David Copperfield (1850)

Por ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. Más

Capítulo I - Venho ao mundo
Capítulo II - Observo
Capítulo IV - Caio em desgraça
Capítulo V - Sou exilado da casa paterna
Capítulo VI - Aumento os meus conhecimentos
Capítulo VII - O meu primeiro semestre em Salem-House
Capítulo VIII - As minhas férias ...
Capítulo IX - Nunca esquecerei esse meu dia de anos
Capítulo X - Primeiro desprezam-me, depois empregam-me
Capítulo XI - Começo a viver por minha conta, do que não gosto nada
Capítulo XII - Não me agrada viver por minha conta; tomo uma grande resolução
Capítulo XIII - Executo a minha resolução
Capítulo XIV - O que minha tia fez de mim
Capítulo XV - Recomeço
Capítulo XVI - Mudo sob vários pontos de vista
Capítulo XVII - A quem a boa sorte favorece
Capítulo XVIII - Um olhar retrospectivo
Capítulo XIX - Olho em torno e faço uma descoberta
Capítulo XX - Em casa de Steerforth
Capítulo XXI - A Emilita
Capítulo XXII - Novos personagens num velho teatro
Capítulo XXIII - Corroboro a opinião de Mister Dick e escolho uma profissão
Capítulo XXIV - Os meus primeiros excessos
Capítulo XXV - Anjo bom e anjo mau
Capítulo XXVI - Eis-me caído em cativeiro
Capítulo XXVII - Tommy Traddles
Capítulo XXVIII - É preciso que Mister Micawber atire a luva à sociedade
Capítulo XXIX - Vou outra vez visitar Steerforth
Capítulo XXX - Uma perda
Capítulo XXXI - Uma perda mais grave
Capítulo XXXII - Começo de uma longa viagem
Capítulo XXXIII - Felicidade
Capítulo XXXIV - Minha tia causa-me um grande pasmo
Capítulo XXXV - Abatimento
Capítulo XXXVI - Entusiasmo
Capítulo XXXVII - Um pouco de água fria lançada no meu fogo
Capítulo XXXVIII - Dissolução de sociedade
Capítulo XXXIX - Wickfield & Heep
Capítulo XL - Triste viagem ao acaso
Capítulo XLI - As tias de Dora
Capítulo XLII - Uma nódoa negra
Capítulo XLIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo XLIV - A nossa casa
Capítulo XLV - Mister Dick justifica a predição de minha tia
Capítulo XLVI - Novidades
Capítulo XLVII - Marta
Capítulo XLVIII - Acontecimento doméstico
Capítulo XLIX - Acho-me envolvido num mistério
Capítulo L - Realiza-se o sonho de Mister Peggotty
Capítulo LI - Preparativos de uma mais longa viagem
Capítulo LII - Assisto a uma explosão
Capítulo LIII - Ainda um olhar retrospectivo
Capítulo LIV - As operações de Mister Micawber
Capítulo LV - A tempestade
Capítulo LVI - O novo e o velho golpe
Capítulo LVII - Os emigrantes
Capítulo LVIII - Ausência
Capítulo LIX - Regresso
Capítulo LX - Inês
Capítulo LXI - Mostram-me dois interessantes penitentes
Capítulo LXII - Fulge uma estrela no meu caminho
Capítulo LXIII - Um visitante
Capítulo LXIV - Um último olhar retrospectivo

Capítulo III - Uma mudança

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Por ClassicosLP

O cavalo do recoveiro era o animal mais ronceiro que imaginar-se possa (pelo menos tenho-o como certo); caminhava lentamente, de cabeça caída, como se gostasse de fazer esperar os fregueses para quem transportava encomendas. Por vezes eu imaginava até que ele desatava a rir ao pensar nisso, mas o recoveiro certificou-me de que era um acesso de tosse, porque estava encatarroado.

O recoveiro também tinha o costume de ir de cabeça pendente, o corpo inclinado para diante, enquanto guiava, dormindo a meias, com os braços estendidos sobre os joelhos. Digo enquanto guiava, mas creio que a tipóia poderia muito bem ir até Yarmouth sem ele, porque o cavalo guiava-se sozinho; e quanto a conversa, o homem não tinha outra senão assobiar.

Peggotty levava no colo um cabaz de provisões que duraria muito bem até Londres, se fôssemos até lá pelo mesmo meio de transporte. Comíamos e dormíamos alternativamente. Peggotty adormecia regularmente com o queixo pousado na asa do cabaz e nunca, se o não tivesse ouvido com ambos os meus ouvidos, ninguém me faria acreditar que uma fraca mulher pudesse roncar com tanta energia.

Demos tantas voltas por uma infinidade de atalhos e passámos tanto tempo numa estalagem aonde era preciso deixar uma armação de cama, e em muitos outros lugares ainda, que eu estava fatigadíssimo e muito contente de chegar finalmente a Yarmouth, que achei bastante esponjoso e bastante húmido ao lançar os olhos pela grande extensão de água que se via ao longo do rio; assim como não podia deixar de estar surpreendido que houvesse uma parte do mundo tão chata, quando o meu livro de geografia consignava que a terra era toda redonda. Mas reflecti que Yarmouth estava provavelmente situado num dos pólos, o que explicava tudo.

À medida que nos íamos aproximando, eu via o horizonte estender-se como uma linha recta por baixo do céu; eu disse a Peggotty que uma pequena colina aqui e além ficaria muito melhor e que, se a terra estivesse um pouco mais separada do mar e que a cidade não estivesse mergulhada na preia-mar, como uma torrada panada na água, seria bem mais bonito. Mas Peggotty respondeu-me, com mais autoridade que de ordinário, que era preciso aceitar as coisas como elas são e que, pela sua parte, se ufanava de pertencer ao que se chama os Arenques de Yarmouth.

Quando chegámos ao meio da rua (que me pareceu muito estranha) e que senti o cheiro a peixe, a breu, a estopa e a alcatrão; quando vi os marujos que passavam e as carretas que saltavam nos empedrados compreendi que tinha sido injusto para com uma cidade tão comercial; confessei-o a Peggotty, que escutava com grande complacência as minhas expressões de enlevo e que me disse que estava perfeitamente reconhecido (suponho que era uma coisa reconhecida por aqueles que têm a boa fortuna de ser arenques de nascimento) que, no fim de contas, Yarmouth era a mais bonita cidade do universo.

— Acolá está o meu Am — exclamou Peggotty. — Como ele está crescido! É da gente não o reconhecer!

Efectivamente, esperava-nos à porta da estalagem: perguntou-me como eu estava, como a um velho conhecimento. A princípio parecia-me que eu não o conhecia tão bem como ele parecia conhecer-me, visto como nunca mais fora a minha casa desde a noite em que nasci, o que naturalmente lhe dava vantagem sobre mim. Mas a nossa intimidade fez rápidos progressos quando pegou em mim nos ombros para me levar para casa dele. Era um rapagão de seis pés de altura, forte e gordo na proporção, de ombros redondos e robustos; mas o seu rosto tinha uma expressão infantil e os cabelos louros encaracolados davam-lhe o ar de um carneiro. Vestia um jaquetão de pano de velas e umas calças tão tesas que se conservariam completamente de pé ainda que não tivessem pernas dentro. Quanto ao que o cobria, não pode dizer-se que fosse um chapéu, era antes um telhado de alcatrão sobre um velho navio.

Cham conduzia-me ao ombro e debaixo do braço levava uma caixa nossa; Peggotty levava outra. Atravessámos atalhos cobertos de montes de cavacos de madeira e montículos de areia; passávamos ao lado de fábricas de gás, de cordoarias, de depósitos de materiais de construção, de demolição e de calafetagem, de oficinas de aparelhos de navios, de forjas em movimento e de uma porção de estabelecimentos semelhantes e finalmente chegámos em frente da grande extensão parda que eu já tinha avistado de longe. Cham disse-me:

— Cá está a nossa casa, senhor Davy.

Eu olhei para todos os lados, tão longe quanto os meus olhos podiam ver nesse deserto, sobre o mar, sobre o rio, mas sem descobrir a mais pequena casa. Havia uma barca negra, ou qualquer outra espécie de velho navio perto dali, encalhado na areia; um tubo de chapa de ferro, que substituía o cano, fumegava muito tranquilamente, mas não descobria mais coisa nenhuma que tivesse o ar de uma habitação.

— Não é isso? — disse eu. — Essa coisa que se parece com um navio?

— É isso mesmo, senhor Davy — replicou Cham.

Se fosse o palácio de Aladino, o ovo de roço e tudo o mais, creio que não teria ficado mais encantado da ideia romanesca de lá morar. Havia no flanco do barco uma encantadora portazinha; havia um tecto e pequenas janelas, mas o que a fazia subir em merecimento é que era um barco a valer que certamente tinha vogado no mar centenas de vezes; um barco que nunca tinha sido destinado a servir de casa sobre a terra firme. Era isso que lhe dava encanto a meus olhos. Se algum dia tivesse sido destinado a servir de casa, tê-lo-ia talvez achado pequeno para uma casa, ou incómodo ou muito isolado; mas desde o momento que não tinha sido construído com esse fim, era uma encantadora habitação.

No interior era ela perfeitamente limpa e tão bem arranjada quanto possível. Tinha uma mesa, um relógio de Holanda, uma cómoda e sobre ela uma bandeja onde se via uma dama armada de um guarda-sol, passeando com um menino de ar marcial que jogava o arco. Uma Bíblia segurava a bandeja e impedia-a de escorregar; se ela caísse, esmagaria na sua queda uma quantidade de chávenas, pires e uma chaleira colocadas em volta do livro. Nas paredes havia algumas gravuras coloridas, encaixilhadas, com vidro, que representavam assuntos da Escritura. Todas as vezes que depois me sucedeu ver iguais àquelas nas mãos dos vendedores ambulantes, pareceu-me tornar a ver imediatamente diante de mim o interior da casa do irmão de Peggotty. Os mais notáveis desses quadros eram Abraão em vermelho que ia sacrificar Isaque em azul e Daniel em amarelo, no meio de uma cova de leões em verde. No pano da chaminé via-se uma pintura do lugre a Sara-Jane, construído em Sunderland, com uma popa a valer de madeira que lhe fora adaptada: era uma obra de arte, um primor de marcenaria que eu considerava como um dos bens mais preciosos que este mundo pudesse oferecer. Nas traves do tecto, havia grandes ganchos cujo uso eu não compreendia bem, baús e outros utensílios também cómodos para servirem de cadeiras.

Logo que transpus a soleira vi tudo isso num relance (não se esqueceram de que eu era um rapaz observador). Depois Peggotty abriu uma pequena porta e mostrou-me um quarto de dormir. Era o quarto mais completo e o mais encantador que se podia inventar, à popa do navio, com uma pequena janela por onde antigamente passava o leme; um pequeno espelho colocado justamente à minha altura, com um caixilho de cascas de ostras; uma caminha, bastante grande para se dormir nela e em cima da mesa um ramalhete de ervas marinhas dentro de uma bilha azul. As paredes eram de uma alvura cintilante e a colcha de cores tão vivas que me faziam mal à vista. O que sobretudo notei nessa deliciosa casa, foi o cheiro a peixe; era tão penetrante que quando tirei o lenço do bolso, dir-se-ia, com tal cheiro, que o lenço servira para embrulhar uma lagosta. Quando confiei esta descoberta a Peggotty, informou-me ela que seu irmão negociava em lagostas, caranguejos e camarões; encontrei em seguida um monte desses animais, singularmente emaranhados uns nos outros e sempre ocupados a beliscar tudo quanto encontravam no fundo de uma gamela de madeira, onde metiam também as panelas e as chocolateiras.

Fomos recebidos por uma mulher muito bem criada que trazia um avental branco e que eu tinha visto a fazer-nos mesuras a uma meia légua de distância, quando chegava às costas de Cham. Tinha junto de si uma encantadora pequenita (pelo menos era opinião minha) com um colar de contas azuis; nunca consentiu que eu a beijasse e foi esconder-se quando eu lhe fiz tal proposta. Acabávamos de jantar da maneira mais sumptuosa, com gaivotas cozidas, manteiga derretida, batatas e uma costeleta só para mim, quando vimos chegar um homem de cabeleira que tinha o ar de muito boa pessoa. Como ele tratava Peggotty por «minha pequerrucha» e lhe deu um grande beijo na face, não tive a menor dúvida (dada a discrição habitual de Peggotty) de que fosse o irmão dela; de facto era ele e apresentaram-mo logo como Mister Peggotty, o dono da casa.

— Tenho muito gosto em o ver, senhor — disse Mister Peggotty. — Somos pessoas capazes, senhor, um pouco rudes, mas todas para o servir.

Agradeci-lhe e respondi-lhe que estava certíssimo de ser feliz em lugar tão encantador.

— Como passa a sua mamã, senhor? — perguntou Mister Peggotty.

— Deixou-a de boa saúde?

Respondi a Mister Peggotty que minha mãe ficara de tão boa saúde como eu podia desejar e que ela lhe enviava os seus cumprimentos, o que era da minha parte uma ficção de polidez.

— Muito obrigado! — disse Mister Peggotty. — Muito bem, senhor! Se o senhor puder dar-se connosco durante quinze dias — disse ele voltando-se para sua irmã, para Cham e para a Emilita —, ufanar-nos-emos da sua companhia.

Depois de me ter feito as honras da casa da forma mais hospitaleira, Mister Peggotty foi lavar a cara com água quente, observando sempre que «a água fria não era suficiente para lha lavar». Voltou dentro em pouco, tendo ganho muito com essa lavagem, mas tão vermelho que não pude deixar de pensar que a sua cara tinha isto de comum com as lagostas, os caranguejos e os camarões: entrava na água quente toda suja e saía dela toda vermelha.

Quando tomámos o chá, fechou-se a porta e instalámo-nos muito confortavelmente (as noites eram já frias e nevoentas); pareceu-me a mais deliciosa estância que a imaginação dos homens pudesse conceber. Ouvir o vento soprar sobre o mar, saber que o nevoeiro invadia toda essa planura desolada que nos rodeava e sentir-se perto do lume, numa casa absolutamente isolada, que era um barco, isso tinha alguma coisa de feérico. A Emilita, que tinha perdido a sua timidez, estava sentada a meu lado no baú mais baixo; havia ali justamente lugar para nós ambos ao canto do fogão; Mistress Peggotty, com o seu avental branco, fazia meia no canto oposto; e Peggotty costurava, com a sua caixa de tampa de S. Paulo e o bocadito de cera que pareciam nunca ter conhecido outro domicílio. Cham, que me tinha dado a primeira lição do jogo da batalha, procurava lembrar-se como se lia a sina e deixava em cada carta que voltava a marca do dedo polegar. Mister Peggotty cachimbava. Senti que era um momento propício à conversação e à intimidade.

Mister Peggotty! — disse eu.

— Senhor — disse ele.

— Dar-se-á o caso de que pusesse a seu filho o nome de Cham por viver numa espécie de arca?

Mister Peggotty pareceu achar que era uma ideia muito profunda, mas respondeu:

— Não, senhor. Nunca lhe dei nome nenhum.

— Quem foi então que lhe deu esse nome? — interroguei eu, apresentando a Mister Peggotty a segunda pergunta do catecismo.

— Mas, senhor, foi o pai dele quem lho deu — respondeu Mister Peggotty.

— Eu supunha que o senhor é que era o pai.

— Meu irmão Joe é que era o pai dele — disse Mister Peggotty.

— Morreu, Mister Peggotty? — perguntei eu após um momento de silêncio respeitoso.

— Afogado — disse Mister Peggotty.

Eu estava muito admirado de que Mister Peggotty não fosse o pai de Cham e perguntava de mim para mim, se me não enganaria também no seu parentesco com as outras pessoas presentes. Tinha tão grande desejo de o saber, que me resolvi a perguntá-lo a Mister Peggotty.

— É a Emilita? — disse eu olhando para ela. — É sua filha, pois não é, senhor Peggotty?

— Não, senhor. Meu cunhado Tom é que era o pai dela.

Não pude deixar de lhe dizer, depois de um outro silêncio cheio de respeito:

— Morreu, Mister Peggotty?

— Afogado — disse Mister Peggotty.

Eu sentia quão difícil era continuar sobre este assunto, mas não sabia ainda tudo e queria sabê-lo. Acrescentei, pois:

— Tem filhos, senhor Peggotty?

— Não, senhor — respondeu ele rindo. — Sou celibatário.

— Celibatário! — disse eu com espanto. — Mas então quem vem a ser essa, senhor Peggotty? — E indiquei-lhe a mulher de avental branco que estava a fazer meia.

— É Mistress Gummidge — disse Mister Peggotty.

— Gummidge, senhor Peggotty?

Mas, nesta altura, Peggotty (quero referir-me à minha Peggotty) fez-me sinais por tal forma expressivos para me dizer que não fizesse mais perguntas, que só me restou sentar-me e olhar para toda a companhia, que guardou silêncio até ao momento de nos irmos deitar. Então, no segredo do meu pequeno beliche, Peggotty informou-me que Cham e Emília eram sobrinhos do dono da casa, que os adoptara na infância em diferentes épocas, quando a morte dos pais os havia deixado sem recursos e que Mistress Gummidge era viúva de um marinheiro, seu consócio na exploração de uma barca, que morrera pobríssimo. O próprio meu irmão é um pobre homem — disse Peggotty — mas é ouro de lei, franco como o aço (cito as suas comparações). O único motivo, ao que me informou, que fazia sair seu irmão do seu sério e o levava a praguejar, era quando se falava da sua generosidade. Por pouca alusão que se fizesse, descarregava na mesa punhadas com a mão direita (a tal ponto que um dia rachou a mesa em duas) e jurou que passava o pé e iria para casa do diabo, se alguma vez mais lhe falassem nisso. Por mais perguntas que eu fizesse, ninguém me deu a menor explicação gramatical etimológica dessa terrível locução: «passar um pé». Mas todos concordavam em considerá-la como uma das mais solenes imprecações.

Eu sentia profundamente toda a bondade do meu hóspede e tinha a alma satisfeitíssima, sem contar que estava a cair de sono, sempre prestando atenção ao ruído que faziam as mulheres ao irem-se deitar numa cama pequena como a minha colocada na outra extremidade do barco, enquanto Mister Peggotty e Cham suspendiam duas camas de bordo nos ganchos que eu tinha notado no tecto. O sono ia-se apoderando de mim, mas eu sentia-me todavia tomado de um vago receio, pensando na grande profundidade de escuridão que me rodeava, ouvindo o vento gemer nas vagas e levantá-las de repente. Mas disse comigo que, afinal de contas, estava dentro de um navio e que, se alguma coisa sucedesse, estava ali Mister Peggotty para vir em nosso socorro.

Todavia o mal que me sucedeu foi despertar tranquilamente, no dia seguinte. Logo que o sol bateu no caixilho das cascas de ostras que emoldurava o espelho, saltei fora da cama e corri à praia com a Emilita para apanharmos caramujos.

— Creio que a menina é uma marujinha a valer — disse eu à Emília. Não que eu tivesse pensado nada de semelhante, mas achei que era um dever de galanteria dizer-lhe qualquer coisa e via neste momento nos olhos brilhantes dela, reflectir-se uma pequena vela tão cintilante, que foi isso que me inspirou essa reflexão.

— Não — disse Emília meneando a cabeça —, tenho medo do mar.

— Medo! — repeti eu com um pequeno ar fanfarrão, olhando bem de frente o grande Oceano. — Eu não tenho medo.

— Ah! O mar é tão cruel! — disse Emília. — Tenho-o visto bem cruel para algum dos nossos homens. Vi-o pôr em frangalhos um navio tamanho como a nossa casa.

— Não foi certamente a barca em que...

— Em que meu pai se afogou? — disse Emília. — Não era essa, não; essa nunca a vi.

— E a ele, conheceu-o? — perguntei.

A Emilita meneou a cabeça: — «Que me lembre, não!»— Que coincidência! Expliquei-lhe imediatamente como eu nunca tinha visto meu pai; e como minha mãe e eu vivíamos sempre juntos perfeitamente felizes, o que contávamos fazer eternamente; e como a campa de meu pai era no cemitério, perto da nossa casa, à sombra de uma árvore, debaixo da qual muitas vezes eu passeava para ouvir chilrear os passarinhos. Mas havia algumas diferenças entre Emília e eu, se bem que fôssemos ambos órfãos. Ela perdera a mãe antes do pai e ninguém sabia aonde era a campa de seu pai; somente se sabia que repousava em qualquer parte, no mar profundo.

— E depois — disse Emília procurando sempre caramujos e seixinhos — o seu pai era um senhor e a sua mãe uma senhora; e o meu pai era pescador, minha mãe era filha dum pescador e meu tio Dan é outro pescador.

— Dan é o Sr. Peggotty, pois não é? — disse eu.

— O meu tio Dan de acolá — respondeu Emília apontando-me para o barco.

— Sim é dele que eu falo. Há-de ser muito bom, pois não há-de?

— Bom? — disse Emília. — Se eu fosse uma senhora havia de lhe dar um casaco azul de céu com botões de diamante, umas calças de nanquim, um colete de veludo, um chapéu de três bicos, um grande relógio de ouro, um cachimbo de prata e um cofre cheio até cima de dinheiro.

Eu disse-lhe que não duvidava que Mister Peggotty merecesse todos esses tesouros. Devo confessar que me dava algum cuidado o representá-lo perfeitamente à sua vontade no lindo preparo que para ele sonhava a sua sobrinhita, exaltada pelo reconhecimento e que, em particular, eu tinha dúvidas sobre a utilidade do chapéu de três bicos; mas guardei essas reflexões para mim.

A Emilita erguia os olhos todas as vezes que enumerava esses diversos artigos, como se estivesse contemplando uma gloriosa visão. E pusemo-nos a procurar alcofinhas e caramujos.

— Gostava de ser uma senhora? — perguntei-lhe. Emília olhou para mim e pôs-se a rir dizendo que sim.

— Muito gostava. Então seríamos todos senhores e senhoras. Eu e meu tio e Cham e Mistress Gummidge. Então não nos inquietaríamos com o mau tempo. Não por nós, pelo menos. Causar-nos-ia somente pena por causa dos pobres pescadores, mas dar-lhes-íamos dinheiro quando lhes sucedesse alguma desgraça.

Pareceu-me esse um quadro muito satisfatório e por consequência extremamente natural. Exprimi o prazer que sentia em pensar nisso e a Emilita sentiu-se com ânimo de me dizer bem timidamente:

— Não tem medo do mar, agora?

O mar estava suficientemente tranquilo para me sossegar, mas estou bem certo que se uma vaga de uma certa dimensão se adiantasse para mim, eu teria imediatamente deitado a fugir, perseguido pela recordação de todos os seus parentes afogados. Todavia respondi:

— Não! — E acrescentei: — Mas nem a menina também, se bem que pretenda ter medo — porque ela ia caminhando muito pela beira de um velho pontão de madeira sobre o qual nos tínhamos aventurado e eu tinha realmente medo que ela caísse.

— Oh! Não é disto que eu tenho medo — disse a Emilita —, mas sim quando o mar brame, quando me desperta e que começo a tremer, ao pensar no tio Dan e em Cham; parece-me ouvi-los gritar por socorro. Aqui está porque eu tanto gostava de ser uma senhora. Mas aqui não tenho medo. Nem nada. Olhe para mim.

Tomou lanço e desatou a correr por uma grossa trave fora, a qual partia do lugar onde estávamos e dominava o mar de muito alto, sem a menor barreira. Este incidente gravou-se-me por tal forma na memória que, se eu fosse pintor, ainda hoje o poderia reproduzir exactamente; poderia mostrar a Emilita avançando para a morte (supunha-o então), os olhos fitos ao longe no mar, com uma expressão que jamais esqueci.

Dentro de pouco voltava para junto de mim, ágil, arrojada e dando voltas e eu ri dos meus receios, tanto como do grito que soltara, grito inútil em todo o caso, pois que ninguém havia perto dali. Mas depois, perguntei com os meus botões, muitas vezes, se não teria sido possível (há tantas coisas que nós não sabemos), que, nessa temeridade súbita da pequena e no seu olhar de desafio atirado às vagas longínquas, houvesse um como instinto de piedade filial que lhe fazia encontrar prazer em sentir-se também em perigo, em reivindicar a sua parte da morte sofrida por seu pai, um desejo vago e rápido de ir nesse dia unir-se-lhe na morte. Depois desse tempo sucedeu-me perguntar a mim próprio: «Suponho que fosse uma revelação repentina da vida que ela ia ter de atravessar e que, na minha alma de criança, eu tivesse sido capaz de a compreender; suponho que a sua vida tivesse dependido de mim, de um movimento da minha mão e teria eu feito bem estender-lha para a salvar da queda?» Sucedeu-me (não digo que esta reflexão durasse muito tempo) perguntar a mim próprio se não teria então valido mais para a Emilita que as águas a engolissem, nessa manhã e na minha presença e responder de mim para mim que sim, que teria valido mais. Mas não antecipemos: teremos sempre tempo de falar nisso. Não importa, já que está dito, acabou-se.

Vagueámos por muito tempo juntos, sempre a enchermos os bolsos de uma porção de coisas que achávamos curiosíssimas; em seguida pusemos com todo o cuidado na água muitas estrelas do mar. Não conheço bem os hábitos dessa raça de criaturas para ficar bem certo de que nos tenham ficado reconhecidas por essa atenção. Finalmente tomámos depois o caminho da casa de Mister Peggotty. Parámos ao pé da gamela das lagostas para trocarmos um inocente beijo e entrámos para almoçar, todos vermelhos de saúde e de prazer.

— Como dois tordinhos — disse Mister Peggotty. O que eu tomei por um cumprimento.

É escusado dizer que eu estava enamorado da Emilita. Certamente que amava essa pequena com toda a sinceridade e com toda a ternura que se pode sentir mais tarde na vida; amava-a com mais pureza e desinteresse do que há no amor da mocidade, por maior e por mais elevado que seja. A minha imaginação criava em volta dessa criaturinha de olhos azuis qualquer coisa de ideal que fazia dela um verdadeiro querubim. Se uma manhã no azul do céu a visse abrir as asas e voar na minha presença, creio que olharia isso como um acontecimento com o qual devia contar.

Passeávamos horas e horas inteiras de mãos dadas perto dessa planura monótona de Yarmouth. Os dias decorriam alegremente para nós, como se o próprio tempo não fosse passando e fosse ainda uma criança, sempre disposto a brincar como nós. Eu dizia à Emília que a adorava e que se ela não me amasse, só me restaria atravessar o corpo com uma espada. Ela respondia-me que me adorava também e estou certo de que era verdade.

Quanto a pensar na desigualdade das nossas condições, na nossa mocidade, ou em qualquer outro obstáculo, a Emilita e eu não nos importávamos, nem pensávamos no futuro. Tanto nos inquietávamos com o que mais tarde havíamos de fazer, como com o que tínhamos feito dantes. No entanto fazíamos a admiração de Gummidge e de Peggotty, que murmuravam muitas vezes à noite, quando estávamos ternamente sentados um ao pé do outro, em cima do nosso baú: «Deus do céu, não é encantador?». Mister Peggotty sorria para nós sempre cachimbando e Cham fazia durante horas inteiras caretas de satisfação. Suponho que os divertíamos quase como se fôssemos um bonito brinquedo, ou um modelo, em miniatura, do Coliseu.

Não tardou que eu descobrisse que Mistress Gummidge não era sempre tão amável como seria de esperar, visto as condições em que se encontrava para com Mister Peggotty. Mistress Gummidge era naturalmente bastante resmungona e lastimava-se mais do que devia para que isso fosse agradável numa tão pequena colónia. Eu afligia-me por ela, mas muitas vezes dizia comigo que mais à vontade se estaria, se Mistress Gummidge tivesse um quarto cómodo para onde se retirasse até que fosse recuperando um pouco o seu bom humor.

Mister Peggotty ia às vezes a uma taberna chamada Ao da vida alegre. Descobri isso uma noite, dois ou três dias depois da nossa chegada, ao ver Mistress Gummidge erguer sem cessar os olhos para o relógio holandês, entre as oito e nove horas, repetindo sempre que ele estava na taberna e que, melhor ainda, já desde manhã desconfiava que ele não deixaria de lá ir.

Durante toda a manhã, Mistress Gummidge tinha estado extremamente abatida e pela tarde tinha desatado a chorar, porque o lume deitava muito fumo.

— Sou uma pobre criatura perdida, sem eira nem beira — exclamou Mistress Gummidge, ao ter esse desgosto. — Tudo me contraria.

— Oh! Isso passa já — disse Peggotty (é da nossa Peggotty que falo) —, e depois, veja, é tão desagradável para nós, como para si.

— Sim, mas eu sinto-o mais — disse Mistress Gummidge.

Era um dia frigidíssimo, o vento cortava. Mistress Gummidge estava, segundo me parecia, muito bem instalada no canto mais quente do quarto, tinha a melhor cadeira, mas nesse dia nada lhe convinha. Queixava-se constantemente do frio que lhe causava uma dor nas costas: ela chamava a isso formigueiros. Enfim pôs-se a chorar e a repetir que não passava de uma pobre criatura abandonada e que tudo se voltava contra ela.

— Com certeza que está muito frio — disse Peggotty. — Todos nós o sentimos como a senhora.

— Sim, mas eu sinto-o mais que os outros — disse Mistress Gummidge.

Ao jantar foi a mesma coisa; Mistress Gummidge era sempre servida imediatamente depois de mim, a quem se dava a preferência como a um personagem de distinção. O peixe era delgado e magro e as batatas estavam levemente queimadas. Confessámos todos que era para nós uma pequena contrariedade, mas Mistress Gummidge desfez-se em lágrimas e declarou com grande mágoa que o sentia mais que nenhum de nós.

Quando Mister Peggotty regressou, eram nove horas, a desventurada Mistress Gummidge fazia meia no seu canto, com o ar mais deplorável. Peggotty trabalhava alegremente. Cham compunha um par de botas de água. Eu estava a ler em voz alta, com a Emilita ao lado. Mistress Gummidge soltara um suspiro de desolação e desde o chá que não tinha erguido uma vez só os olhos para nós.

— Olá, amigos — disse Mister Peggotty ao pegar numa cadeira — como vai isso?

Todos lhe dirigimos uma palavra de boas-vindas, excepto Mistress Gummidge, que meneou tristemente a cabeça por cima da meia.

— Então não está bem? — disse Mister Peggotty esfregando as mãos.

— Animo, velha mãe. (Mister Peggotty queria dizer velha tia).

Mistress Gummidge não tinha forças de criar ânimo. Tirou da algibeira um velho lenço de seda preta e enxugou os olhos, mas em vez de o guardar, ficou com ele na mão, enxugou outra vez os olhos e continuou sempre com ele na mão, pronto à primeira lágrima.

— O que é que a apoquenta, boa criatura? — disse Mister Peggotty.

— Nada — respondeu Mistress Gummidge. — O senhor vem da Vida alegre, Dan?

— Sim, venho. Fiz esta noite uma pequena visita Ao da vida alegre — disse Mister Peggotty.

— Estou aflita por ser eu que o obrigo a ir lá — disse Mistress Gummidge.

— Obrigar-me! Mas eu não preciso de que ninguém me obrigue — replicou Mister Peggotty com o riso mais franco. — Vou lá quando estou de feição.

— Quando está de feição — disse Mistress Gummidge meneando a cabeça e enxugando os olhos. — Sim, sim, quando está de feição; aflijo-me que seja por minha causa que o senhor está de feição.

— Por sua causa? Não é por sua causa — disse Mister Peggotty. — Não pense nisso.

— Sim, sim — exclamou Mistress Gummidge —, sei que sou eu... eu sei que sou uma pobre criatura sem eira nem beira, que não só tudo me contraria, mas que contrario todo o mundo. Sim, sim, eu sinto mais que os outros e mostro-o mais. É a minha desgraça.

E ao ouvir este discurso, eu não podia deixar de dizer que a sua desgraça bem se fazia sentir igualmente por alguns outros membros da família. Mas Mister Peggotty absteve-se inteiramente de fazer esta reflexão e limitou-se a pedir a Mistress Gummidge que se enchesse de coragem.

— Eu preferia ser não sei quê — disse Mistress Gummidge. — Com certeza que me conheço bem: são as minhas penas que me têm azedado. Sinto-as sempre e então contrariam-me. Desejaria não as sentir, mas sinto-as. Quereria ter o coração mais empedernido, mas não tenho. Torno esta casa deplorável e não me admiro disso. Em todo o dia não fiz senão atormentar a sua irmã e também ali o Sr. Davy.

Neste ponto o enternecimento assenhoreou-se de mim e exclamei na minha perturbação:

— Não, Mistress Gummidge, a senhora não me atormentou.

— Eu bem sei que o mal é meu — disse Mistress Gummidge. — É reconhecer mal tudo quanto por mim se tem feito. Eu faria melhor se fosse morrer ao asilo. Sou uma pobre criatura perdida sem eira nem beira e vale mais que eu aqui não fique a fazer andar tudo às avessas. Se as coisas andam todas às avessas comigo e eu mesma ando toda às avessas, mais vale que eu vá toda às avessas para o asilo da paróquia. Dan, deixe-me ir lá morrer, para se ver livre de mim!

A estas palavras, Mistress Gummidge retirou-se e foi-se deitar. Quando ela saiu, Mister Peggotty, que até então lhe tinha manifestado a mais profunda simpatia, voltou-se para nós, com o rosto ainda com todos os sinais desse sentimento e disse-nos em voz baixa:

— Lembrou-se do velho.

Eu não compreendia bem de que velho se supunha que pudesse lembrar-se Mistress Gummidge, mas Peggotty explicou-me quando me ajudava a deitar, que era o defunto Mister Gummidge e que seu irmão tinha sempre essa explicação muito pronta em tais ocasiões, explicação que lhe causava então uma grande emoção. Ouvi-o repetir a Cham, diversas vezes, da cama de bordo onde estava deitado:

— Pobre mulher! É que pensava no velho!

E, todas as vezes que durante a minha estada, Mistress Gummidge se deixou cair na sua melancolia (o que bastante frequentemente sucedeu), ele repetiu a mesma coisa para desculpar o seu abatimento e sempre com a mais terna comiseração.

Assim se passaram quinze dias, sem outra variedade a não ser a mudança das marés, que fazia sair ou entrar Mister Peggotty a outras horas; e que trazia também alguma variedade às ocupações de Cham. Quando este último não tinha nada que fazer, passeava algumas vezes connosco para nos mostrar os navios e as barcas. Uma ou duas vezes nos fez dar um passeio de barco. Eu não sei porque há impressões que se associam mais particularmente a um lugar do que a outro, mas creio que isso acontece com muitas pessoas, sobretudo nas recordações da sua infância; o que é certo é que não posso nunca ler ou pronunciar o nome de Yarmouth sem me lembrar de um certo domingo de manhã em que estávamos na praia: os sinos chamavam os fiéis à igreja: A cabeça da Emilita descansava no meu ombro. Cham atirava descuidosamente seixos ao mar e o sol, dissipando ao longe uma espessa neblina, fazia-nos entrever os navios no horizonte.

Enfim, chegou o dia da separação. Eu sentia coragem em deixar Mister Peggotty e Mistress Gummidge, mas o meu coração confrangia-se à ideia de dizer adeus à Emilita. Fomos, de braço dado, até à estalagem em que o recoveiro pousava e pelo caminho prometi escrever-lhe (cumpri mais tarde a promessa enviando-lhe uma folha com letras maiores que as dos cartazes ou dos anúncios dos quartos para alugar). No momento de nos separarmos, foi terrível a nossa emoção e se alguma vez sucedeu na minha vida sentir fazer-se um vácuo imenso em meu coração, foi nesse dia.

Durante todo o tempo da minha visita, eu tinha sido bastante ingrato com a casa paterna; pouco ou nada tinha nela pensado; mas apenas me pus a caminho de casa, a minha consciência infantil mostrou-me esse caminho com um ar de censura e quanto mais desolado me senti, mais compreendi que era lá o meu refúgio e que minha mãe era a minha amiga e a minha consolação.

À medida que avançávamos, esse sentimento mais se apoderava de mim. Assim, ao reconhecer na estrada tudo quanto me era familiar e querido, sentia-me transportado do desejo de chegar junto de minha mãe e de me lançar em seus braços. Mas Peggotty, em vez de partilhar dos meus transportes, procurava tranquilizá-los (se bem que muito carinhosamente) e tinha o ar muito atrapalhado e constrangido.

Blunderstone-a-Rookery devia no entanto, a despeito dos esforços de Peggotty, aparecer na minha frente, quando isso aprouvesse ao cavalo do recoveiro. Enfim apareceu, como ainda bem me lembro, por essa fria manhã, sob um céu pardacento que anunciava chuva!

A porta abriu-se; meio a rir, meio a chorar, numa doce agitação, ergui os olhos para ver minha mãe. Não era ela, era uma criada desconhecida.

— Como, Peggotty! — disse eu num tom choroso. — Ela ainda não voltou?

— Voltou, sim, senhor Davy — disse Peggotty —, regressou. Espere um pouco, senhor Davy, e... terei a dizer-lhe uma coisa.

Em meio da sua atrapalhação, Peggotty, naturalmente muito desajeitada, rasgara o vestido todo com os esforços que fizera para se apear da carripana, mas eu estava muito assombrado e muito contrariado para lho dizer. Quando ela se apeou, levou-me pela mão até à cozinha e com grande estupefacção minha, fechou depois a porta.

— Peggotty — disse eu assustadíssimo —, que foi o que aconteceu?

— Nada, meu caro senhor Davy; Deus o abençoe! — respondeu ela, afectando tomar um ar alegre.

— Pois eu estou certo de que aconteceu alguma coisa. Aonde é que está a mamã?

— Aonde é que está a mamã, senhor Davy? — repetiu Peggotty.

— Sim. Porque é que ela não estava na grade e porque é que entrámos para aqui? Oh! Peggotty!

Os meus olhos marejavam-se de lágrimas e parecia-me que ia cair ao chão.

— Deus abençoe este querido menino! — exclamou Peggotty agarrando-me pelo braço. — Que é o que tem? Meu querido, fale-me.

— Ela não está morta, também? Oh! Peggotty, ela não está morta?

— Não! — exclamou Peggotty com uma energia incrível; depois sentou-se a arquejar, dizendo que eu lhe tinha causado um abalo.

Pus-me a beijá-la com toda a força para apagar esse abalo ou para lhe dar outro que rectificasse o primeiro, depois fiquei de pé diante dela, silencioso e atónito.

— Vê, meu querido, eu deveria ter-lho dito mais cedo — prosseguiu Peggotty —, mas não tive ocasião. Deveria tê-lo feito talvez, mas é... é que... não pude resolver-me completamente.

— Continue, Peggotty — disse eu mais assustado que nunca.

— Senhor Davy — disse Peggotty desapertando as fitas do chapéu com mão trémula e em voz entrecortada —, é que, vamos, o menino tem um papá!

Estremeci, depois fiquei pálido. Qualquer coisa, que eu não podia dizer o que fosse, qualquer coisa que parecia vir da campa do cemitério, como se os mortos tivessem despertado, passou por junto de mim, espalhando um sopro mortal.

— Outro — disse Peggotty.

— Outro? — repeti eu.

Peggotty tossiu levemente, como se tivesse engolido alguma coisa que lhe arranhasse a garganta, depois pegando-me na mão, disse-me:

— Venha-o ver.

— Não o quero ver.

— E a sua mamã? — disse Peggotty.

Não resisti mais e fomos direitos à sala grande, aonde me deixou. Minha mãe estava sentada num canto do fogão; vi Mister Murdstone sentado noutro. Minha mãe deixou cair a obra em que estava trabalhando e levantou-se precipitadamente, mas timidamente, segundo me pareceu.

— Agora, Clara, minha querida — disse Mister Murdstone —, olhe se se lembra! É preciso conter-se, é preciso conter-se sempre! Davy, meu rapaz, como tem passado?

Estendi-lhe a mão. Após um momento de pausa, fui beijar minha mãe: ela beijou-me também, pousou-me docemente a mão no ombro, depois continuou a trabalhar. Eu não podia olhar nem para ela nem para ele; mas bem sabia que ele estava a olhar para nós ambos; aproximei-me da janela e contemplei por muito tempo os arbustos que o peso das geadas fazia vergar.

Logo que pude fugir, subi a escada. O meu antigo quarto de que eu tanto gostava estava todo mudado, o meu novo quarto devia de ser bem longe dali. Desci para ver se encontrava qualquer coisa que não estivesse mudada: tudo me parecia tão diferente! Dei uma volta pelo pátio, mas fui logo obrigado a fugir, porque a casota, antigamente vazia, era agora ocupada por um canzarrão, de goela profunda e juba preta, um verdadeiro diabo: ao ver-me tinha-se atirado de encontro a mim como para me abocar.

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oi gentee bom a historia e de rua do medo so que em versão tipo a sam vai ser o finn a deena vai ser a s/n e etc. bom fiquem com a minha fic byee.