David Copperfield (1850)

By ClassicosLP

2.2K 121 9

Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo III - Uma mudança
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me

26 2 0
By ClassicosLP

O primeiro acto de autoridade com que se estreou miss Murdstone, quando passou o dia solene e que a luz recuperou o seu livre acesso através das janelas, foi prevenir Peggotty que tinha de ir embora dentro de um mês. Por maior que fosse a repugnância de Peggotty em servir Mister Murdstone, creio que preferiria fazê-lo por amor de mim do que entrar para a melhor casa que houvesse no mundo. Mas enfim, vendo-se despedida, disse-me que era preciso apartarmo-nos e qual a razão, e lamentámo-nos um e outro com toda a sinceridade.

Quanto a mim e ao futuro que me estava reservado, não ouvia dizer palavra, nem via dar um único passo. Bem quereriam eles, penso, poder desembaraçar-se de mim como da Peggotty com um mês de soldadas. Reuni um dia toda a minha coragem para perguntar a miss Murdstone quando devia regressar ao colégio e ela respondeu-me secamente que supunha que eu não voltaria para lá. Foi tudo. Eu estava muito inquieto por saber o que ia ser de mim; Peggotty preocupava-se também com o meu futuro, mas nem ela nem eu podíamos obter qualquer informação a tal respeito.

Operara-se na minha situação uma mudança que, livrando-me de grandes desgostos no momento presente, poderia, se eu soubesse reflectir seriamente, dar-me muito que pensar sobre o futuro. O facto era este: o constrangimento que se me impusera desaparecera por completo. Faziam tão pouco caso em me ver ficar no meu triste posto na sala, que diversas vezes miss Murdstone me fez sinal, franzindo as sobrancelhas, para me retirar, no momento em que ia a sentar-me; proibiam-me tão pouco de procurar a companhia de Peggotty, que, contanto que não fosse na presença de Mister Murdstone, não se importavam de me procurar nem de perguntar nunca aonde é que eu estava. A princípio assustou-me a ideia de que Mister Murdstone ia incumbir-se de continuar a minha educação, talvez até que fosse sua irmã quem se dedicasse a essa tarefa ingrata, mas cheguei bem depressa à conclusão de que os meus receios não tinham fundamento e que se liquidariam por eu ser abandonado.

Esta descoberta não me causou então, muito desgosto; estava ainda atordoado pelo golpe que tinha sofrido com a morte de minha mãe e por consequência indiferente a todas as coisas deste mundo. Recordo-me bem de ter reflectido de tempos a tempos que era possível que não aprendesse mais nada, que não recebesse mais cuidados de ninguém; que me tornasse um triste cavalheiro, destinado a passar a inútil vida a flanar pela aldeia; lembro-me também de ter dito com os meus botões se não seria uma coisa praticável evitar as desgraças que previa indo-me embora, como um herói de romance, procurar fortuna noutra parte, mas não passavam de transitórias visões, de sonhos que realizava acordado, de sombrinhas chinesas que desenhavam por um momento a sua forma ligeira nas paredes do meu quarto para se esvaírem logo e apenas deixarem a nudez da parede.

— Peggotty — disse eu num dia em tom apreensivo quando aquecia as mãos ao fogão da cozinha —, Mister Murdstone gosta ainda menos de mim que dantes. Ele já não gostava muito de mim, Peggotty, mas agora o seu desejo seria não me pôr mais a vista em cima, se pudesse.

— Talvez isso provenha do desgosto que sofreu — disse Peggotty, passando-me a mão pelos cabelos.

— Todavia eu também tenho desgosto, Peggotty. Se eu soubesse que isso provinha do seu desgosto não pensaria em tal. Mas não, não é isso, não é isso.

— Como é que sabe? — prosseguiu Peggotty após um momento de silêncio.

— Oh! O seu desgosto não é completamente como o meu; ele está triste neste momento, sentado ao pé do fogo com miss Murdstone, mas se eu entrasse, Peggotty, ele ficaria...

— Ficaria o quê? — disse Peggotty.

— Encolerizado — respondi eu, e imitei involuntariamente o franzir das suas sobrancelhas. — Se só fosse tristeza, não me olhava como me olha. Eu também estou triste, mas parece-me que a minha tristeza me dispõe antes para a benevolência.

Peggotty conservou-se silenciosa um momento e eu continuei a aquecer as mãos sem dizer mais nada.

— David! — disse ela por fim.

— Que é, Peggotty?

— Eu tenho procurado, meu querido menino, tenho procurado por todos os modos e feitios conhecidos e por conhecer, arranjar colocação aqui em Blunderstone, mas não há nada que me possa convir, meu querido.

— E que tenciona fazer, Peggotty? — disse eu tristemente. — Onde é que tenciona ir procurar fortuna?

— Creio que serei obrigada a ir viver em Yarmouth — disse Peggotty.

— Um pouco mais longe ainda — disse eu gracejando um pouco — e ficaria perdida para mim, mas lá poderei vê-la ainda algumas vezes, minha boa velha Peggotty. Não é de todo para o outro cabo do mundo, pois não?

— Pelo contrário; se Deus quiser — exclamou Peggotty com uma grande animação —, enquanto o meu querido menino aqui estiver eu virei vê-lo todas as semanas, uma vez por semana enquanto viva for.

Esta promessa tirou-me uma grande inquietação; mas não era tudo, Peggotty continuou:

— Primeiro vou a casa de meu irmão, sabe, David, passar uns quinze dias, a fim de pensar no que hei-de fazer e restabelecer-me um pouco. E daí pensava que talvez agora, como não há grande necessidade de o menino aqui estar, que poderiam também deixá-lo vir comigo.

Se alguma coisa podia fazer-me experimentar um sentimento de prazer neste momento em que tão pouco tinha que estar satisfeito com todos quantos me rodeavam, à excepção de Peggotty, era bem esse projecto. A ideia de tornar a ver todos esses rostos honestos iluminados por um sorriso de boas vindas, de tornar a encontrar a tranquilidade da manhã do domingo, o sorriso dos sinos, o ruído das pedras chapinando na água, ver os navios semi-desenharem-se na neblina, vaguear pela costa com a Emilita, contando-lhe os meus desgostos e consolar-me procurando com ela seixos e alcofinhas na praia, tudo isso tornava a restituir-me a tranquilidade ao coração. O meu repouso foi perturbado um instante depois pela dúvida de saber se miss Murdstone daria o seu consentimento. Mas esta mesma inquietação dissipou-se depressa; porque no momento em que ela apareceu a dar a sua volta da noite, às apalpadelas, pela cozinha, enquanto ainda conversávamos, Peggotty abordou a questão com uma audácia que me espantou:

— Vai perder tempo para lá — disse miss Murdstone olhando para um frasco de pepinos de conserva — e a ociosidade é a mãe de todos os vícios; mas creio bem que lá ou cá faria a mesma coisa.

Peggotty esteve vai-não-vai a responder logo, mas conteve-se pelo afecto que me consagrava e calou-se.

— Bem! — disse miss Murdstone olhando sempre para os pepinos —, há uma coisa mais importante que tudo o mais, da mais alta importância; é que meu irmão não seja nem incomodado nem contrariado. Assim suponho que farei bem em dizer que sim.

Agradeci-lhe, mas sem manifestar a minha alegria com receio dela me retirar o seu consentimento. Não pude deixar de pensar que procedera prudentemente, quando encontrei o olhar que ela me deitou por cima do frasco dos pepinos: parecia que todo o seu azedume lhe passara para os olhos pretos. Todavia a licença era concedida e não foi retirada e no fim do mês que tinham concedido a Peggotty, estávamos ambos prontos a partir.

Mister Barkis entrou em casa para buscar a mala de Peggotty. Nunca vi que anteriormente ele ultrapassasse a grade do jardim, mas desta vez entrou até dentro de casa; e, carregando ao ombro a mala maior, deitou-me um olhar que queria dizer qualquer coisa, se é certo que o rosto de Mister Barkis algum dia quisesse dizer coisa alguma.

Naturalmente Peggotty estava um pouco triste ao deixar uma casa em que habitara há tantos anos e aonde se tinha afeiçoado às duas criaturas que mais amava no mundo, minha mãe e eu. De manhã muito cedo foi de visita ao cemitério e quando saiu para a tipóia levava o lenço nos olhos.

Enquanto ela conservou essa posição, Mister Barkis não deu o mais leve sinal de vida. Estava no seu lugar habitual, na costumada atitude, como um grande manequim. Mas quando ela começou a olhar em torno de si e a falar-me, ele meneou a cabeça e pôs-se a rir muitas vezes a seguir, nem sei de quê nem porquê.

— Lindo dia, senhor Barkis! — disse eu então por cortesia.

— O tempo não está mau — disse Mister Barkis, que era geralmente muito reservado nas suas expressões e que não gostava de se comprometer.

— Peggotty está agora completamente restabelecida, senhor Barkis — notei, para lhe dar gosto.

— Sim? — disse Mister Barkis.

Depois de ter reflectido, deitou-lhe um olhar astucioso e disse-lhe:

— Acha-se completamente bem?

Peggotty pôs-se a rir e respondeu afirmativamente.

— Mas completamente bem, está certa? — resmungou Mister Barkis aproximando-se dela pouco a pouco e dando-lhe uma leve cotovelada. — Está certa? Deveras completamente bem? Está bem certa disso?

E a cada uma destas perguntas que Mister Barkis acompanhava de uma nova cotovelada, ia-se aproximando dela por tal forma que, no fim, estávamos todos num montão ao canto esquerdo da tipóia e eu fiquei tão apertado que quase não podia tomar a respiração.

Peggotty chamou a atenção de Mister Barkis para o que eu estava sofrendo e ele deu-me uma nesga de lugar e foi-se retirando aos poucos. Mas eu não pude deixar de notar que essas aproximações incómodas eram a meu ver um maravilhoso meio de ele exprimir a sua boa vontade de uma maneira clara, agradável e fácil, sem ser obrigado a despesas de conversação. Muito tempo ainda depois estava ele todo regozijado. Daí a pouco, voltou-se de novo para Peggotty e renovando a sua pergunta: «Acha-se bem, mas completamente bem?» apertou de novo o torniquete contra nós, a ponto de quase me sufocar. Retirou pouco depois a pergunta e as manobras. Tomei então o partido de me levantar, mal o via ir-se aproximando e conservava-me de pé à frente, sob o pretexto de contemplar a paisagem; este expediente deu-me resultado.

Ele teve a cortesia de parar à porta de uma estalagem, com o fim expresso de nos obsequiar com cerveja e carneiro guisado. Enquanto Peggotty bebia, foi tomado novamente de um dos seus acessos de galanteria: estava a ver o momento em que ela ia sufocar de riso. Mas, ao aproximar-se o fim da viagem, achava-se muito ocupado para pensar em nós, e, uma vez no empedrado de Yarmouth, estávamos todos muito a contas com os solavancos, creio, para termos vagar de pensar noutra coisa.

Mister Peggotty e Ham esperavam-nos. Receberam-me a mim e a Peggotty da maneira mais afectuosa e deram um aperto de mão a Mister Barkis, que atirara o chapéu para a nuca, sorrindo com ar acanhado que parecia quase comunicar-se-lhe às pernas, um pouco trémulas ao que me pareceu. Mister Peggotty pegou numa das malas da irmã, Ham encarregou-se da outra e eu ia a segui-la, quando Mister Barkis me fez misteriosamente sinal para lhe ir falar.

— Tudo vai bem — resmoneou Mister Barkis.

Eu olhei-o de frente dizendo «Ah!» num tom que queria tornar muito profundo.

— Não ficou tudo naquilo — disse Mister Barkis com um meneio de cabeça confidencial. — Vai tudo bem.

Eu respondi de novo:

— Ah!

— Sabe quem é que estava pronto? — disse o meu amigo. — Era Barkis, Barkis sozinho.

Eu fiz sinal de assentimento.

— Muito bem! Agora tudo vai bem, graças ao senhor; sou seu amigo; tudo vai bem! — e Mister Barkis pespegou-me um aperto de mão.

Nos seus esforços para se explicar com uma grande lucidez, Mister Barkis tornara-se tão extraordinariamente misterioso que eu poderia ficar a olhar para ele uma hora sem recolher mais informações no seu rosto do que no mostrador de um relógio parado, quando Peggotty me chamou. Pelo caminho perguntou-me o que é que ele me tinha dito. Respondi-lhe ter-me ele dito que ia tudo bem.

— É adiantar-se muito — disse Peggotty —, mas pouco me importa. David, meu caro filho, que diria se eu me casasse?

— Mas... suponho que me amaria tanto como agora — respondi eu após um momento de reflexão.

Com grande espanto dos transeuntes e de seu irmão que marchava à nossa frente, a boa mulher não pôde deixar de parar para me beijar no mesmo instante, protestando a sua inalterável afeição por mim.

— E então, que é que me diz ao que lhe disse, meu querido? — prosseguiu ela, terminado este episódio, depois de já nos termos posto a caminho.

— Se tivesse a ideia de se casar... com Mister Barkis, Peggotty?

— Sim — disse Peggotty.

— Parece-me que seria uma coisa magnífica, porque, sabe, Peggotty, teria a tipóia e o cavalo para me vir ver e poderia vir com toda a certeza e ainda por cima de graça!

— Como tem juízo este menino! — exclamou Peggotty. — É precisamente isso o que eu tenho dito de mim para mim há um mês. Sim, meu querido e penso que serei mais independente e que trabalharei de melhor vontade em minha casa do que na casa de outros. Não sei se me afiaria a servir estranhos. E depois, ficarei perto da sepultura da minha pobre senhora — disse Peggotty a meia voz — e poderei ir vê-la quando me apetecer; e, quando eu morrer, poderão enterrar-me não longe dela.

Ficámos um instante calados, pouco tempo depois destas palavras. Ela prosseguiu alegremente:

— Mas não pensarei em tal, se isso não for do agrado do meu Davidzinho, ainda que os banhos se corressem vinte vezes e que eu tivesse já no bolso a minha aliança!

— Olhe para mim, Peggotty — respondi —, e verá como estou contente.

E, de facto, eu desejava de todo o coração o casamento de Peggotty.

— Muito bem! Meu querido — disse Peggotty apertando-me um pouco um braço —, tenho pensado noite e dia de todas as maneiras e conto não me arrepender. Mas hei-de ainda reflectir mais: quero falar a meu irmão e enquanto se espera teremos o menino ao pé de nós, David. Barkis é um bom homem, todo sincero — disse Peggotty —, e se eu fizer por cumprir os meus deveres para com ele creio que só por culpa minha é que não estarei... é que não estarei completamente bem — disse Peggotty rindo com toda a vontade.

Esta citação, extraída das próprias palavras de Mister Barkis, tinha sido tão bem metida e divertiu-nos tanto, que as nossas risadas duraram até ao momento em que nos achámos à vista da casa de Mister Peggotty.

Não tinha mudado essa casa, salvo que a achava talvez um pouco mais pequena: e Mistress Gummidge lá estava de pé, à porta, como se não se tivesse mexido dali desde a minha última visita. O interior não tinha sofrido mudanças, como não as tinha sofrido o exterior. O pequeno vaso azul do meu quarto estava sempre cheio de plantas marinhas. Dei uma volta pela barraca e encontrei no sítio do costume as lagostas, os caranguejos e os camarões, formando, como dantes, uma massa compacta sempre possessos do mesmo desejo de trilharem os dedos a todo o universo. Mas não via a Emília, perguntei a Mister Peggotty aonde a poderia encontrar.

— Está na mestra, senhor David — disse Mister Peggotty enxugando a testa depois de pousar a mala do irmão —, não tarda por aí — acrescentou olhando para o velho relógio. — São mais vinte minutos, meia hora a estalar; todos nós sentimos a ausência dela, afianço-lhe.

Mistress Gummidge suspirou.

— Leva arriba, tia Gummidge! — grita Mister Peggotty.

— Eu é que sinto mais que ninguém — disse Mistress Gummidge —, sou uma pobre mulher sem eira nem beira, e é a única pessoa com quem eu não tenho contrariedade.

Mistress Gummidge sempre queixosa e meneando a cabeça, pôs-se a soprar ao lume. Mister Peggotty voltou-se para nós, enquanto ela estava assim ocupada e disse-me em voz baixa pondo a mão em frente da boca: «É o defunto!», o que me fez supor com razão que o génio de Mistress Gummidge não tinha feito progresso algum depois da minha última visita.

A casa era, ou pelo menos devia ser tão encanadora como dantes e todavia não me produzia a mesma impressão. Eu estava um pouco contrariado. Isso provinha, talvez, da Emilita não estar presente. Eu sabia o caminho por onde ela devia vir e daí a pouco ia ao seu encontro.

Passado um momento, descobri ao longe alguém que logo reconheci, era a Emília. Tinha crescido, mas ainda era pequeia. Quando se aproximou e que eu vi os seus olhos mais azuis que nunca, o seu rosto mais radioso que dantes e toda a sua pessoa mais linda e mais atraente, senti uma estranha sensação que me deu a ideia de fingi que não a reconhecia e de passar sempre a direito, como se estivesse a olhar para qualquer coisa ao longe. Fiz outro tanto mais de uma vez na minha vida, se não me engano. À Emilita não se importava. Via-me bem, ruas em vez de se voltar e de me chamar, desatou a correr rindo. Isso obrigou-me a correr atrás dela; mas a pequena fugia tão depressa, que só quando chegámos muito perto da choupana é que eu a pude agarrar.

— Ah! É o senhor? — disse ela.

— A Emília bem sabia que era eu.

— E o senhor, não sabia também que era eu? — retorquiu a pequena.

Eu ia para a beijar, mas ela pôs as mãos nos lábios, dizendo-me que já não era nenhuma criança e fugiu para casa a rir tom mais vontade que nunca.

Ela parecia divertir-se em implicar comigo e esta mudança nas suas maneiras admirava-me muito. A mesa estava posta; o velho baú pequeno estava no seu lugar costumado, mas em vez de vir sentar-se ao pé de mim foi tomar lugar junto de Mistress Gummidge, que continuava a gemer e quando Mister Peggotty lhe perguntou porque o fria, sacudiu os seus cabelos sobre o rosto e não respondeu, mas riu-se.

— É uma gatinha — disse Mister Peggotty afagando-a docemente.

— Sim, é uma gatinha! — exclamou Ham. — Sim, Mister David, olhe que é!

E olhava para ela, rindo muito com um misto de admiração e êxtase, que lhe tornava a cara vermelha como um morango.

O facto é que todos a enchiam de mimos e Mister Peggotty mais que ninguém; ela fazia dele o que queria, bastava aproximar a sua face das suas grandes suíças. Pelo menos, era a minha opinião quando eu via que ela o acariciava e eu achava que Mister Peggotty tinha muita razão; ela era tão afectuosa e tão afável, tinha uns olhares ao mesmo tempo tão finos e tão tímidos, que me conquistou o coração mais que nunca.

Ela era também muito sensível e quando Mister Peggotty, sempre fumando no seu cachimbo ao pé do fogão, aludiu à perda por que eu acabava de passar, os olhos da Emília arrasaram-se de lágrimas e olhou para mim com tanta bondade, do outro lado da mesa, que eu fiquei-lhe reconhecidíssimo.

— Ah! — disse Mister Peggotty pegando nos anéis do cabelo da sua Emilita e deixando-os cair um a um —, aqui temos nós uma órfã, ora veja, Sr. Davy e aí está um órfão! — continuou Mister Peggotty, dando com as costas da mão uma vigorosa pancada no peito de Ham, conquanto não parecesse que o ia fazer.

— Se eu o tivesse por tutor, Sr. Peggotty — disse acenando com a cabeça —, creio que não me sentiria órfão.

— Bem dito, Sr. David! — exclamou Ham com entusiasmo. — Hurra! Bem dito! Tem muita razão.

E restituiu a Mister Peggotty a lambada de há pouco, enquanto a Emilita se levantava para o ir beijar.

— E como vai o seu amigo, Sr. Davy? — perguntou-me Mister Peggotty.

Mister Steerforth? — disse eu.

— Ah! Esse nome é que é! — exclamou Mister Peggotty, voltando-se para Ham. — Eu bem sabia que era qualquer coisa assim.

— Mas você dizia que era Rudderfort! — exclamou Ham a rir.

— E então! — respondeu Mister Peggotty — não andei por longe... Se não há rude,forte, que vem a dar na mesma. Como vai ele?

— Estava muito bem quando o deixei, Sr. Peggotty.

— Esse é que é um amigo! — tornou Mister Peggotty sacudindo a cinza do cachimbo. — Fale-me de um amigo assim! Palavra de honra, que dá gosto vê-lo.

— Tem uma bonita figura, pois não tem? — disse eu, porque o meu coração tomava calor ao elogiá-lo.

— Uma bela figura? — disse Mister Peggotty. — Creio bem; está-se diante de uma pessoa como... não sei quê. Tem um ar tão decidido!

— Sim, é precisamente o seu carácter — prossegui eu por minha vez —, valente como um leão e a franqueza em pessoa, Sr. Peggotty.

— E suponho — continuou Mister Peggotty, olhando para mim através do fumo do seu cachimbo — que quando se trate de aprender nos livros, ele há-de passar adiante de todos!

— Sim — disse eu com transporte —, ele sabe tudo; ninguém imagina a inteligência que ali está.

— Esse é que é um amigo! — murmurou Mister Peggotty meneando gravemente a cabeça.

— Nada o apoquenta — continuei eu. — Basta-lhe deitar os olhos a uma lição para a ficar sabendo; no jogo da barra é sempre o mais forte; no jogo das damas dá quantas pedras o adversário quiser de partido e ainda assim o derrotará facilmente.

Mister Peggotty abanou de novo a cabeça, como para dizer: «Certamente que o derrotará».

— E fala tão bem! Não há outro como ele. Eu desejava somente que pudesse ouvi-lo cantar, Sr. Peggotty.

Mister Peggotty fez um novo movimento de cabeça, como para dizer: «Não duvido nada».

— E depois é tão generoso, tão bom — continuei eu, arrastado pelo meu assunto favorito — que por mais que se diga, não se pode dizer dele todo o bem que merece. Quanto a mim, nunca poderei pagar com todo o reconhecimento a protecção que me dispensou, estando eu tão distante dele, em idade e em estudos.

Eu falava assim, com muita vivacidade, quando o meu olhar caiu sobre a Emilita, que se inclinara para a frente, em cima da mesa, para me ouvir com a mais profunda atenção, sem respirar, os seus olhos azuis a brilharem como duas estrelas e as faces todas coradas. Estava tão bonita e tinha um ar tão admiravelmente sério, que eu parei atónito, o que fez com que todos olhassem para ela ao mesmo tempo e se pusessem a rir.

— A Emília é como eu — disse Peggotty —, desejaria vê-lo.

Emília envergonhou-se quando viu que olhávamos para ela; baixou a cabeça e corou muito. Depois, lançando um olhar através dos seus anéis soltos, descobriu que os nossos olhos ainda estavam fitos nela (pela minha parte eu olharia de boa vontade uma hora); fugiu e só voltou quando eram horas de deitar.

Eu ocupava a minha caminha à popa do barco, aonde o vento assobiava como dantes. Mas não podia deixar de pensar que também gemia sobre aqueles que já não existiam e em vez de imaginar, como da outra vez, que o mar subiria durante a noite e poria o barco a nado, dizia de mim para mim que o mar subira depois do tempo em que eu ouvira o ruído do vento sobre as vagas e que esse mar tinha levado a felicidade da minha vida! Recordo-me de que quando o vento e o mar acalmaram um pouco, pedi a Deus nas minhas orações que me deixasse crescer para casar com a Emilita; e com isto adormeci tranquilamente.

Os dias foram decorrendo pouco mais ou menos como dantes; somente e era grande a diferença, a Emilita raras vezes passeava comigo pela praia. Tinha as lições a estudar, serviço a fazer e estava ausente na maior parte do dia. Mas eu sentia que, mesmo sem estes obstáculos, não poderíamos gozar os antigos passeios. Por mais caprichosa e cheia de fantasia que fosse Emília como criança, não era já uma pequenita, era sim uma mulherzita. Parecia-me que só esse ano tinha estabelecido uma grande diferença entre nós. Ela tinha-me amizade, mas mangava comigo e fazia-me zangar; quando eu ia ao seu encontro, ela tomava por outro caminho e quando eu chegava a casa muito contrariado, já a encontrava à porta, a rir a bandeiras despregadas. O melhor momento do dia era aquele em que ela costurava; eu sentava-me a seus pés e lia-lhe qualquer coisa. Parece-me ainda que nunca vi sol tão brilhante durante os lindos dias de Abril, que nunca encontrei uma criaturinha tão encantadora como a que trabalhava sentada à porta do velho barco e que nunca encontrei depois um céu tão puro, um mar tão azul, nem navios que vogassem ao longe tão dourados pelo sol.

Na primeira noite depois da nossa chegada, apareceu Mister Barkis, com um ar muito acanhado e muito constrangido; trazia um lenço atado com nós nas pontas e cheio de laranjas. Como não tinha feito alusão alguma a esta parte da sua propriedade, supôs-se, quando ele se retirou, que se tinha esquecido do embrulho e Cham correu atrás dele para lho entregar, mas regressou com a declaração de que as laranjas eram para Peggotty. Desde então apareceu regularmente todas as noites, exactamente à mesma hora, sempre com um embrulhozito em que nunca falava e que pousava atrás da porta quando a abria. As ofertas eram da espécie mais variada e mais extraordinária. Recordo-me, entre outras, de uma enorme pregadeira, de um alqueire de maçãs, de um par de brincos de azeviche, de uma provisão de cebolas de Espanha, de uma caixa de dominó, e, finalmente, de um canário dentro de uma gaiola e de um presunto de conserva.

Mister Barkis fazia a sua corte, parece-me, de uma maneira particularíssima. Falava por falar e ficava sentado junto do fogão na mesma atitude que dentro da tipóia, olhando fixamente para Peggotty, que trabalhava na frente dele. Uma noite, inspirado, suponho, pelo amor, apoderou-se de um coto de vela que ela empregava para encerar a linha e meteu-o preciosamente no bolso do colete. Desde então, a sua grande alegria consistia em apresentar o coto quando Peggotty precisava dele e ainda que meio derretido e geralmente colado ao forro do bolso, tomava cuidadosamente posse dele, mal Peggotty terminava a sua operação. Tinha um ar muito feliz e não se julgava evidentemente obrigado a falar. Mesmo quando ia passear com Peggotty pela praia, Barkis não se dava muito mal para entreter conversa; contentava-se em perguntar-lhe de tempos a tempos se estava completamente bem; lembro-me que às vezes, depois dele ir embora, Peggotty deitava o avental para a cabeça e ria durante meia hora. O grande caso é que todos nos divertíamos mais ou menos, à excepção dessa infeliz Mistress Gummidge, a quem provavelmente o seu marido tinha feito a corte, no seu tempo, exactamente da mesma maneira, porque as maneiras de Mister Barkis evocavam constantemente o «defunto» à sua lembrança.

Aproximava-se o fim da minha visita quando fomos prevenidos de que Peggotty e Mister Barkis iam ter ambos um dia de feriado e que eu havia de acompanhá-los com a Emília. Pouco dormi na noite da véspera, à espera de um dia inteiro a passar com ela. Era muito cedo e já estávamos todos a pé e ainda não tínhamos acabado de almoçar, quando Mister Barkis apareceu ao longe, guiando a sua carripana, para levar o objecto das suas afeições.

Peggotty estava vestida de luto, como de ordinário, mas Mister Barkis vinha resplandecente: trazia um casaco azul novo a estrear; o alfaiate tinha executado uma medida tão exacta, que os canhões das mangas tornavam as luvas inúteis, mesmo num tempo frigidíssimo; quanto à gola, era tão alta que lhe arrepiava os cabelos da parte de trás e fazia-os ficar em pé. Os botões de metal eram da maior dimensão. Umas calças cinzentas e um colete amarelo completavam o vestuário de Mister Barkis, que eu olhava como um modelo de elegância.

Quando já estávamos fora de casa, descobri Mister Peggotty tendo na mão um sapato velho que queria mandar atirar atrás de nós, para nos dar felicidade e oferecia-o nessa conformidade a Mistress Gummidge.

— Não, vale mais que seja outra pessoa, Daniel — disse Mistress Gummidge. — Eu não passo de uma pobre criatura perdida, sem eira nem beira e contraria-me muito tudo quanto me recorde que há criaturas no mundo que não são perdidas, sem eira nem beira e sós como eu.

— Vamos, minha velhota — disse Mister Peggotty —, pegue no sapato e atire-o.

— Não, Daniel — respondeu Mistress Gummidge gemendo e sacudindo a cabeça —, se eu sentisse as coisas menos vivamente, estava bem. O senhor não é como eu, Daniel; nada o contraria e não contraria ninguém. Vale mais que seja o senhor.

Neste ponto, Peggotty, que tinha beijado a todos com o ar um pouco perturbado, gritou da carripana, aonde nós já todos estávamos (Emília e eu em duas cadeiras pequenas) que era Mistress Gummidge a quem competia atirar o sapato. Ela decidiu-se por fim, mas desgosta-me dizer que aguou ligeiramente o ar de festa da nossa partida, chorando imediatamente como uma bica, depois do que deixou-se cair nos braços de Cham, declarando que bem sabia que era um grande estorvo e que mais valia levarem-na imediatamente para o asilo. Eu achava isso muito razoável e teria aprovado que Cham lhe prestasse esse pequeno serviço. Mas eis-nos a caminho para a nossa digressão. Mister Barkis parou daí a pouco à porta de uma igreja, prendeu o cavalo aos ferros da grade e depois entrou com Peggotty, deixando-me só com a Emília na tipóia. Aproveitei essa ocasião para lhe passar o meu braço pela cintura e para lhe propor, pois que depressa devia deixá-la, para tomarmos o partido de sermos muito ternos um para o outro e muito felizes todo o dia. Ela consentiu e deu-me licença até para a beijar; em seguida a este favor, afoitei-me a ponto de dizer-lhe (lembro-me ainda disso) que nunca amaria outra mulher e que estava decidido a derramar o sangue de quem quer que pretendesse o seu afecto.

Foi desta feita que a Emilita se divertiu à minha custa. Era de ver as suas pretensões de ser muito mais velha e de mais juízo que eu, o que fazia dizer à pequena e encantadora fada que eu era «um patetinha». Depois largou a rir tão alegremente, que me esqueci do desgosto de ouvir dar-me um nome tão desprezível, só pelo prazer completo de a ver rir.

Mister Barkis e Peggotty estiveram muito tempo na igreja, mas por fim regressaram e tomámos o caminho do campo. Quando íamos no caminho, Mister Barkis voltou-se para mim e disse-me com um olhar malicioso de que eu não o suporia capaz:

— Sabe que nome eu tinha escrito na tipóia?

— Clara Peggotty — respondi eu.

— E que nome seria preciso escrever agora, se eu tivesse um canivete?

— Sempre Clara Peggotty, ou não?

— Clara Peggotty Barkis!

E soltou uma risada que parecia abalar os tabiques da tipóia.

Numa palavra, tinham casado; era essa a razão por que haviam entrado na igreja. Peggotty decidira que tudo se realizasse à capucha e o maceiro fora a única testemunha da cerimónia. Ela ficou um pouco confusa ao ouvir Mister Barkis anunciar tão bruscamente a sua união e não se fatigava de me beijar para me provar que a sua afeição por mim nada tinha diminuído. Mas sossegou daí a pouco e disse-me que estava encantada de que tivesse sido um assunto dito e feito.

Parámos num atalho aonde havia uma pequena estalagem; já lá nos esperavam; o jantar foi muito alegre e o dia passou-se da forma mais satisfatória. Peggotty podia casar-se todos os dias em dez anos a seguir, que não teria o ar mais à vontade: estava completamente como de ordinário; saiu com a Emília e comigo antes do chá, para darmos um passeio, enquanto que Mister Barkis cachimbava filosoficamente, regalado e contente, suponho, pelo prazer de contemplar a sua felicidade em perspectiva. Em todo o caso, as suas reflexões contribuíram para lhe reavivar o apetite, porque me lembra que, apesar de ter comido muita carne de porco fresca e legumes e de ter metido no bucho um frango ou dois ao jantar, foi obrigado a pedir uma talhada de toucinho, ao chá, do qual fez desaparecer um bom naco, sem a menor emoção.

Pensei depois muitas vezes que fora um dia de boda bastante inocente e pouco conforme aos hábitos admitidos. Tornámos para os nossos lugares da tipóia, quando anoiteceu e durante a caminhada contemplava-mos as estrelas; era eu como que o demonstrador encartado e quem abria a Mister Barkis horizontes desconhecidos. Disse-lhe tudo quanto sabia; ele acreditaria à boa tudo quanto me viesse à cabeça, tão convencido estava da extensão da minha inteligência; chegou até a declarar a sua mulher, na minha presença, que eu era um pequeno Roschius; compreendi que ele queria dizer com isso que eu era um pequeno prodígio.

Esgotado o assunto das estrelas, ou antes chegadas ao termo as faculdades de compreensão de Mister Barkis, a Emilita e eu embrulhámo-nos juntos numa velha capa que nos abrigou durante o resto da viagem. Ah! Eu amava-a tanto! Que felicidade, disse eu com os meus botões, se fôssemos casados e fôssemos viver nos campos, no meio do arvoredo, sem nunca envelhecermos, sem nunca sabermos mais, sempre crianças, sempre vagueando, de mãos dadas, pelas campinas cheias de flores, por um lindo sol, repousando a cabeça à noite, muito perto um do outro, numa cama de musgo, para dormirmos num sono puro e pacífico, esperando que à hora da nossa morte viessem os passarinhos enterrar-nos! Este quadro fantástico, bem afastado do mundo real, brilhante pelo esplendor da nossa inocência e tão vago como as estrelas por cima das nossas cabeças, galopou-me na cabeça durante toda a caminhada. Estimo bem pensar que Peggotty, no dia do seu casamento, tinha por companheiros dois corações tão cândidos como o da Emilita e o meu. Os Amores e as Graças, cortejo indispensável e clássico do deus timeneu, não teriam feito melhor.

Chegámos com muita felicidade à porta do velho barco; aí despediram-se de nós Mister e Mistress Barkis, para tomarem o caminho de sua casa. Pela primeira vez senti então que tinha perdido Peggotty. Devia ter o coração muito atormentado nessa noite, se descansasse a cabeça sob um outro tecto que não fosse o que também abrigava a Emilita.

Mister Peggotty e Cham sabiam tão bem como eu o que eu sentia e esperavam-me para cear, com os rostos honestos e afectuosos, a fim de afastarem os meus tristes pensamentos. A Emilita, pelo seu lado, tomou lugar no baú que nos servia de assento. Foi a única vez que o fez durante todo o tempo que ali passei e foi também o fecho encantador desse inolvidável dia.

Nessa noite havia preia-mar e, pouco tempo depois de nos deitarmos, Mister Peggotty e Cham saíram para a pesca. Eu sentia-me orgulhoso por ficar nessa casa solitária para proteger Mistress Gummidge e a Emilita; eu só desejava que aparecesse um leão ou uma serpente, ou qualquer outro animal feroz, que nos viesse atacar, para ter a honra de o exterminar e cobrir-me assim de glória. Mas não tendo os monstros escolhido nessa noite a praia de Yarmouth para as suas incursões, eu supri-os o melhor que pude sonhando toda a noite com dragões.

Surgiu a manhã e Peggotty também: chamou-me pela janela, como de costume, como se Mister Barkis, o recoveiro, não fosse ele próprio mais que um sonho até ao fim. Depois de almoço, levou-me a casa dela: era uma residência pequena, mas bonita. Entre todos os móveis que encerrava, suponho que o que me causou mais impressão foi uma velha secretária de madeira escura na sala de jantar (a cozinha servia ordinariamente de sala), com uma tampa engenhosa, que deitando-se para baixo armava em escrivaninha, tendo em cima um grosso volume in quarto, os Martyres de Fox. Descobri imediatamente esse precioso alfarrábio e apoderei-me dele; não me lembra uma palavra do seu conteúdo, o que somente sei é que nunca ia àquela casa que não me ajoelhasse numa cadeira para abrir a caixa que continha esse tesouro, depois encostava-me à escrivaninha e começava a ler. Eu estava sobretudo edificado, ainda tenho medo, pelas numerosas estampas que representavam todas as espécies de atrozes torturas; mas a história dos Martyres e a casa de Peggotty eram e são ainda inseparáveis no meu espírito.

Despedi-me nesse dia de Mister Peggotty, de Ham, de Mistress Gummidge e da Emilita; e dormi em casa de Peggotty num pequeno quarto assotado, que ficava sendo meu, dizia Peggotty e que me ficava reservado sempre tal qual como estava; bem entendido que o livro dos crocodilos não faltava; estava pousado numa prateleira ao lado da cama.

— Nova ou velha, enquanto eu viver e que este tecto me cubra, meu caro David — disse Peggotty —, conservarei o seu quarto, como se o senhor estivesse para chegar de um para outro momento. Cuidarei dele todos os dias, meu querido, como dantes fazia e ainda que vá para a China, pode estar certo de que o seu quarto ficará no mesmo estado, em todo o tempo que andar ausente.

Comovia-me profundamente a fiel ternura da minha querida criada e agradeci-lhe o melhor que pude, o que não me foi muito fácil, porque faltava-me tempo. Era de manhã que ela me falava assim, tendo-me lançado os braços em volta do pescoço e nessa mesma manhã devia eu regressar a casa na tipóia, com ela e com Mister Barkis. Largaram-me, com muita pena, junto da grade do jardim e não vi sem pesar a tipóia afastar-se, levando Peggotty, deixando-me ali sozinho debaixo dos velhos olmos, em frente dessa casa onde não havia mais ninguém que me amasse.

Caí então num estado de abandono em que não posso pensar sem compaixão. Vivia à parte, sozinho, sem que ninguém se importasse comigo, afastado da companhia dos pequenos da minha idade e tendo por única companhia os meus tristes pensamentos, que me parece estão ainda lançando a sua sombra neste papel em que escrevo.

O que não daria eu para que me mandassem para um colégio, por mais severamente dirigido que pudesse ser, aprender qualquer coisa, não importava o quê, não importava como! Mas não tinha essa esperança, não gostavam de mim e desprezavam-me voluntariamente, com perseverança e crueza. Creio que a fortuna de Mister Murdstone estava então embrulhada, mas de resto ele não me podia tolerar e tratava, abandonando-me a mim próprio, de ver-se livre da ideia de que eu tinha alguns direitos sobre ele... e conseguiu-o.

Eu não era precisamente mal tratado. Não me batiam, não me recusavam alimento, mas não tinham fim os maus processos que para mim se empregavam sistematicamente e sem cólera. Os dias seguiam-se aos dias, as semanas, os meses iam decorrendo e iam-me desprezando sempre friamente. Perguntei de mim para mim algumas vezes, recordando-me desse tempo, o que teriam feito se eu caísse doente e se não me deixariam, deitado no meu quarto solitário, arranjar-me sozinho conforme pudesse, ou se alguém me estenderia uma mão de socorro.

Quando Mister e miss Murdstone estavam em casa, tomava as refeições com eles; quando não estavam, comia só. Passava o tempo a vaguear por casa e pelos arredores, sem que se importassem comigo. Somente não me era permitido relacionar-me fosse com quem fosse; receavam provavelmente que eu me queixasse. Mister Chillip instava muitas vezes comigo para que fosse vê-lo; era viúvo, pois tinha perdido havia alguns anos uma mulherzinha com cabelos de um louro pálido que eu confundo ainda na minha lembrança com uma gata parda peluda de Angorá. Mas só muito raramente consentiam que eu fosse passar o dia ao seu escritório, aonde ele estava ocupado a ler algum livro novo, com o cheiro de toda uma farmácia que perfumava a atmosfera; o meu maior desejo era estar lá a pisar drogas num almofariz, sob a direcção benévola de Mister Chillip.

Pela mesma razão, reforçada sem dúvida pela antiga aversão que tinham à minha criada, raras vezes me deixavam ir vê-la. Fiel à sua promessa, ela fazia-me uma visita ou marcava-me encontros nos arredores todas as semanas e trazia-me sempre algum pequeno presente, mas tive numerosas e amargas contrariedades ao dizerem-me que não de cada vez que eu testemunhava o desejo de ir a casa dela. Todavia, algumas vezes, com largos intervalos, deram-me licença de ir lá passar o dia e então eu descobri que Mister Barkis era um tanto avarento, um «pouco apertado», dizia polidamente Peggotty e que escondia o dinheiro numa caixa que tinha debaixo da cama, dizendo sempre que lá não havia senão casacos e calças. Era nesse cofre que se ocultavam as suas riquezas com uma modéstia tão perseverante, que não se podia obter a menor parcela senão por artifício e tanto que Peggotty era forçada a recorrer às manhas mais complicadas, a uma verdadeira conspiração das pólvoras, para poder obter o dinheiro necessário para as despesas da semana.

Durante esse tempo, eu sentia tão profundamente que as esperanças que eu poderia dar se desfaziam em fumo, graças ao meu abandono, que teria sido bem mais infeliz sem os meus velhos livros. Eram a minha única consolação: fazíamo-nos fiel companhia e não me cansava nunca de os reler de princípio a fim.

Vou-me aproximando de uma época da minha vida de que jamais poderei perder a memória enquanto tiver uma sombra de lembrança e cuja recordação veio muitas vezes, mau grado meu, visitar como um fantasma tempos mais felizes.

Tinha saído uma manhã e vagueava, como tinha por hábito na minha vida ociosa e solitária, quando ao voltar de um atalho perto de minha casa, encontrei-me de cara com Mister Murdstone que andava passeando com um sujeito. Nesse momento de surpresa, eu ia passar adiante sem dizer nada quando o recém-chegado exclamou:

— Ah! Brooks!

— Não, senhor; David Copperfield — respondi.

— Ora essa; Brooks é que é — replicou o meu interlocutor —, Brooks de Sheffield. Este é que é o seu nome.

A estas palavras, olhei para ele com mais atenção. O seu sorriso acabou de me convencer que era Mister Quinion, que Mister Murdstone me tinha levado a ver em Lowestoft, antes... mas pouco importa, não me é preciso recordar a época.

— Como está e aonde é que anda completando a sua educação, Brooks? — disse Mister Quinion.

Pousou-me a mão no ombro e fez-me voltar para os acompanhar. Eu não sabia o que responder e olhava para Mister Murdstone com ar embaraçado.

— Agora está em casa — disse este último —, a sua educação foi suspensa. Não sei que destino lhe dar. É difícil de manejar.

O seu antigo olhar, esse olhar pérfido que eu conhecia muito bem, caiu sobre mim por um instante, depois franziu as sobrancelhas e desviou-se com um movimento de aversão.

— Ah! — disse Mister Quinion, olhando para nós, ao que me pareceu... — Que belos tempos!

Houve um momento de silêncio e eu perguntava de mim para mim como poderia escapar-me quando ele prosseguiu:

— Suponho que continua sendo sempre afinado, Brooks?

— Sim, não é isso o que lhe falta — disse Mister Murdstone com impaciência —, deixe-o ir, asseguro-lhe que o seu maior desejo é que o largue.

A esta advertência, Mister Quinion deixou-me e eu tomei o caminho de casa. Ao voltar-me, no momento de entrar no jardim, vi Mister Murdstone encostado à grade do cemitério, conversando com Mister Quinion. Os olhares dos dois estavam fixos em mim e senti que de mim falavam.

Mister Quinion dormiu nessa noite em nossa casa. Depois de almoço, no dia seguinte de manhã, eu tinha acabado de pôr a cadeira no seu lugar e ia a sair da sala, quando me chamou Mister Murdstone. Sentou-se gravemente diante de outra mesa e sua irmã instalou-se ao pé da sua secretária; Mister Quinion, com as mãos nos bolsos, olhava pela janela; eu, de pé olhava para eles todos.

— David — disse Mister Murdstone —, quando se é novo é preciso trabalhar, em vez de se fantasiar ou de andar amuado.

— Como o senhor faz — acrescentou sua irmã.

— Jane Murdstone, faça o favor de me deixar falar. Repito-lhe, David, que quando se é novo é preciso trabalhar em vez de se fantasiar ou andar amuado. Isto é verdade, sobretudo para um rapaz da sua idade, de um carácter custoso de compreender e a quem não se pode prestar melhor serviço do que obrigando-o a afazer-se aos hábitos da vida activa, que são os únicos que o podem sujeitar e honrar.

— E lá — disse sua irmã — não há teimosia que prevaleça; domam-no que é um regalo e como convém.

Mister Murdstone lançou-lhe um olhar meio de censura, meio de aprovação, depois continuou:

— Suponho que sabe, David, que não sou rico. Em todo o caso, digo-lho agora. A educação que recebeu já foi dispendiosa. Os colégios são caros e quando mesmo assim não fosse e que eu estivesse nos casos de poder arcar com essa despesa, quer-me parecer que não era vantajoso para si ficar no colégio. Terá a lutar com a vida e quanto mais cedo, melhor será!

Parece que eu disse então com os meus botões que já tinha começado a pagar o meu triste tributo de sofrimento. Em todo o caso, digo-o agora aqui.

— Ouviu alguma vez falar da minha casa de negócio? — disse Mister Murdstone.

— A sua casa de negócio, senhor! — repeti eu.

— Sim, a casa Murdstone & Grinby, com negócio de vinhos — disse Mister Murdstone.

Suponho que eu tinha um ar de hesitação, porque ele continuou precipitadamente:

— Ouviu falar da casa, ou dos negócios, ou dos armazéns, ou do depósito, ou de qualquer coisa parecida?

— Parece-me que ouvi falar dos negócios, senhor — disse eu, recordando-me o que tinha ouvido falar vagamente acerca dos recursos de sua irmã e dos seus —, mas não sei quando foi.

— Pouco importa — respondeu ele. — Ali está Mister Quinion que é quem dirige esses negócios.

Eu deitei um olhar respeitoso para Mister Quinion, que olhava sempre pela janela.

— Ele diz que há diversos rapazes empregados na casa e que não sabe porque é que o senhor não encontrara lá ocupação nas mesmas condições.

— Se não há outro recurso, Murdstone — observou Mister Quinion a meia voz e voltando-se.

Mister Murdstone, com um gesto de impaciência, continuou, sem fazer caso dessa interrupção.

— As condições são estas: o senhor ganhará para comer e para trazer algum dinheiro no bolso. Quanto a alojamento já disso me ocupei, sou eu que o pagarei. Encarregar-me-ei também da roupa lavada...

— Até à quantia que eu determinar — disse sua irmã.

— Fornecer-lhe-ei também de vestir — disse Mister Murdstone —, pois que não ficará em estado de ocorrer a isso. Vai, pois, para Londres com Mister Quinion, David, para começar a livrar-se de apuros.

— Numa palavra, está empregado — observou a irmã. — Agora trate de ser cumpridor.

Eu compreendia muito bem que o fim de tudo isto era verem-se livres de mim, mas não me lembro se eu estava satisfeito ou não. Parece-me que eu hesitava entre estes dois sentimentos, sem decididamente me fixar num ou noutro ponto. Não tinha, de resto, muito tempo para destrinçar as minhas ideias, pois Mister Quinion partia no dia imediato.

Façam ideia da minha partida no dia seguinte: eu levava um velho chapeuzito cinzento com fumo, um jaquetão preto e umas calças de couro que miss Murdstone considerava sem dúvida como uma armadura excelente para me proteger as pernas na luta pela vida que eu ia começar. É assim vestido que me podem ver, com todos os meus objectos dentro de uma maleta, sentado, pobre criança abandonada (como diria Mistress Gummidge) na mala-posta que havia de levar Mister Quinion a Yarmouth para tomar a diligência de Londres! Lá vejo a nossa casa e a igreja que vão desaparecendo ao longe; já não vejo a sepultura debaixo da árvore, já não distingo mesmo o campanário; vejo o céu vazio.

Continue Reading

You'll Also Like

11.5K 80 1
E se Madara desistisse da guerra, após uma certa rosada lhe da uma surra, junto com um sermão, e se por algum motivo Madara resolvesse ouvir a rosada...
33.3K 2.3K 21
É um universo alternativo onde os personagens tem whatsApp (Essa é minha primeira fanfic no wattpad, espero que gostem😊) ⚠ PLÁGIO É CRIME!
41.8K 694 2
Cinco garotas vão para o mesmo internato, algumas se conhecem outras não, como será q vai desenrolar a relação delas?E a relação delas com seus própr...
79.5K 5.7K 34
Nós, Mandy e Teca estamos trabalhando juntas nesta história que fala sobre a louca vida da Madá Dillan uma nerd maluquinha e atrapalhada. Tem 14 anos...