David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim

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By ClassicosLP

Ao descer do meu quarto, pela manhã, encontrei minha tia mergulhada em tão profundas cogitações diante da mesa do almoço que a água contida na chocolateira transbordava já da chaleira e ameaçava inundar a toalha quando a minha entrada a fez sair da sua divagação. Era eu, com certeza, o assunto das suas meditações e desejava mais ardentemente que nunca saber as suas intenções a meu respeito; todavia, não me atrevia a exprimir a minha inquietação, com receio de a ofender.

Os meus olhos, porém, não sendo tão cuidadosamente reservados como a minha língua, dirigiam-se sem cessar para minha tia, durante o almoço. Não podia olhar um momento para ela sem que os seus olhares encontrassem os meus; contemplava-me com ar pensativo e como se eu estivesse a uma grande distância, em vez de estar, como estava, sentado na sua frente, diante de um pequeno velador. Quando acabou de comer, encostou-se com ar decidido nas costas da cadeira, franziu as sobrancelhas, cruzou os braços e contemplou-me muito à sua vontade, com uma fixidez e uma atenção que me perturbavam extremamente. Eu ainda não tinha acabado de almoçar e fazia por ocultar a minha confusão continuando a comer, mas a faca prendia-se-me nos dentes do garfo, que por sua vez batia contra a faca; cortava o presunto com tanta força, que ele saltava em vez de me tomar o caminho da goela e entalava-me com o chá, que teimava em me não passar para baixo. Enfim, dei o almoço por terminado e senti-me corar perante o exame investigador de minha tia.

— Ora vamos! — disse ela depois de um longo silêncio.

Eu ergui os olhos e sustentei com respeito os seus olhares vivos e penetrantes.

— Escrevi-lhe — disse minha tia.

— A...?

— A seu padrasto — disse minha tia. — Mandei-lhe uma carta à qual não tem remédio senão atender, do contrário temo-la travada; fui-o prevenindo.

— Ele sabe aonde é que eu estou? — perguntei assustado.

— Disse-lho — prosseguiu minha tia com um aceno de cabeça.

— E a senhora... vai-me entregar a ele? — perguntei balbuciando.

— Não sei... — disse minha tia. — Veremos.

— Oh! Meu Deus! Que vai ser de mim — exclamei — se eu voltar outra vez para casa de Mister Murdstone!

— Não sei nada — disse minha tia meneando a cabeça. — Não sei o que será; veremos.

Eu estava profundamente abatido, tinha o coração opresso e a coragem abandonava-me. Minha tia, sem se importar comigo, tirou do armário um grande avental de peito, pô-lo, lavou as chávenas por sua mão e depois, quando tudo estava em ordem e posto na bandeja, dobrou a toalha que colocou em cima das chávenas e tocou pela Joaninha para que levasse tudo; calçou em seguida luvas para apanhar as migalhas, com uma vassourinha, até que se não visse no pano de mesa um átomo de poeira, depois do que limpou o pó e arranjou o aposento, que me parecia já numa ordem perfeita. Quando todas estas obrigações se completaram com grande satisfação sua, tirou as luvas e o avental, dobrou-os, guardou-os a um canto do armário donde os tirara e em seguida foi instalar-se com o caixão de costura ao pé da mesa, ao lado da janela aberta e pôs-se a trabalhar por trás do quadro verde, em frente da luz do sol.

— Vá lá acima — disse-me minha tia, enfiando uma agulha —, cumprimente do meu mando Mister Dick e diga-lhe que ficarei satisfeita de que vá adiantada a sua memória.

Levantei-me apressadamente para desempenhar esta ordem.

— Conjecturo — disse minha tia olhando-me tão atentamente como a agulha que acabava de enfiar — que acha o nome de Mister Dick um pouco curto.

— É o mesmo que eu dizia ontem comigo, achava-o... um pouco curto —respondi.

— Não vá supor que não tem outro que pudesse usar, se lhe conviesse — disse minha tia com um ar de dignidade. — Babley, Mister Ricardo Babley é que é o seu verdadeiro nome.

Eu ia a dizer, por um sentimento honesto da minha juventude e da familiaridade de que me tinha tornado culpado, que seria talvez melhor que se lhe chamasse pelo nome completo, mas minha tia prosseguiu:

— Mas não lhe chame assim, em caso algum. Ele não suporta tal nome, é uma pequena mania. Não sei se se pode chamar a isso uma mania, porque ele tem sofrido muito da gente que usa o mesmo nome para ter por ele uma tal repugnância, sabe-o Deus! Mister Dick é o seu nome aqui e agora também em toda a parte, quer dizer se para qualquer parte ele fosse, mas não vai. Assim, tenha muito cuidado, meu filho, de nunca o chamar senão pelo nome de Mister Dick.

Prometi obedecer e subi a desempenhar-me da minha mensagem, pensando pelo caminho que, se Mister Dick trabalhava há muito tempo na sua memória com a assiduidade com que o fazia quando o vi pela porta entreaberta, ao descer para almoçar, essa memória devia estar a acabar. Encontrei-o sempre absorvido na mesma ocupação, com uma grande pena na mão e com a cara quase em cima do papel. Estava tão ocupado que tive muito tempo de reparar num grande papagaio de papel colocado a um canto, em numerosos pacotes de manuscritos em desordem, em penas sem conta e por cima de tudo, numa enorme provisão de tinta (havia pelo menos uma dúzia de garrafas de litro enfileiradas em linha de batalha), antes que ele desse fé de mim.

— Ah! Febo! — disse Mister Dick pousando a pena —, não sei como o mundo anda! Mas dir-lhe-ei uma coisa — acrescentou ele baixando a voz —: não desejaria que isto se repetisse, mas...

Nesta altura fez-me sinal para me aproximar e, falando-me ao ouvido:

— O mundo está doido, doido varrido, meu rapaz — disse Mister Dick tomando uma pitada de uma caixa redonda que tinha em cima da mesa e rindo com toda a vontade.

Desempenhei-me da minha mensagem sem me aventurar a dar parecer sobre essa grave questão.

— Muito bem! — disse Mister Dick em resposta. — Apresente-lhe os meus cumprimentos e diga-lhe que eu... eu suponho estar bem disposto — disse Mister Dick passando a mão pelos cabelos grisalhos e lançando um olhar um tanto inquieto sobre o manuscrito. — O senhor esteve em algum colégio?

— Sim senhor — respondi —, durante algum tempo.

— Lembra-se da data — disse Mister Dick fitando-me com atenção e pegando na pena — da morte do rei Carlos I?

Eu disse que me parecia ter sido em 1649.

— Muito bem! — disse Mister Dick coçando a orelha com a pena e olhando-me desconfiado. — É o que dizem os livros, mas não compreendo como isso é. Se há tanto tempo, como é que a gente que o rodeava pôde ser tão desastrada que fez com que passasse para a minha cabeça um pouco da confusão que ele tinha na dele quando lha cortaram?

Eu fiquei muito atónito com tal pergunta, mas não pude dar informação alguma sobre o assunto.

— É muito singular — disse Mister Dick deitando um olhar desanimado sobre os seus papéis e passando de novo a mão pelos cabelos —, mas não posso conseguir desenvencilhar esta questão. Não tenho o espírito perfeitamente nítido acerca disto. Mas pouco importa — disse alegremente e com um ar mais animado — temos tempo. Faça os meus cumprimentos a miss Trotwood; estou em muito bom caminho!

Eu ia a sair, quando ele atraiu a minha atenção para o papagaio.

— Que lhe parece este papagaio? — disse-me ele.

Respondi-lhe que o achava belíssimo. Devia ter pelo menos seis pés de altura.

— Fui eu que o fiz. Deitá-lo-emos um destes, eu e o senhor. Vê?

E mostrava-me que era de papel, coberto de uma letra fina e apertada, mas tão clara, que ao lançar o olhar sobre essas linhas, pareceu-me ver duas ou três alusões à cabeça do rei Carlos I.

— Gasta muito fio — disse Mister Dick — e quando sobe muito alto, leva naturalmente os factos mais longe: é a maneira que tenho de os espalhar. Não sei onde ele pode ir cair, isso depende das circunstâncias e, assim sucessivamente, suceda o que suceder.

Tinha o ar tão bondoso, tão afável e respeitável, apesar da sua aparência de força e de vivacidade, que eu não estava bem certo se seria um gracejo seu para me distrair. Pus-me a rir e ele fez outro tanto e separámo-nos como os melhores amigos do mundo.

— E então, pequeno — disse minha tia quando eu desci —, como está Mister Dick esta manhã?

Eu respondi que ele lhe mandava os seus cumprimentos e que estava em muito bom caminho.

— Que pensa de Mister Dick? — perguntou minha tia.

Eu tinha desejo de tentar desviar a pergunta replicando que o achava muito amável, mas minha tia não se deixava assim levar de vencida; pousou a obra no regaço e disse-me cruzando as mãos:

— Vamos! Sua irmã Betsy Trotwood dir-me-ia logo o que pensava fosse de quem fosse. Faça como sua irmã, o melhor que possa e fale!

— Não será... Mister Dick não será... Faço esta pergunta, porque não sei, minha tia, se ele não tem a... a cabeça um pouco desarranjada — balbuciei, porque bem sentia que trilhava um terreno perigoso.

— Nem tanto como isto! — disse minha tia.

— Oh! Certamente! — repliquei em voz sumida.

— Se há alguém no mundo que não tenha a cabeça desarranjada é Mister Dick! — disse minha tia com muita decisão e energia.

O que eu tinha de melhor a fazer era repetir timidamente:

— Oh! Certamente.

— Disseram que ele estava doido — prosseguiu minha tia —, tenho um prazer egoísta em recordar que disseram que ele estava doido, porque sem isso nunca eu teria a felicidade de gozar da sua companhia e dos seus conselhos há dez anos ou mais, para falar verdade desde que sua irmã Betsy Trotwood faltou ao seu compromisso.

— Há tanto tempo?

— E era ainda gente de juízo que tinha a audácia de dizer que ele estava doido — continuou minha tia. — Mister Dick é um pouco meu aliado; não importa, como, nem é necessário que eu lho explique. Se não fosse eu, o próprio irmão dele tê-lo-ia internado toda a vida. Ora, aqui tem.

Arguo-me neste ponto de um pouco de hipocrisia, quando ao ver a indignação de minha tia sobre este ponto, tratei de tomar um ar indignado como ela.

— Um imbecil orgulhoso! — disse minha tia. — Porque o irmão era um pouco original, conquanto não seja metade do que muita gente é, ia manda-lo para uma casa de saúde, apesar de lhe ter sido confiado aos seus cuidados por seu defunto pai, que quase o considerava como um idiota. Ainda uma bela autoridade! Ele, sim, é que estava doido, sem dúvida alguma.

Minha tia tinha o ar tão convencido, que fiz novos esforços para arranjar um ar tão convencido como ela.

— Nessa altura, intervim — disse minha tia — e fiz-lhe uma proposta. Disse-lhe: «Seu irmão tem todo o seu juízo; é infinitamente mais sensato do que o senhor é ou nunca há-de ser, pelo menos assim o espero. Dê-lhe uma pequena pensão e deixe-o ir viver para minha casa. Não tenho medo dele; eu não sou orgulhosa, estou pronta a tratar dele e não o maltratarei como outros talvez fizessem, sobretudo num asilo de alienados». Depois de numerosas dificuldades — disse minha tia — consegui e tenho-o cá em casa desde esse tempo. É, com certeza, o homem mais amável e o de mais fácil viver do mundo; e quanto a conselhos!... Mas, a não ser eu, ninguém sabe, conhece ou aprecia o espírito desse homem.

Minha tia sacudiu o vestido e meneou a cabeça, como se com esses dois movimentos reptasse para um desafio o mundo inteiro.

— Ele tinha uma irmã a quem muito amava, era uma bondosa criatura que o tratava bem; mas fez como todas as mulheres, tomou marido. E o marido fez o que todos fazem, tornou-a infeliz. O efeito da sua infelicidade foi tal sobre Mister Dick (não é loucura, confio), que este desgosto combinado com o receio que o irmão lhe inspirava e o sentimento que tinha da dureza que para com ele usavam, causaram-lhe uma febre cerebral. Foi antes dele se instalar em minha casa, mas tal recordação ainda lhe é penosa. Já lhe falou do rei Carlos I, pequeno?

— Já, minha tia.

— Ah! — disse ela coçando o nariz com o ar um pouco contrariado. — É uma alegoria de que usa para falar da doença. Liga-a no seu espírito com uma grande agitação e muita perturbação, o que é bastante natural e é uma figura de que usa, uma comparação, enfim como quiser. E porque não, se isso lhe convém?

— Certamente, minha tia.

— Não é assim que a gente se exprime habitualmente e não é a linguagem que se emprega em trabalhos destes, bem o sei e é por isso que insisto que não trate de tal coisa na sua memória.

— É uma memória sobre a sua própria história que ele anda a escrever, tia?

— É, pequeno, é — respondeu ela esfregando de novo o nariz. — Está escrevendo uma memória acerca dos seus negócios, dirigida ao lord Chanceler, ou ao lord Qualquer Coisa, enfim a uma dessas pessoas a quem se paga para receberem memórias. Suponho que a enviará um dia destes. Não pôde ainda redigi-la, sem lhe introduzir essa alegoria, mas pouco importa, isso preocupa-o.

O facto é que eu descobri mais tarde que Mister Dick tentava há mais de dez anos impedir que o rei Carlos I aparecesse na sua memória, sem nunca poder impedir que ele lhe levantasse cabeça.

— Repito — disse minha tia — que ninguém como eu conhece o espírito desse homem, o mais amável dos homens e o de mais fácil viver. Se gosta de deitar um papagaio de tempos a tempos, isso que quer dizer? Franklin deitava papagaios! Era quaker ou qualquer coisa dessa espécie, se me não engano. E um quaker a deitar um papagaio é muito mais ridículo do que outro homem qualquer.

Se eu supusesse que minha tia me contava essas minudências para minha edificação pessoal ou para me dar uma prova de confiança, ficaria lisonjeadíssimo e tiraria prognósticos favoráveis de uma tal prova de favor. Mas eu não podia iludir-me a este respeito; era evidente para mim que, se ela se lançava nestas explicações, era que contra sua vontade a questão se lhe levantava no espírito; era a ela que ela respondia e não a mim, conquanto fosse a mim que ela dirigisse o seu discurso à míngua de qualquer outro ouvinte.

Ao mesmo tempo devo dizer que a generosidade com que ela defendia o pobre Mister Dick não me inspirou somente algumas esperanças egoístas pelo que me toca, mas despertou também em meu coração uma certa afeição por ela. Creio que começava a perceber que, apesar de todas as excentricidades e das singulares fantasias de minha tia, era uma pessoa que merecia respeito e confiança. Conquanto estivesse tão animada como na véspera contra os burros e os tivesse corrido umas poucas de vezes para fora do jardim, a fim de defender o seu talhão de relva; por mais violenta indignação que experimentasse ao ver passar um rapaz e fazer olhos ternos para a Joaninha sentada à janela, o que era uma das mais graves ofensas que se podia dirigir à dignidade de minha tia, era-me todavia impossível não sentir mais respeito por ela e talvez menos receio.

Eu esperava com extrema ansiedade a resposta de Mister Murdstone, mas fazia grandes esforços para o dissimular e para me tornar tanto quanto possível agradável a minha tia e a Mister Dick. Eu devia sair com este último para deitar o papagaio, mas não tinha outra roupa senão os vestuários um pouco esquisitos com que me tinham ajoujado no primeiro dia, o que me retinha em casa, à excepção de um passeio higiénico de uma hora que minha tia me mandava realizar sobre a penedia defronte da casa, ao cair da noite, antes de me deitar. Enfim chegou a resposta de Mister Murdstone e minha tia informou-me, com grande medo meu, que ele viria falar-lhe no dia imediato. No dia seguinte, pois, sempre vestido com o meu exótico trajo, eu contava as horas, tremendo antecipadamente de terror à ideia desse rosto sombrio, espantando-me sem cessar por não o ver chegar e agitado a todo o momento pela luta das minhas esperanças que eu sentia irem diminuindo e dos meus receios que se avolumavam mais.

Minha tia estava um pouco mais imperiosa e serena que de ordinário; não descobri, por outros vestígios, que se preparasse para receber esse visitante que me inspirava tanto terror. Ela trabalhava ao pé da janela e eu, sentado junto dela, reflectia em todos os resultados possíveis e impossíveis da visita de Mister Murdstone. A tarde ia-se adiantando, o jantar estava indefinidamente retardado, mas minha tia, impacientada, acabava de o mandar servir, quando soltou um grito de alarme ao ver um burro; qual foi a minha consternação quando descobri então miss Murdstone montada no jumento, atravessando num passo resolvido o talhão sagrado e parar em frente da casa, olhando em volta, enquanto minha tia gritava meneando a cabeça e mostrando-lhe o punho fechado pela janela:

— Sigam o seu caminho! Não têm nada que fazer aqui! Estão em contravenção! Vão-se embora! Já viram um despejo assim!

Minha tia estava por tal forma irritada com o sangue frio de miss Murdstone que na verdade creio que por causa disso perdeu o movimento e tornou-se instantaneamente incapaz de se precipitar ao ataque como de costume. Aproveitei-me dessa ocasião para lhe dizer que era miss Murdstone e o sujeito que acabava de chegar ao pé dela (porque sendo o caminho muito abrupto ele tinha ficado alguns passos atrás) era o próprio Mister Murdstone.

— Pouco me importa! — gritou minha tia, meneando a cabeça e fazendo pela janela da sala gestos que não podiam ser interpretados como cumprimentos de boas vindas. — Não quero transgressões! Não as admito! Vão-se embora! Joaninha, tira-o daí! Põe-no lá fora!

Eu escondido por trás de minha tia vi uma espécie de combate: o burro, com as quatro patas fincadas na terra, resistia a todo o mundo. Joaninha puxava-o pela arreata para o fazer voltar para trás, Mister Murdstone queria que ele andasse para a frente, miss Murdstone dava com o guarda-sol em Joaninha e vários rapazitos, chamados pelo ruído, berravam com toda a força. Mas minha tia reconhecendo de repente entre eles o pequeno malfeitor encarregado de guiar o burro e que era um dos seus mais encarniçados inimigos, conquanto apenas tivesse treze anos, precipitou-se no teatro do combate, atirou-se a ele, agarrou-o, arrastou-o para o jardim, com a jaqueta por cima da cabeça e os calcanhares raspando o chão; depois, chamando Joaninha para que fosse buscar a polícia e a justiça, para o prender, julgar e executar em flagrante, guardava-o à vista. Mas a comédia terminou por esta cena: O garoto, que tinha muitos expedientes para seu uso, de que minha tia não desconfiava, arranjou num instante o meio de fugir, com um grito de vitória, deixando as marcas dos sapatos ferrados nas platibandas e levando o burro em triunfo, um acarretando o outro.

Miss Murdstone, efectivamente, tinha-se apeado da montada no fim do combate e esperava com seu irmão ao fundo da escada, que minha tia tivesse vagar de os receber. Um pouco agitada ainda pela luta, minha tia passou ao lado deles com uma grande dignidade, entrou em casa e não se inquietou com a presença dos dois até ao momento em que Joaninha os veio anunciar.

— É preciso ir-me embora, tia? — perguntei a tremer.

— Não senhor — disse ela —certamente que não. — E, dito isto, empurrou-me para um canto ao pé dela e pôs-me uma cadeira diante, como se quisesse figurar uma célula ou a barra de um tribunal. Continuei a ocupar essa posição durante toda a entrevista e vi de lá Mister e miss Murdstone entrarem na sala.

— Oh! — disse minha tia —, eu não sabia à primeira vista a quem tinha o prazer de ralhar há um momento. Mas fiquem sabendo que não permito que ninguém passe com um burro por cima daquele talhão de relva. Não faço excepção. Não o permito a ninguém.

— Não é muito cómoda regra para estranhos — disse miss Murdstone.

— Acha? — perguntou minha tia.

Mister Murdstone pareceu recear ver renovarem-se as hostilidades e interveio dizendo:

— A senhora é miss Trotwood?

— Perdão, senhor — disse minha tia lançando-lhe um olhar penetrante —, o senhor é Mister Murdstone que casou com a viúva do meu falecido sobrinho David Copperfield de Blunderstone-a-Rookery! Porquê a Rookery? É o que eu não sei!

— Sim, minha senhora — disse Mister Murdstone.

— Perdoar-me-á que lhe diga, senhor — replicou minha tia —, que seria infinitamente melhor, creio, que tivesse deixado em paz aquela pobre rapariga.

— Sou do parecer de miss Trotwood nesse sentido — disse miss Murdstone endireitando-se —, pois considerei efectivamente a nossa pobre Clara como uma criança sob todos os respeitos essenciais.

— É uma felicidade, minha senhora, para si e para mim, que nos vamos adiantando na vida e que não temos nos nossos atractivos pessoais grandes motivos para recear que nos sejam fatais, que ninguém possa dizer outro tanto de nós — prosseguiu minha tia.

— Por certo — replicou miss Murdstone, conquanto não se decidisse bem a convir no conceito, pelo menos disse-o com muito mau modo — e como diz, teria mil vezes valido mais para meu irmão que nunca tivesse contraído esse casamento. Eu fui sempre dessa opinião.

— Não duvido — disse minha tia. — Joaninha — prosseguiu ela depois de ter tocado —, faça os meus cumprimentos a Mister Dick e peça-lhe que venha até aqui.

Enquanto esperava, minha tia olhou para a parede silenciosamente, franzindo as sobrancelhas e empertigando-se mais que nunca. Quando ele chegou, ela procedeu à cerimónia da apresentação:

Mister Dick, um dos meus antigos e íntimos amigos, com o conselho do qual eu conto — acrescentou com uma intenção acentuada, a fim de prevenir Mister Dick que roía as unhas com um ar idiota.

Mister Dick largou as unhas e ficou de pé no meio do grupo, com muita gravidade e pronto a mostrar a mais profunda atenção. Minha tia fez um aceno de cabeça a Mister Murdstone, que prosseguiu:

Miss Trotwood, ao receber a sua carta, considerei como um dever para mim e uma demonstração de respeito para si...

— Obrigada — disse minha tia, olhando-o sempre de cara —, mas não se incomode comigo.

— ...vir responder pessoalmente, por maior transtorno que a viagem pudesse ocasionar-me, em vez de lhe escrever; o desgraçado pequeno que fugiu para longe dos seus amigos e das suas ocupações...

— E cuja aparência — disse sua irmã atraindo a atenção geral sobre o meu extraordinário vestuário — impressiona tão desagradavelmente e é tão escandalosa...

— Joana Murdstone — disse seu irmão — tenha a bondade de não me interromper. Esse desgraçado pequeno, miss Trotwood, foi, em nossa casa, origem de muitas dificuldades e perturbações domésticas durante a vida da defunta e minha querida Clara e depois. Tem um carácter sombrio e revoltoso, rebela-se contra toda a autoridade; numa palavra, é intratável. Minha irmã e eu tentámos corrigi-lo dos seus vícios, mas sem o conseguirmos, e sentimos ambos, porque minha irmã está plenamente na minha confidência que era justo que a senhora recebesse dos nossos lábios esta declaração sincera, feita sem rancor e sem cólera.

— Meu irmão não tem necessidade do meu testemunho para confirmar o seu — disse miss Murdstone. — Peço somente licença para acrescentar que de todos os rapazes do mundo creio que não haja outro pior.

— É forte — disse minha tia secamente.

— Não é muito forte, em comparação dos factos — replicou miss Murdstone.

— Ah! — disse minha tia. — E que mais, senhor?

— Tenho a minha opinião particular acerca da maneira de o educar — prosseguiu Mister Murdstone, cujo rosto se escurecia cada vez mais à medida que minha tia e ele se olhavam de mais perto. — As minhas ideias são fundadas em parte sobre o que sei do seu carácter e em parte sobre o conhecimento que tenho dos meus meios e dos meus recursos. Não tenho a responder por eles senão a mim próprio; procedi, pois, segundo as minhas ideias e nada mais me resta dizer. Bastar-me-á acrescentar que coloquei este pequeno sob a vigilância de um dos meus amigos, num negócio honroso; que esta condição não lhe convém; que foge, erra como um vagabundo pela estrada e vem para aqui esfarrapado, dirigir-se a si, miss Trotwood. Desejo mostrar-lhe, com boa intenção, as consequências inevitáveis do auxílio que possa prestar-lhe nestas circunstâncias.

— Comecemos por tratar da questão dessa ocupação honrosa — disse minha tia. — Se fosse seu próprio filho, diga-me, tê-lo-ia colocado da mesma maneira?

— Se ele fosse filho de meu irmão — disse miss Murdstone, intervindo na discussão —, confio que o seu carácter teria sido completamente diferente.

— Se essa pobre rapariga, que foi mãe dele, ainda vivesse, o senhor empregá-lo-ia da mesma maneira nessa honrosa ocupação, não é assim? — disse minha tia.

— Creio — disse Mister Murdstone meneando a cabeça — que Clara não diria que não ao que tivéssemos considerado, minha irmã Joana e eu, como a melhor resolução a tomar.

Miss Murdstone confirmou resmungando o que seu irmão acabava de dizer.

— Hein! — disse minha tia. — Desgraçado pequeno!

Mister Dick, que fazia tilintar o dinheiro nos bolsos havia algum tempo, entregou-se a essa ocupação com tal afã que minha tia julgou necessário impor-lhe silêncio com um olhar, antes de dizer:

— O colégio deste pobre pequeno acabou com ela?

— Acabou com ela — replicou Mister Murdstone.

— E a propriedade dela, a casa e o jardim, não sei que Rookery sem Rooks, não ficou garantida ao filho?

— O seu primeiro marido deixara-lhe os bens sem condições — começava a dizer Mister Murdstone quando minha tia o interrompeu com uma impaciência e uma cólera visíveis.

— Meu Deus! Bem sei! Deixou-lhos sem condições! Eu conhecia bem o David Copperfield; sei bem que não era homem para prever as menores dificuldades, mesmo que se lhe metessem pelos olhos dentro. Está claro que tudo lhe foi deixado sem condições, mas quando ela tornou a casar, quando teve a desgraça de o desposar, numa palavra — disse minha tia —, para falar com franqueza, ninguém disse qualquer coisa a favor desta criança?

— A minha pobre mulher amava o seu segundo marido, minha senhora — disse Mister Murdstone —, tinha plena confiança nele.

— Sua mulher, senhor, era uma pobre e infeliz rapariga que não conhecia o mundo — respondeu minha tia, sacudindo a cabeça. — Eis o que ela era; e agora, vejamos, tem alguma coisa mais a dizer?

— Somente isto, miss Trotwood — disse ele. — Estou pronto a levar David, sem condições, para fazer dele o que me convier e para proceder com ele como me aprouver. Não vim para fazer promessas, nem para tomar compromissos seja com quem for. A senhora tem talvez alguma intenção, miss Trotwood, de o animar na fuga e de ouvir as suas queixas. As suas maneiras, que, devo dizê-lo, não me parecem conciliadoras, levam-me a supô-lo. Previno-a, pois, que, se intervém entre mim e ele, a sua intervenção, miss Trotwood, deve ser definitiva. Eu não costumo gracejar e é preciso não gracejar comigo. Estou pronto a levá-lo pela primeira e última vez; estará ele pronto a seguir-me? Se não está, se a senhora me diz que não está, sob qualquer pretexto que seja, pouco me importa, a minha casa ficará para sempre fechada e tenho por combinado que a sua lhe será aberta.

Minha tia ouviu este discurso com a maior atenção, empertigando-se mais do que nunca, com as mãos cruzadas nos joelhos e o olhar fito no seu interlocutor. Quando ele acabou, voltou os olhos para o lado de miss Murdstone sem mudar de atitude e disse-lhe:

— E a senhora, tem alguma coisa a acrescentar?

— Certamente, miss Trotwood — disse miss Murdstone —, tudo quanto eu poderia dizer foi tão bem aclarado por meu irmão e todos os factos que eu poderia aduzir foram tão claramente expostos por ele, que só me resta agradecer a sua polidez, ou antes a sua excessiva polidez — acrescentou miss Murdstone com uma ironia que perturbou tanto minha tia como a perturbaria o canhão ao pé do qual eu dormi em Chatham.

— E o que é que diz o pequeno? — prosseguiu minha tia. — David está pronto a partir?

Eu respondi que não e intercedi que me não deixasse levar. Disse que Mister e miss Murdstone nunca tinham gostado de mim, que nunca tinham sido bons para mim; que sabia que tinham tornado minha mãe, que tanto me amava, infelicíssima por minha causa e que Peggotty também o sabia. Acrescentei que, apesar de muito novo ainda tinha já sofrido mais do que se poderia imaginar. Roguei, supliquei a minha tia (já me não recordo em que termos, mas lembro-me que estava muitíssimo emocionado) que me protegesse e me defendesse, por amor de meu pai.

Mister Dick — disse minha tia —, que é preciso fazer deste pequeno?

Mister Dick reflectiu, hesitou e depois, tomando um ar radiante, respondeu:

— Mande-lhe imediatamente tomar medida de um fato completo.

Mister Dick — disse minha tia com ar de triunfo —, dê-me um aperto de mão. O seu bom senso é de um valor inapreciável.

Depois de ter sacudido a mão de Mister Dick, atraiu-me para junto dela e disse a Mister Murdstone:

— Pode ir embora se lhe apraz, eu fico com o pequeno, corro-lhe o risco. Se ele é tal como diz, ser-me-á sempre fácil fazer por ele o que o senhor fez; mas eu não acredito em coisa nenhuma.

Miss Trotwood — respondeu Mister Murdstone encolhendo os ombros e levantando-se —, se a senhora fosse um homem...

— Palavreado! — disse minha tia. — Não me fale nessas frioleiras!

— Que fina polidez! — exclamou miss Murdstone levantando-se. — É muito forte, por certo.

— Supõe — disse minha tia, fazendo-se surda ao discurso da irmã e continuando a dirigir-se ao irmão, e sacudindo a cabeça com ar de supremo desdém —, supõe que eu não sei a vida que fez passar a essa pobre rapariga tão mal inspirada? Supõe que eu não sei que dia nefasto foi para essa doce criaturinha aquele em que ela o viu pela primeira vez, sorridente e lançando-lhe olhares ternos, aposto, como se não fosse capaz de dizer uma necedade a uma criança?

— Nunca ouvi linguagem mais elegante! — disse miss Murdstone.

— Supõe que eu não compreendo o seu jogo como se lá tivesse estado — continuou minha tia — agora que o vejo e que o ouço, o que, para lhe falar verdade, não me é nada aprazível? Ah! Certamente que não havia ninguém no mundo mais afável e mais submisso do que era Mister Murdstone nesse tempo. A pobre inocentinha nunca vira cordeiro assim. Era tão cheio de bondade, adorava a mãe, tinha paixão pelo filho, uma verdadeira paixão! Seria para ele um verdadeiro pai e não faltava mais do que viverem todos juntos num paraíso cheio de rosas, não é assim? Ora vamos, deixe-me em paz! — disse minha tia.

— Nunca na minha vida vi uma mulher assim! — exclamou miss Murdstone.

— E quando o senhor — disse minha tia — se viu seguro dessa pobre insensatazinha (Deus me perdoe de chamar assim a uma criatura que já lá está aonde o senhor não tem pressa de ir ter com ela!) como se já não tivesse feito bastante mal a ela e aos seus, pôs-se a começar a sua educação, não é assim? Tomou a empreitada de a instruir e meteu-a numa gaiola como um pobre passarinho, para lhe fazer esquecer a vida passada e ensinar-lhe a cantar a mesma ária que o senhor cantava.

— Isto é loucura ou embriaguez — disse miss Murdstone, desesperada por não poder, por seu lado, desviar a torrente de invectivas de minha tia —, mas desconfio que é embriaguez!

Miss Betsy, sem fazer o menor caso da interrupção, continuou a dirigir-se a Mister Murdstone.

— Sim, senhor Murdstone — continuou ela agitando o dedo —, o senhor fez-se o tirano dessa inocente rapariga e despedaçou-lhe o coração. Ela tinha a alma terna, sei-o eu, sabia-o bastantes anos antes que o senhor a tivesse visto, e o senhor escolheu bem o fraco da infeliz para lhe vibrar os golpes de que ela morreu. Esta é que é a verdade, quer lhe agrade quer não, faça o que quiser e mais quem lhe serviu de instrumento.

— Permita-me que lhe pergunte, miss Trotwood — disse miss Murdstone —, quem é a pessoa que a senhora chama, com uma escolha de expressões a que não estou acostumada, o instrumento de meu irmão?

Miss Betsy, persistindo numa surdez inabalável, prosseguiu o seu discurso:

— Era claro, como já lhe disse, bastantes anos antes que o senhor a tivesse visto (e está acima da razão humana o compreender porque é que entrou nas vistas misteriosas da Providência que o senhor a visse um dia), era claro que essa pobre criaturinha se tornaria a casar um dia ou outro, mas eu esperava que isso não acabaria tão mal; era na época em que ela deu à luz o filho que aqui está, senhor Murdstone; este pobre pequeno de que o senhor se serviu várias vezes para a atormentar mais tarde, o que é uma recordação desagradável e lhe torna agora a sua vista odiosa. Sim, sim, escusa de estremecer — continuou minha tia —, não tenho necessidade dessa prova para saber a verdade.

Ele permaneceu todo este tempo de pé, junto da porta, olhando-a fixamente, com o sorriso nos lábios, mas franzindo as espessas sobrancelhas. Reparei então que, sempre sorridente ainda, empalidecera de repente e que parecia respirar como um homem que acabava de perder o fôlego numa corrida.

— Viva, senhor — disse minha tia —, e adeus. Viva, minha senhora — continuou ela, voltando-se bruscamente para a irmã. — Se a torno a ver algum dia com um burro por cima do meu talhão de relva, tão certo como a senhora ter uma cabeça em cima dos ombros, arranco-lhe o chapéu e espatifo-lho aos pés.

Seria preciso um pintor, e um pintor de raro talento, para dar a expressão do rosto de minha tia, ao fazer essa declaração inesperada e a de miss Murdstone ao ouvi-la. Mas o gesto não era menos eloquente do que a palavra, de modo que miss Murdstone não respondeu, enfiou discretamente o braço no do irmão e saiu majestosamente de casa. Minha tia, sempre à janela, via-os, afastarem-se, pronta, sem dúvida alguma, a pôr imediatamente em prática a sua ameaça, no caso de reaparecer o burro.

Não se tendo dado tentativa alguma para responder a este desafio, o rosto de minha tia foi-se tranquilizando pouco a pouco, tão bem que eu afoitei-me a agradecer-lhe e a beijá-la, o que fiz de todo o meu coração, abraçando-a. Dei em seguida um aperto de mão a Mister Dick, que repetiu esta cerimónia várias vezes a seguir e que saudou o feliz desfecho do caso com grandes gargalhadas de cinco em cinco minutos.

— Considere-se, Mister Dick, tutor deste pequeno, a meias comigo — disse minha tia.

— Ficarei encantado — disse Mister Dick — de ser o tutor do filho de David.

— Muito bem — disse minha tia — fica combinado. Eu pensava numa coisa, senhor Dick: posso ou não dar-lhe o nome de Trotwood?

— Certamente, certamente; chame-lhe Trotwood — disse Mister Dick —, Trotwood, filho de David Copperfield.

— Trotwood Copperfield é o que quer dizer, pois não é? — prosseguiu minha tia.

— Sim, sem dúvida, sim, Trotwood Copperfield — disse Mister Dick um pouco embaraçado.

Minha tia ficou tão encantada com a sua ideia que ela própria marcou, com tinta inalterável, as camisas que me comprou feitas nesse dia, antes de eu as vestir e ficou decidido que o resto do meu enxoval, que ela encomendou imediatamente, teria a mesma marca.

Foi assim que eu comecei uma vida completamente nova, com um nome novo, como o resto. Agora que a minha incerteza estava passada, eu julgava sonhar. Não dizia de mim para mim que minha tia e Mister Dick fossem dois singulares tutores. O que havia de mais claro no meu espírito, era, por um lado, que a minha vida passada em Blunderstone se afastava cada vez mais e parecia flutuar no vago de uma distância infinita; e por outro, que acabava de descer para sempre um pano sobre a vida que passei na casa Murdstone & Grinby. Ninguém fez depois subir esse pano. Ergui-o eu a pequena altura por um momento, com mão tímida e trémula, nesta narrativa e deixei-o cair com alegria. A recordação desta existência é acompanhada no meu espírito de uma tal dor, de tanto sofrimento moral, de uma ausência de esperança tão absoluta, que nunca tive a coragem de examinar quanto tempo tinha durado o meu suplício. Seria um ano, seria mais, seria menos? Não sei nada. Apenas sei que isso sucedeu, que isso passou e que nisso acabo de falar duma vez para sempre.

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oi gentee bom a historia e de rua do medo so que em versão tipo a sam vai ser o finn a deena vai ser a s/n e etc. bom fiquem com a minha fic byee.