha esperado pelo pai na sala, desceu com ele e sentou-se na sua frente, à mesa. Eu não podia acreditar que ele jantasse sem ela.

Depois de jantar, subimos para a sala, e, no canto mais cómodo, Inês trouxe para o pai um cálice e uma garrafa de vinho do Porto. Creio que não acharia à sua bebida favorita o perfume habitual, se lhe fosse servida por outras mãos.

Mister Wickfield passou ali duas horas, bebendo bastante, enquanto Inês tocava piano, trabalhava e conversava com ele ou comigo. A maior parte do tempo ele estava alegre e de bom humor como nós, mas às vezes olhava para a filha, depois caía em silêncio e devaneio. Parecia-me que ela notava logo isso e que tentava arrancá-lo às suas meditações com uma pergunta ou com uma carícia. Então ele saía do devaneio e deitava vinho no cálice.

Inês fez as honras do chá, depois o tempo foi passando, como após o jantar, até à hora de nos deitarmos. Seu pai então abraçou-a, beijou-a e por fim pediu-lhe velas para acender no gabinete. Eu subi também para me deitar.

Durante a noite, saí um momento à rua para deitar uma vista de olhos sobre as velhas casas e sobre a linda catedral, perguntando de mim para mim como pude eu atravessar essa antiga cidade, por ocasião da minha viagem e passar, sem o saber, junto da casa aonde pouco tempo depois havia de residir. Ao entrar, vi Uriah Heep, que fechava o escritório; sentia-me em veia de benevolência para com o género humano e disse-lhe algumas palavras; depois, ao deixá-lo, estendi-lhe a mão. Mas que mão húmida e fria tinha tocado na minha! Supus sentir a mão de um espectro, de que ele tinha toda a aparência. Esfreguei as mãos para reaquecer a que tinha tocado na dele e para fazer desaparecer todo o vestígio desse odioso contacto.

Perseguia-me ainda essa ideia, quando subi para o meu quarto. Parecia-me sentir sempre essa mão húmida e gelada. Debrucei-me na janela e descobri uma das figuras esculpidas no topo das traves, que olhava para mim de esguelha. Afigurou-se-me que era Uriah Heep, que tinha subido, não sei como, até lá e apressei-me a fechar a janela.

Olvasás folytatása

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