David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada

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By ClassicosLP

Conheço agora bastante o mundo para me admirar muito do que se passa, mas mesmo presentemente fico surpreendido da facilidade com que fui abandonado em tão tenra idade. Parece-me extraordinário que ninguém interviesse em favor de um pequeno muito inteligente, dotado de grandes faculdades de observação, ardente, afectuoso, delicado de corpo e de alma; mas ninguém interveio e encontrei-me aos dez anos um pequeno servente a soldo de Mister Murdstone & Grinby.

O armazém de Murdstone & Grinby era situado em Blackfriars, à beira-rio. Os melhoramentos recentes transformaram esses lugares, mas era naquele tempo a última casa de uma rua estreita que descia serpenteando até ao Tamisa e que acabava em alguns degraus donde se embarcava. Era uma casa velha com um pequeno pátio que confinava com o rio, quando havia preia-mar e para o lado do rio quando na vazante; os ratos eram aos centos. As salas, revestidas de apainelados de madeira descorada pelo fumo e pela poeira havia mais de um século, os soalhos e a escada esburacados, o chiar estridente e as lutas das ratazanas nos subterrâneos, o cheiro a bafio e a porcaria geral do local, tudo isto está presente ao meu espírito, como se o tivesse visto ontem. Vejo-o ainda diante de mim como na hora fatal em que ali cheguei pela primeira vez, com a mãozita a tremer na mão de Mister Quinion.

A casa Murdstone & Grinby abraçava ramos de negócio muito diversos, mas o comércio de vinhos e licores com certas companhias de navegação a vapor era uma parte importante. Não me lembra que viagens faziam esses vapores, mas parece-me que havia paquetes que iam às índias Orientais e às índias Ocidentais. Sei que uma das consequências desse comércio era uma quantidade de garrafas vazias e empregava-se um certo número de homens e rapazes a examiná-las, a apartar as que eram rachadas e a enxugar e lavar as outras. Quando faltavam garrafas vazias, havia etiquetas a colocar nas garrafas cheias, rolhas a cortar, a lacrar e caixas a encher de garrafas. Era o serviço que me estava destinado; eu devia fazer parte dos rapazes empregados nesse mester.

Éramos três, ou quatro comigo. Tinham-me instalado a um canto do armazém e Mister Quinion podia-me ver da janela que havia por cima da sua secretária, se se pusesse de pé na travessa do banco em que se sentava. Foi aí que no primeiro dia em que eu devia começar a vida por minha própria conta, sob tão favoráveis auspícios, chamaram o mais velho dos meus companheiros para me indicar o que eu tinha a fazer. Chamava-se ele Mick Walker; trazia um avental roto e um boné de papel. Informou-me que o pai era barqueiro e que todos os anos tomava parte na procissão do lordmayor com um chapéu de veludo preto na cabeça. Anunciou-me também que tínhamos por camarada um rapazito a quem ele chamava pelo nome extraordinário de «Fécula de batata». Bem depressa descobri que não era o verdadeiro nome dessa criatura interessante, mas que lhe tinha sido posto no armazém por causa da parecença da sua tez com a de uma batata. Seu pai era aguadeiro; e juntava a essa profissão a distinção de ser bombeiro de um dos grandes teatros, em que a irmãzita de Fécula fazia os anões nas pantomimas.

As palavras não podem exprimir a secreta angústia da minha alma ao ver a gente no meio da qual eu acabava de cair, quando comparava os companheiros da minha vida quotidiana com as da minha infeliz infância, sem falar de Steerforth, de Traddles e dos meus outros colegas do colégio. Nada pode exprimir o que eu senti ao ver sufocadas no seu gérmen todas as minhas esperanças de vir a ser um dia um homem instruído e distinto. O sentimento do meu abandono, a vergonha da minha situação, o desespero de pensar que tudo quanto tinha aprendido e decorado, que tudo quanto tinha excitado a minha ambição e a minha inteligência se apagaria pouco a pouco da minha memória, todos estes sofrimentos não se podem descrever. Cada vez que nesse dia me encontrei só, as minhas lágrimas misturaram-se com a água em que lavava as garrafas e solucei como se houvesse uma falha no meu peito e que estivesse em perigo de rebentar como uma garrafa rachada...

O grande relógio do armazém marcava meia hora sobre o meio-dia e todos se preparavam para ir jantar, quando Mister Quinion bateu na janela da sua secretária e fez-me sinal para lhe ir falar. Entrei e encontrei-me na frente de um homem de idade madura, gorducho, de casacão cinzento e calças pretas; na cabeça (que era enorme e apresentava uma superfície polida) não tinha mais cabelos do que tem um ovo. Voltou para mim uma cara rechonchuda; o seu vestuário era coçado, mas o colarinho da camisa era imponente. Trazia uma bengala, donde pendiam duas borlas desbotadas, pendia-lhe também uma luneta por fora do paletó; porém mais tarde descobri que era apenas por ornamento, porque raras vezes se servia dela e não via quase nada quando a levava aos olhos.

— Cá está ele — disse Mister Quinion mostrando-me.

— Este é que é — disse o desconhecido com um certo tom de condescendência e um certo ar impossível de descrever, mas que queria ser muito distinto e que me causou uma grande impressão —, este é que é Mister Copperfield? Espero que passe bem, senhor!

Respondi que passava bem e estimava que outro tanto lhe sucedesse. Deus sabe se eu estava constrangido, mas não era de meu natural queixar-me muito nesse tempo; limitei-me pois a dizer que passava bem e estimava que lhe sucedesse outro tanto.

— Graças a Deus, não posso passar melhor — disse o desconhecido. — Recebi uma carta de Mister Murdstone na qual me diz que desejava que eu o pudesse receber ao senhor num quarto das traseiras da minha casa e que está agora desocupado... que está para alugar, numa palavra, como... numa palavra — disse o desconhecido com um sorriso de confiança amigável —, como quarto de dormir... do moço principiante a quem tenho o prazer de...

Aqui o desconhecido fez um gesto com a mão e meteu o queixo dentro do enorme colarinho.

— Este senhor é Mister Micawber — disse-me Mister Quinion.

— Sim — disse o desconhecido. — Esse é o meu nome.

Mister Murdstone — disse Mister Quinion — conhece Mister Micawber. É nosso agente de encomendas. Mister Murdstone escreveu-lhe acerca do alojamento para si e ele recebê-lo-á em casa.

— O meu endereço — disse Mister Micawber — é Windsor-Terrace, caminho da City. Eu... numa palavra — disse Mister Micawber com o mesmo ar elegante e um novo impulso de confiança —, é lá que eu moro.

Cumprimentei-o.

— Receando — disse Mister Micawber — que as suas peregrinações nesta metrópole não tenham ainda sido bastante extensas e que possa enfim ter alguma dificuldade em penetrar nos dédalos da moderna Babilónia, na direcção do caminho da City, numa palavra — disse Micawber com um impulso de confiança — receando que não fosse perder-se, ser-me-á muito aprazível vir hoje buscá-lo a fim de lhe ensinar o caminho mais curto.

Agradeci-lhe de todo o meu coração o incómodo que desejava ter por mim.

— A que horas — disse Mister Micawber — é que poderei...?

— Pelas oito horas — disse Mister Quinion.

— Aqui estarei pelas oito horas — disse Mister Micawber. — Senhor Quinion, tenho a honra de lhe desejar um bom dia. Não quero incomodá-lo mais.

Pôs o chapéu e saiu, com a bengala debaixo do braço, num passo majestoso, trauteando uma ária, logo que se viu fora do armazém.

Mister Quinion ajustou-me então solenemente para a casa de Murdstone & Grinby para todo o serviço de armazém, com um salário de seis xelins. Sou levado a crer, pela minha incerteza no assunto, que fossem seis xelins primeiro e depois sete. Pagou-me uma semana adiantada (suponho que do seu bolso), do que dei seis pence a Fécula para me levar a mala à noite a Windsor-Terrace, por mais pequena que ela fosse eu não tinha forças para a levantar. Gastei ainda seis pence com o jantar, que consistiu num pastelão de carne e uma golada de água bebida na bomba próxima, depois empreguei o resto da hora concedida para a refeição em passear pelas ruas.

À noite, à hora exacta, reapareceu Mister Micawber. Lavei as mãos e a cara para honrar a elegância das suas maneiras e tomámos juntos o caminho da nossa residência, pois que é assim que eu devo chamar-lhe agora, suponho. Mister Micawber teve o cuidado, quando íamos andando, de que eu tomasse nota do nome das ruas e da frontaria dos edifícios, a fim de não me enganar no caminho no dia seguinte de manhã.

Chegados a Windsor-Terrace, a uma casa de aparência mesquinha, como o seu inquilino, mas que tinha como ele pretensões a elegância, apresentou-me a Mistress Micawber, que era pálida e magra e há muito tempo que deixara de ser moça. Encontrei-a sentada na sala de jantar, (o primeiro andar não era mobilado e tinha os transparentes corridos para iludir os vizinhos) a amamentar um filho. Essa criaturinha tinha um irmão gémeo; posso dizer que, durante todas as minhas relações com a família, quase nunca me sucedeu ver os dois gémeos fora dos braços de Mistress Micawber ao mesmo tempo. Um dos dois estava sempre ao peito.

Havia mais dois filhos, Mister Micawber Júnior, de quatro anos pouco mais ou menos e miss Micawber, que tinha os seus três anos. Uma rapariga muito trigueira, que tinha o hábito de andar a fungar e que servia a família, completava este interior; informou-me ela, ao cabo de meia hora, que era órfã e tinha sido criada no hospital de S. Lucas, nos arredores. O meu quarto ficava nas traseiras do andar superior; era pequeno e forrado a papel que representava uma série de obreias azuis e o menos mobilado possível.

— Nunca acreditaria — disse Mistress Micawber sentando-se para tomar a respiração, pois tinha subido, com o filho ao peito, a mostrar-me o quarto —, nunca acreditaria, antes do meu casamento, quando vivia com o papá e com a mamã, que um dia havia de ser obrigada a alugar quartos da minha casa. Mas Mister Micawber encontra-se em críticas circunstâncias e qualquer outra consideração deve ceder o lugar a esta.

— Sim, minha senhora — respondi.

— As dificuldades de Mister Micawber sobrecarregam-no muito, actualmente — disse Mistress Micawber — e não sei se lhe será possível desafogar-se delas. Quando eu vivia com o papá e com a mamã, nem sequer sabia o que queria dizer a palavra «dificuldades» no sentido que lhe dou agora; mas a experiência ilumina-nos, como muitas vezes dizia o papá.

Não posso saber ao justo se ela me disse que Mister Micawber tinha sido oficial nas tropas de marinha, ou se eu o inventei. Sei simplesmente que estou convencido à hora presente, sem aliás estar bem certificado, de que tinha servido na marinha. Era, actualmente, corretor de diversas casas, mas receio que ganhava pouco, talvez nada.

— Se os credores de Mister Micawber não lhe concedem um prazo — continuou Mistress Micawber — sofrer-lhe-ão as consequências e acabarão as coisas mais depressa e mais valerá. Não se pode tirar sangue de uma pedra e desafio-os a encontrarem dinheiro em casa de Mister Micawber actualmente, isto sem falar nas custas do processo.

Nunca pude compreender se a minha independência prematura iludia Mistress Micawber acerca da maturidade da minha idade, ou antes se ela não estaria tão morta por desabafar que até falasse com os gémeos, à falta de alguém à mão, mas o assunto desta conversação continuou a ser o objecto de todas as nossas conversas durante todo o tempo que a vi.

Pobre Mistress Micawber! Dizia que tinha tentado tudo para arranjar recursos e não duvido. À porta da rua havia um letreiro em que se viam gravadas estas palavras: «Colégio de meninas, dirigido por Mistress Micawber». Mas nunca descobri que menina alguma jamais aparecesse, ou tivesse vontade de aparecer; nem nunca soube também que se fizessem os menores preparativos para receber as que tivessem de se apresentar. Os únicos visitantes que vi, ou de que ouvi falar, eram credores. Esses vinham a qualquer hora do dia e alguns deles eram ferozes. Havia um sapateiro, com uma cara imunda, que se enfiava no corredor, logo às sete horas da manhã e que gritava do fundo da escada: «Então! Ainda não saíram! Paguem-me, andem. Não se escondam, olhem que é uma cobardia! Eu de mim não caía em tal infâmia! Paguem-me, andem! Paguem-me já, aviem-se».

E como não recebia resposta a esses insultos, a sua cólera subia de ponto e falava aos berros em «patifes e ladrões», o que também ficava sem resposta. Quando, ele via isso, atravessava a rua e ia berrar debaixo das janelas do segundo andar aonde bem sabia que Mister Micawber dormia. Nesse momento, Mister Micawber estava mergulhado na maior pena e desespero; chegou mesmo um dia, ao que dei fé por um grito de sua mulher, a ponto de fazer um simulacro de se ferir com uma navalha de barba; mas meia hora depois estava a engraxar os sapatos com o mais minucioso cuidado e saía a trautear uma moda qualquer, com o ar mais elegante que nunca. Mistress Micawber era dotada da mesma elasticidade de carácter. Vi-a achar-se mal às três horas, quando vieram receber umas contribuições e depois, às quatro horas, já estava a saborear costeletas de carneiro panadas, com uma boa caneca de ale, graças a duas colheres de chá que foram, para o prego. Um dia, recordo-me, tinham-lhe feito uma penhora em casa e eu ao regressar extraordinariamente às seis horas, encontrei-a desmaiada ao pé do fogão (naturalmente com um dos gémeos nos braços) e os cabelos meio arrancados, o que não impediu de à noite a encontrar mais alegre que nunca defronte do fogão da cozinha, a contas com uma costeleta de vitela, contando-me toda a casta de lindas coisas do seu papá e da sua mamã e da gente que recebiam em casa.

Eu passava todos os momentos de ócio com essa família. Ia procurar o almoço que se compunha de um pãozinho de um penny e um penny de leite. Para a ceia, quando regressava, tinha outro pãozinho e uma fatia de queijo que me esperavam no guarda-louça, numa prateleira para meu uso. Era um grande rombo nos meus seis ou oito xelins; o dia passava-o no armazém e o meu salário devia chegar-me para toda a semana. Desde a segunda-feira de manhã até ao sábado não recebia nem opinião, nem conselho, nem incitação, nem consolação, nem espécie alguma de socorro, de quem quer que fosse, tão verdade como espero ir para o céu.

Eu era tão novo, tão inexperiente, tão pouco em estado (e como poderia ser de outro modo?) de velar eu próprio pelas minhas coisas, que me sucedia muitas vezes, ao ir de manhã para o armazém, não poder resistir à tentação de comprar bolos da véspera, vendidos por metade do preço pelo dono do restaurante e gastava assim o dinheiro do jantar. Nesses dias, não jantava, ou então comprava um pãozinho ou um bocado de pudim. Lembra-me de duas lojas onde se vendia pudim e que eu frequentava alternativamente segundo o estado das minhas finanças. Uma era situada num patiozinho por trás da igreja de S. Martinho, que já não existe. O pudim era feito com coríntias de primeira qualidade, mas era caro; por dois pence tinha-se uma ração que não valeria mais que um penny se a massa fosse menos fina. Havia no Strand, num lugar mais tarde reconstruído, uma outra loja em que se encontrava o bom pudim vulgar. Era um tanto pesado, com uvas inteiras, encontradas a grandes distâncias umas das outras, mas era substancial e muito quente à hora do meu jantar que muitas vezes se compunha desse único prato. Quando jantava regularmente, comprava um pão de penny e um salsichão, ou comia uma ração de vaca de oito pence no restaurante, ou então entrava num botequim ordinário defronte do armazém e que tinha a tabuleta do Leão com qualquer outro acessório que já esqueci e mandava vir pão, queijo e um copo de cerveja. Lembra-me ter levado uma manhã pão de casa e tê-lo embrulhado num bocado de papel como um livro, entrando com ele debaixo do braço num restaurante de Drury-Lane, célebre pela carne estufada e pedi uma ração desse prato tão apreciado. Não sei o que o criado pensou da criaturinha que ia assim tão só; mas ainda o estou a ver a olhar como eu comia e chamou outro criado para gozar o mesmo espectáculo; sei bem que lhe dei de gorjeta um penny e que o meu desejo era que ele recusasse.

Tínhamos meia hora, acho eu, para tomarmos chá. Quando eu tinha bastante dinheiro, tomava uma xícara de café e uma pequena fatia de pão com manteiga. Quando não tinha nada, ia ver uma loja de caça em Fleet Street; ia algumas vezes até ao mercado de Covent Garden para ver os ananases. Gostava também de girar pelas arcadas misteriosas dos Adelfi. Vejo-me ainda uma noite, ao sair de lá, transportado a uma tabernória, completamente à beira do rio, com um pequeno terreiro diante, sobre o qual iam dançar uns poucos de carvoeiros. Pergunto com os meus botões o que pensariam de mim.

Eu era tão novo e tão pequeno para a minha idade, que às vezes, quando entrava num café aonde não era conhecido, para pedir um copo de «ale» ou de «porter», para apagar a sede depois de jantar, hesitavam em me servir. Lembro-me que numa tarde de Verão entrei num café e disse ao dono:

— Quanto custa um copo da sua melhor «ale», a que tiver de melhor?

Era numa ocasião extraordinária, não sei qual, talvez no dia dos meus anos.

— Cinco pence — disse o dono do café — é quanto custa a verdadeira «ale» de primeira qualidade.

— Muito bem! — disse eu puxando de dinheiro. — Dê-me então um copo da verdadeira «ale», de primeira qualidade, e, por quem é, que seja bem fermentada.

Olhou para mim da cabeça até aos pés por cima do balcão, sorrindo, e em vez de tirar a cerveja chamou pela mulher. Ela veio a correr, com a costura na mão, e pôs-se também a examinar-me. Vejo ainda o quadro que então formávamos: o dono do café, em mangas de camisa, encostado ao mostrador; a mulher inclinada para ver melhor e eu, um pouco confuso, olhando para eles do lado de fora. Fizeram-me várias perguntas: sobre o meu nome, idade, modo de vida, o que fazia e como tinha ido até ali. Devo dizer que para não comprometer ninguém, dei respostas pouco verdadeiras. Serviram-me um copo de «ale» que não era de primeira qualidade, desconfio, mas a dona do café inclinou-se sobre o mostrador e restituiu-me o dinheiro, beijando-me com um ar de compaixão e de admiração.

Não exagero, mesmo involuntariamente, a exiguidade dos meus recursos nem as dificuldades da minha vida. Sei que se Mister Quinion me dava por acaso um xelim, empregava-o em pagar o meu jantar. Sei que trabalhava de manhã até à noite, no vestuário mais mesquinho, com homens e rapazes de classe inferior. Sei que vagueava pelas ruas, mal alimentado e mal vestido. Sei que, sem a misericórdia de Deus, o abandono em que me deixavam poderia levar-me a ser um ladrão ou um vagabundo. Com tudo isso, eu estava todavia numa situação vantajosa, na casa Murdstone & Grinby.

Não só Mister Quinion fazia por me tratar com mais consideração do que a todos os meus colegas, tudo o que se podia esperar de um indiferente, muito ocupado de resto e tratando-se de uma criatura como eu tão abandonada; mas como eu não tinha nunca dito a ninguém o segredo da minha situação e não testemunhava o menor pesar, o meu amor próprio sofria menos. Ninguém sabia das minhas penas, por mais cruéis que fossem. Conservava-me reservado e só tratava do meu serviço. Compreendi desde princípio que o único meio de escapar às zombarias e desprezos dos outros era fazer a minha tarefa tão bem como eles. Bem depressa me tornei tão hábil e tão activo como os meus companheiros. Ainda que vivesse com eles nas relações mais familiares, o meu comportamento e maneiras diferiam bastante das suas para os conter à distância. Chamavam-me geralmente «o sujeitinho». Um tal Gregory, já homem, contramestre dos embaladores e outro de nome Pipp, carroceiro e que trazia uma jaqueta vermelha, chamavam-me às vezes David, mas isso era nas ocasiões de grande confiança, quando eu tentava diverti-los contando-lhes, sem interromper o meu trabalho, alguma história tirada das minhas antigas leituras, que se me iam apagando pouco a pouco da memória. Fécula-de-batata revoltou-se um dia da distinção que me concediam, mas Mick-Walker fê-lo logo entrar na ordem.

Nenhuma esperança tinha de me ver livre desta horrível existência e tinha renunciado a pensar em tal. Todavia, estou profundamente convencido de que não me resignara um único dia e que me sentia profundamente desgraçado, mas suportava as minhas penas em silêncio e nunca revelava a verdade nas numerosas cartas que escrevia a Peggotty, metade por vergonha e metade pela afeição que lhe consagrava.

As dificuldades de Mister Micawber juntavam-se aos meus tormentos de espírito. No abandono em que eu estava, tinha-me afeiçoado àquela família e pelo caminho giravam-me na cabeça os cálculos de Mistress Micawber acerca dos seus azares e recursos; sentia-me opresso com as dívidas de Mister Micawber. O sábado à noite era dia de grande festa para mim, primeiro porque era chegado o momento de ter na algibeira seis ou sete xelins e de poder ir ver as lojas, imaginando tudo quanto podia comprar com esse dinheiro e em seguida porque recolhia mais cedo a casa. Em geral, Mistress Micawber fazia-me as confidências mais dilacerantes, que muitas vezes repetia no domingo de manhã, enquanto eu almoçava com todo o vagar, engolindo o chá ou o café que tinha comprado na véspera à noite e que eu guardava num frasco que contivera doce. Não era raro que Mister Micawber se inundasse de lágrimas no começo destas conversações do sábado à noite, para acabar em seguida por cantar uma romança sentimental. Vi-o chegar a casa para cear, soluçando e declarando que só lhe restava ir para a cadeia, depois deitar-se calculando quanto custaria uma sacada para as janelas do primeiro andar, no caso de «o favorecer a sorte», segundo a sua expressão favorita. Mistress Micawber era dotada da mesma facilidade de génio.

Apesar da imensa diferença das nossas respectivas idades, estabeleceu-se entre esta família e eu uma igualdade singular na nossa amizade, nascida, suponho, da nossa situação relativa. Mas nunca aceitei nenhum convite para comer ou beber à custa deles (sabendo que se viam e desejavam para satisfazer ao carniceiro e ao padeiro e que mal tinham o necessário), enquanto Mistress Micawber não me admitiu à sua mais inteira confiança. Uma noite, chegou por fim essa prova de confiança.

— Senhor Copperfield — disse ela —, não posso tratá-lo como a um estranho e não hesito em dizer-lhe que se aproxima a crise para os negócios de Mister Micawber.

Experimentei um verdadeiro pesar ao saber esta nova e fitei com a mais profunda simpatia os olhos vermelhos de Mistress Micawber.

— À excepção de um pedaço de queijo flamengo, recurso insuficiente para as necessidades da minha jovem família — disse Mistress Micawber —, não há uma migalha de alimento na despensa. Tomei o hábito de falar de despensa quando estava em casa do papá e da mamã e emprego esta expressão sem pensar. O que eu quero dizer é que não há nada de comer em casa.

— Deus do céu! — disse eu com uma viva emoção.

Eu tinha dois ou três xelins no bolso, do dinheiro da minha semana, o que me faz supor que esta conversação devia realizar-se numa terça-feira à noite; tirei logo o dinheiro, pedindo a Mistress Micawber, de todo o meu coração, que se dignasse aceitar esse pequeno empréstimo. Ela beijou-me e obrigou-me a meter a minha fortuna no bolso, dizendo-me que não podia consentir em tal.

— Não, meu caro Sr. Copperfield, uma tal ideia está muito longe do meu pensamento, mas o senhor é cheio de uma discrição superior à sua idade e poderia prestar-me um serviço que eu aceitaria com reconhecimento.

Pedi a Mistress Micawber que me dissesse como poderia eu ser-lhe útil.

— Fui eu própria quem levou a nossa prata a uma casa de penhores — disse Mistress Micawber. — Seis colheres de chá, duas pás do sal e uma pinça do açúcar. Mas os gémeos incomodam-me muito para lá ir e essas idas são-me muito penosas, porque me lembro do tempo em que eu vivia com o papá e a mamã. Há ainda algumas pequenas coisas de que poderíamos dispor. As ideias de Mister Micawber não lhe permitiam nunca aparecer nestes assuntos e Clickett (era o nome da criada), como tem um espírito vulgar, tomaria talvez liberdades difíceis de suportar, se a gente lhe testemunhasse uma tamanha confiança. Sr. Copperfield, se eu me atrevesse a pedir-lhe...

Compreendi enfim Mistress Micawber e pus-me inteiramente à sua disposição. Comecei, logo nessa mesma noite, a mudar os objectos mais fáceis de transportar e todas as manhãs realizava uma expedição dessa natureza antes de ir para a casa Murdstone & Grinby.

Mister Micawber tinha alguns livros em cima de uma pequena secretária, a que chamava a biblioteca: começou-se por aí. Levei-os um a um a casa de um alfarrabista, no caminho da City, uma parte do qual era habitado por negociantes de livros e passarinheiros e eu vendia os livros o mais caro que podia. O meu comprador vivia numa casita por trás da quitanda; embriagava-se todas as noites e a mulher berrava com ele todas as manhãs. Por mais de uma vez, quando me apresentava cedo, encontrei-o numa cama de armário, com a testa toda esmurrada ou com um olho inchado, consequência dos seus excessos da véspera (inclino-me a crer que ele era violento depois de ter bebido) e baldadamente procurava com a mão trémula, nos bolsos da roupa deitada no chão, o dinheiro com que havia de pagar-me, enquanto que a mulher, com os sapatos acalcanhados e uma criança nos braços, durante todo o tempo lhe atirava à cara o seu mau comportamento. Algumas vezes perdia o dinheiro e dizia-me que voltasse mais tarde; mas a mulher tinha sempre alguma quantia que lhe pilhava quando ele estava borracho, suponho e saldava o negócio secretamente na quitanda, quando descíamos juntos.

Começavam também a conhecer-me em casa do penhorista. O primeiro caixeiro, que trabalhava por trás do balcão, tinha por mim muita consideração e fazia-me várias vezes declinar um substantivo ou um adjectivo latino, ou então conjugar um verbo, enquanto que se ocupava da minha transacção. Nessas ocasiões, Mistress Micawber preparava de ordinário uma pequena ceia especial e lembro-me do encanto muito particular dessas refeições.

Chegou, finalmente, a crise. Mister Micawber foi preso uma manhã, de madrugada e levado para a prisão do Banco-do-Rei. Disse-me, ao ir preso, que para ele o Deus do dia tivera o seu ocaso para sempre e eu acreditava realmente que ele tivesse o coração despedaçado; o meu estava-o. Todavia, soube depois que ele jogara muito alegremente à bola nessa tarde.

No primeiro domingo depois da prisão, devia ir vê-lo e jantar com ele. Eu tinha de perguntar o caminho para tal lugar e antes de lá chegar, havia de encontrar um outro lugar e um pouco antes devia de ver um pátio que tinha de atravessar e depois ir a direito até encontrar um carcereiro. Fiz tudo quanto me estava indicado e quando descobri enfim o carcereiro (pobre criança que eu era), lembrei-me que, quando Roderick Random estava preso por dívidas, viu um homem que trazia por único vestuário um pedaço velho de tapete e o coração bateu-me tão fortemente de inquietação que nem sequer via o carcereiro.

Mister Micawber esperava-me junto da porta, e, uma vez chegado ao seu quarto, que era para a frente do último andar da casa, pôs-se a chorar. Suplicou-me solenemente que me ficasse lembrando do seu destino e que nunca me esquecesse de que um homem com vinte libras esterlinas de rendimento gastasse dezanove libras, dezanove xelins e seis pence, podia ser feliz, mas que se gastasse vinte e uma libras esterlinas não podia deixar de cair na miséria. Dito o que, pediu-me emprestado um xelim para comprar «porter», deu-me uma ordem escrita pela sua mão para Mistress Micawber me embolsar dessa quantia, depois meteu o lenço no bolso e recuperou a sua alegria.

Achávamo-nos sentados diante de um pequeno fogo, pois que dois tijolos atravessados na grelha não deixavam arder muito carvão, quando um outro devedor, que partilhava do quarto de Mister Micawber, entrou trazendo o pedaço de carneiro de que devia constar a nossa refeição, despesa a meias. Mandaram-me então a um quarto situado no andar de cima, habitado pelo capitão Hopkins, com os cumprimentos de Mister Micawber, para lhe dizer que eu era um rapaz seu amigo e que ia incumbido de pedir ao capitão Hopkins se ele se dignava emprestar uma faca e um garfo.

O capitão Hopkins emprestou o talher, encarregando-me de retribuir os seus cumprimentos a Mister Micawber. Vi no seu quarto, que era pequeno, uma dama muito suja e duas raparigas pálidas, desgrenhadas. Não pude deixar de fazer com os meus botões a reflexão de que mais valia pedir emprestado ao capitão Hopkins o seu garfo e a sua faca do que o seu pente. O capitão Hopkins estava reduzido ao mais deplorável estado, vestia um casaco de por cima sem a parte de baixo e usava suíças enormes. O colchão estava enrolado a um canto; e adivinhei (sabe Deus como) que as raparigas por pentear eram bem filhas do capitão Hopkins, mas que a dama suja não era mulher dele. Não saí da soleira da porta e só ali fiz uma paragem de dois minutos quando muito, mas desci tão certo do que acabo de dizer como o estava de trazer na mão uma faca e um garfo.

Havia nesse jantar de boémios qualquer coisa que afinal de contas não era desagradável. Fui levar o garfo e a faca ao seu legítimo possuidor e regressei a casa para contar a minha visita a Mistress Micawber. Principiou por desmaiar ao ver-me e acabou por preparar dois copos de grog para nos consolarmos enquanto eu lhe contava o que se tinha passado.

Não sei como foi que se venderam os móveis para sustentar a família; não sei quem se encarregou dessa operação; em todo o caso, não andei metido nisso. Tudo foi vendido e levado numa carroça, à excepção das camas, de algumas cadeiras e da mesa da cozinha. Residíamos com esses móveis em dois compartimentos do rés-do-chão, no meio dessa casa vazia e ali vivíamos noite e dia, Mistress Micawber, os filhos, a órfã e eu. Não sei quanto tempo isso durou, parece-me que durou muito. Por fim, Mistress Micawber resolveu ir residir para a prisão, aonde Mister Micawber tinha um quarto particular. Fui encarregado de levar a chave da casa ao senhorio, que ficou contentíssimo por tomar posse do prédio e as camas, excepto a minha, foram todas para a cadeia. Alugaram-me um pequeno quarto nos arredores, com uma mansarda destinada à órfã, com grande satisfação minha; tínhamo-nos habituado, os Micawber e eu, a viver juntos, através de todas as nossas dificuldades e teríamos muita pena em separar-nos. O meu quarto era um pouco assotado e deitava para um grande estaleiro; julguei-me no paraíso quando tomei posse dele, reflectindo que a crise dos negócios de Mister Micawber tinha enfim terminado.

Eu continuava a trabalhar sempre na casa Murdstone & Grinby, tendo sempre a meu cargo a mesma ocupação material com os mesmos companheiros e experimentei sempre o mesmo sentimento duma degradação imerecida. Mas, felizmente para mim, não conhecia ninguém nem falava com nenhum dos rapazitos que todos os dias encontrava pelo caminho, na ida ou na volta, ou quando passeava pelas ruas à hora das refeições. Levava a mesma vida triste e solitária, mas o meu desgosto recalcava-o comigo mesmo. A única mudança de que eu tive consciência, é que o meu fato se tornava cada vez mais coçado e que me via livre em grande parte dos cuidados que me dispensavam Mister e Mistress Micawber, os quais viviam presos mas infinitamente mais livres de apoquentações como há muito não lhes sucedia, tendo sido socorridos na sua desgraça por parentes ou amigos. Eu almoçava com eles, segundo uma combinação cujas minudências esqueci. Também já me esqueci a que horas se abriam as grades da prisão para me deixarem entrar; sei unicamente que me levantava muitas vezes às seis horas e enquanto esperava a abertura das portas, ia sentar-me num dos bancos da velha ponte de Londres, donde me distraia a ver quem passava, ou a contemplar por cima do parapeito o sol que se reflectia na água, ou que iluminava as chamas doiradas no alto do Monumento. A órfã vinha procurar-me às vezes, para ouvir histórias de composição minha sobre a Torre de Londres; tudo quanto posso dizer é que conjecturo que eu próprio acreditava o que me punha a contar. A noite, voltava à prisão e passeava nos corredores com Mister Micawber ou jogava as cartas com Mistress Micawber, ouvindo as suas narrativas acerca do papá e da mamã. Ignoro se Mister Murdstone sabia como eu vivia então. Nunca falei nisso na casa Murdstone & Grinby.

Os negócios de Mister Micawber continuavam sempre, apesar da trégua, muito atrapalhados pelo facto de uma certa «acta» de que eu ouvia sempre falar e que suponho agora ter sido qualquer convénio anterior com os seus credores, conquanto eu compreendesse tão pouco então do que se tratava, que, se não me engano, confundia esse acto legal com os pergaminhos infernais, contratos passados com o diabo, que, dizem, existiram antigamente na Alemanha. Enfim, esse documento parece ter-se eclipsado não sei como; pelo menos, tinha cessado de ser uma pedra de escândalo como no passado e Mistress Micawber informou-me que a sua família decidira que Mister Micawber requeresse para ser posto em liberdade, aproveitando-se da lei dos devedores insolúveis e que poderia vir para a rua ao cabo de seis semanas.

— E então — disse Mister Micawber, que estava presente — não me resta dúvida que poderei, se Deus quiser, começar a livrar-me de apuros e a viver de uma maneira muito diferente, se... se... numa palavra, se a boa sorte me favorecer.

Para estar habilitado a tirar proveito do futuro, recordo-me que Mister Micawber, a esse tempo, andava compondo uma petição à Câmara dos Comuns, a pedir que se introduzissem alterações na lei que regulava as prisões por dívidas. Recolho aqui essa recordação porque isso me faz ver como eu acomodava as histórias dos meus antigos livros à história da minha vida presente, tomando à direita e à esquerda os meus personagens entre os homens e as mulheres que eu encontrava nas ruas. Diversas feições principais do carácter que involuntariamente hei-de traçar, suponho, ao escrever a minha vida, formavam-se-me desde então na alma.

Havia um club na prisão e Mister Micawber, na sua qualidade de homem bem-educado, tinha lá grande autoridade. Mister Micawber tinha desenvolvido perante o club a ideia da sua petição, a qual fora fortemente apoiada. Em consequência disso, Mister Micawber, que era dotado de excelente coração e de uma infatigável actividade quando não se tratava dos seus próprios negócios, muito contente por se ocupar de uma empresa que não podia ser-lhe de nenhuma utilidade, entregou-se à obra, compôs a petição, copiou-a numa imensa folha de papel, que estendeu em cima de uma mesa, depois convocou o club em peso e todos os habitantes da prisão, se lhes conviesse, a irem assinar esse documento ao seu quarto.

Quando ouvi anunciar a aproximação dessa cerimónia, apoderei-me de um tal desejo de os ver entrar todos uns após outros, conquanto já os conhecesse a quase todos, que obtive licença de uma hora na casa Murdstone & Grinby e depois fui-me instalar a um canto para assistir a esse espectáculo. Os principais membros do club, todos quantos tinham podido entrar no pequeno quarto sem o encher por completo, estavam diante da mesa com Mister Micawber; o meu velho amigo o capitão Hopkins, que tinha lavado a cara em honra dessa ocasião solene, instalara-se ao lado da petição para a ler aos que não lhe conheciam o teor. A porta abriu-se enfim e o povo começou a desfilar; um entrava para assinar e os restantes ficavam à porta. O capitão perguntava a cada pessoa que se apresentava:

— Já a leu?

— Não.

— Quer ouvir ler?

Se o desgraçado dava o menor sinal dissentimento, o capitão Hopkins lia-lhe tudo, sem lhe faltar uma palavra, com a voz mais sonora. O capitão lê-la-ia vinte mil vezes seguidas, se vinte mil pessoas a quisessem ouvir uma a uma. Lembro-me da ênfase com que pronunciava frases como esta:

— Os representantes do povo reunidos em parlamento... os autores da petição representam humildemente à honrada câmara... os desgraçados súbditos de sua graciosa majestade...

Parecia que estas palavras eram na sua boca uma bebida deliciosa e Mister Micawber, durante esse tempo, contemplava com um ar de vaidade satisfeita os ferros das grades das janelas.

Enquanto eu fazia o meu percurso diário da prisão a Blackfriars, vagueando à hora das refeições pelas ruas escuras, cujos empedrados talvez ainda conservem os vestígios dos meus passos de criança, pergunto de mim para mim se me esquecia algum desses personagens que sem cessar me vinham à lembrança e que formavam uma longa fila ao som da voz do capitão Hopkins! Quando os meus pensamentos regressam a essa lenta agonia da minha mocidade, espanto-me de ver as histórias que eu inventava então para essa gente flutuar ainda como um nevoeiro fantástico sobre factos reais sempre presentes à minha memória! Mas, quando passo por esse caminho tantas vezes trilhado pelos meus passos, não me espanto de ver caminhar adiante de mim um rapaz inocente, de um espírito romanesco que cria um mundo imaginário da sua estranha vida e da miséria de que tem experiência; tenho simplesmente compaixão dele.

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