- Não, a senhora não pode mais comer nada industrializado e nem gorduroso. Sinto muito.
- Nadinha? Mesmo um pedacinho assim? - A dona Lourdes insiste, juntando a ponta do seu indicar e polegar gordinho.
Olho para a filha dela, que suspira, cansada.
- Nada. Seu coração precisa de todo o cuidado, já pensou a senhora sofre outro infarto? Não pode.
- O que me fará sofrer um ataque do coração é ser atendida por um médico tão bonitão como você.
Sorrio, sem jeito. A filha da dona Lourdes também parece ter ficado constrangida com a fala da mãe.
- A senhora tem que me prometer que não vai desobedecer.
- Só se você me prometer que não vai mais me chamar de senhora. Já pensou? Uma jovem como eu ser chamada assim, hum.
Dona Lourdes é uma figura e com certeza traz alegria para os momentos que a atendo. Ela sofre de pressão alta, é cardíaca e tem o colesterol lá na alturas, para uma senhora de quase noventa anos ela é muito enérgica. E não obedece.
- Trato feito, Lourdes - aperto sua mãozinha roliça e enrugada.
Tenho ficado cada vez mais preocupado com ela, já é terceira vez que essa senhora aparece aqui em duas semanas. É notável que sua filha não sabe mais o que fazer para controlá-la.
- Você é tão jovem e tão eficiente - ela prossegue, apertando meu antebraço enquanto eu tiro o medidor de pressão dela.
- Agora essa é a sua dieta saudável, está bem? - entrego as receitas e recomendações para a filha, após carimbar e rubricar minha assinatura depressa. - Precisaremos encaminhá-la para seu cardiologista mais uma vez, o caso dela é delicado.
- Entendo, muito obrigada, doutor Collins.
- Ele está arrumando uma desculpa para me ver novamente, porque eu estou ótima. Tá todo apaixonado.
- Acho que fui descoberto - sorrio, acenando enquanto ela é levada em uma cadeira de rodas para seu andar específico.
Olho para o teto, agora sozinho. Estou realmente torcendo para que dona Lourdes consiga se recuperar e aprenda a obedecer se quiser ter mais alguns anos de vida.
Começo a organizar minhas coisas ainda pensando na minha paciente idosa e teimosa. Ela foi a última pessoa que precisei atender. Já havia cumprido meu horário, mas antes que pudesse ir esbarrei com as duas no corredor e não podia ir sem antes examinar Lourdes. Acho que agora posso ir.
Hoje foi um dia longo, praticamente não dormi durante a noite. Acho que poderia dormir até aqui, no carro. Estava tão preocupado com a Malu que nem preguei os olhos. Acredito que até consegui cochilar um pouco quando ela quase me obrigou a dormir durante a madrugada, segurando minha mão. Aquela poltrona está longe de ser confortável e boa para dormir, mas nunca me senti tão relaxado. Tudo isso apenas por estar com ela por perto, é como minha calmaria depois de todos esses anos em que passei dormindo pouco e bebendo para me distrair.
Fiquei observando ela dormir por alguns minutos. Ali, no silêncio, segurando sua mão e tentando imaginar tudo o que passou sozinha. Pelo menos, nesses anos, eu ainda tinha meus amigos e a minha mãe por perto. E ela? Quem Malu recorria quando precisava conversar ou mesmo quando quisesse apenas um abraço ou rir um pouco?
Senti sob meu polegar a pele irritada e ferida de sua mão por tanto esfregar a região com seu gesto nervoso e ansioso.
Ninguém. Ela não recorreu a ninguém.
Eu até pensava sobre isso quando ela ainda estava longe. Pensava que deveria ter feito amigos por lá, Malu sempre teve o dom de conquistar amizades em qualquer lugar e circunstância. Mas isso também não aconteceu e foi uma das coisas que mais me surpreendeu que ela me revelou no dia da nossa conversa.
Queria que soubesse que agora não está mais sozinha, que jamais vou permitir que fique solitária novamente. Mesmo que Malu tenha que ir embora, vou dar um jeito de estar por perto. Restaurar nossa confiança. Quero ajudar ela a se recuperar.
Não sabia o quanto queria isso até essa madrugada, vendo-a dormir tão serenamente e sentindo sua mão castigada. Mesmo dormindo carrega uma expressão preocupada e perturbada, parece querer estar sempre em alerta. Gostaria de saber o que se passa na cabeça dela, o que esconde por trás da escuridão de seus pensamentos. Consegui perceber que aos poucos àquela Malu alegre de antes às vezes surge em um breve e rápido momento. Pelo menos ainda está ali, escondida. Parece que agora ela não está mais tão na defensiva comigo, apesar de eu sentir que ainda existe uma armadura.
Eu sou tão apaixonado por ela. Queria poder quebrar todas as nossas barreiras, juntos. Mas agora não posso, ainda.
Os Willians parecem animados na casa ao lado, consigo escutar a falação deles daqui de casa. Acabei de chegar, mas imagino que alguns amigos da família estejam lá. É o que os carros estacionados em frente a residência deles diz. Ela deve estar feliz com eles.
Malu recebeu alta no fim da tarde, acabou saindo em um horário movimentado. Acho que a notícia se espalhou e ela acabou tendo que ficar longos minutos atendendo os fãs que apareceram, mesmo os funcionários do hospital entraram na onda. E fez questão de atender todo mundo, mesmo que tenham sido inconvenientes. Tive que aguentar Beatrice por quase uma hora inteira no meu ouvido dizendo o quanto Malu foi gentil e incrível. Como se eu já não soubesse.
Viro o restante de uísque em meu copo de uma vez, antes de subir para meu quarto e tomar um banho. Se tornou um hábito beber pelo menos um pouco em dias mais cheios ou difíceis.
Deixo a água escorrer pelo meu corpo, enquanto fico imóvel por alguns segundos apenas sentindo as gotas mornas pingarem do meu cabelo e sumirem no chão. Não vejo a hora de poder cair na cama e dormir até o outro dia, espero que a insônia não me pegue hoje.
Não demoro muito no banho, estou com tanto sono que se demorasse mais poderia acabar dormindo em pé no box.
Normalmente eu durmo apenas de cueca, mas com o tempo tão negativo é quase impossível dormir assim. Então acabo vestindo uma calça de moletom e uma camiseta de mangas.
As portas da minha sacada estão fechadas, mas as cortinas abertas. Eu sempre esqueço de fechar tudo. O que me surpreende é a cabeleira loira do outro lado. Malu. Ela está na sua própria sacada, de costas para a minha. Imagino que esteja na cadeira de rodas, já que não consigo ver nada além de sua cabeça.
Fico em dúvida entre abrir as portas e falar com ela ou apenas ir dormir.
O que ela está fazendo sozinha? Pensei que estaria descontraindo com seus familiares, é o que a velha Malu faria. Claro. Se ela passou tanto tempo de sentindo sozinha, por que não aproveita a companhia ao seu redor agora? Não faz sentido para mim.
Apenas se... Sim, com certeza deve ser isso. Estou aprendendo conhecer essa nova versão dela, mas acho que estou indo bem o suficiente para já ser capaz de perceber que ela está com medo de se acostumar com tudo isso e ter que voltar a ficar sozinha de novo depois que for embora.
É óbvio que acabo escolhendo ir falar com ela.
Destravo as portas e abro apenas uma delas, fazendo uma careta para a camada gelada de vento que invade meu quarto. Assopro e esfrego minhas mãos antes de pisar na sacada de uma vez, atraindo a atenção da Malu com o barulho que devo ter feito.
Ela demora alguns segundos para se virar, passando a mão pelo rosto depressa.
- Olá - cumprimenta, se virando com um sorriso que não parece tão confiante assim.
Não consigo ver muito o seu rosto por causa da escuridão em nossa volta, mas tenho quase certeza que seus olhos parecem um pouco marejados.
- Olá - devolvo, cruzando meus braços para bloquear um pouco do frio.
- Como foi seu dia?
Malu apoia seus antebraços no parapeito, precisando se esticar um pouco pra apoiar seu queixo sobre eles.
- Uma paciente minha acha que estou apaixonado por ela - sorrio com a lembrança da senhora Lourdes, tão enfraquecida, mas ainda sorridente.
Vejo Malu se mexer um pouco, ajeitando a postura como se estivesse desconfortável.
- Ah, é mesmo?
- Sim - solto uma risada breve pelo nariz. - Ela é muito divertida.
- Huum.
Malu olha para o lado, prendendo o lábio inferior com seus dentes.
- Como ela se chama?
- Lourdes.
- Lourdes? Que nome de velha - ela parece deixar escapar, se dando conta tarde demais. - Talvez nem tanto, só é... diferente? - sugere.
Jogo minha cabeça para trás ao rir, ao voltar apoio meus braços cruzados no parapeito também.
- Nome de velha? - aperto meus olhos em sua direção, desviando por um segundo para seu lábio avermelhado preso entre os dentes. - Talvez seja porque ela, de fato, é uma senhora de oitenta e nove anos. Velha? Eu diria bem vívida. Idosa também serve.
Malu abre a boca e depois a fecha, no outro segundo ela gargalha.
- Caramba, que idiotice - apesar de parecer culpada, Malu não sente a menor vergonha e nem consegue parar de rir. - Desculpa, mas quando você sugere que uma paciente pensa que você é apaixonado por ela, eu penso em uma mulher menos vívida.
- Qual o problema? Eu poderia me apaixonar por uma senhora. Você sabe que eu acredito naquele negócio sobre o amor não escolher idade.
O X dá questão não é essa. Eu não posso me apaixonar por uma senhora e nenhuma outra mulher porque já estou apaixonado.
- Eu não disse que não pode! - repuxo meus lábios em um sorrisinho lateral enquanto assisto Malu gesticular com diversão. - Sinta-se livre para se apaixonar por uma senhora. Esquisito? Talvez um pouco, mas quem liga?
- Eu não posso. Não por causa da idade - pigarreio. - Enfim, você adoraria conhecer a dona Lourdes. Arrisco dizer que ela é capaz de te deixar constrangida.
- Eu realmente quero conhecê-la agora.
- Vamos ver se esse encontro pode acontecer algum dia.
- Aliás, - seu rosto se ilumina. - quero muito ver o Dog.
- Quando você quiser, a partir de amanhã.
Malu sorri sem mostrar os dentes, olhando atentamente para mim. Apoio meu queixo na palma da minha mão, focado na mulher diante de mim. Ela ainda tem aquele mesmo olhar curioso enquanto me observa, como se fosse descobrir algo novo mesmo me conhecendo a vida toda.
- O que estava fazendo aqui, sozinha, nesse frio?
- Meu pai me ajudou a subir porque eu precisava pegar umas coisas e acabei ficando mais tempo. Sabe como é, muita gente em casa hoje.
- Você costumava adorar quando estavam com a casa cheia.
- Sim, não é como se eu não estivesse feliz por todos eles estarem aqui e por mim, só que... - ela para de falar, incapaz de continuar.
- Não quer se acostumar novamente e voltar ficar sem isso quando for embora? - sugiro.
Malu volta a olhar para mim com uma expressão perdida.
- Algo assim - murmura, engolindo em seco. - Como você percebeu?
- Você pode ter mudado, Malu, mas sempre vou procurar te entender.
Os lábios de Malu se abrem um pouco, mesmo ela não dizendo nada a seguir. Talvez minhas palavras tenham a afetado, nem planejei dizer algo do tipo, só que escapou.
- Bom, acho melhor nós entrarmos - ela começa empurrar sua cadeira para dentro, de costas. - Daqui a pouco vamos congelar.
- Claro - solto um suspiro frustrado. - Boa noite.
- Boa noite - ela força um sorriso enquanto fecha as portas um tanto atrapalhada por conta da cadeira.
Esfrego minha testa com o antebraço, fechando as portas da sacada com o outro.
É evidente que nossa confiança está em frangalhos, não posso dizer coisas desse tipo agora que estamos apenas recomeçando e hoje foi o primeiro dia que nos falamos após domingo. Não faço idéia do que fazer para poder melhorar isso, talvez algo grande tenha que acontecer para podermos reconstruir isso. Tenho a impressão que nada que eu fizer vai servir.
Pelo menos nós estamos conversando agora. Não consigo tirar seu sorriso da minha cabeça e nem a atitude que teve no hospital mais cedo, de se preocupar comigo e me fazer dormir na poltrona ao seu lado, segurando sua mão. Foram pequenos gestos que tiveram uma importância gigantesca para mim. Talvez nossa confiança venha sendo restaurada assim, aos poucos.
É confuso.
Olho para a sua carta em cima da minha mesa de estudos, é como se isso fosse uma prova de tudo o que aconteceu entre a gente. Às vezes penso que foi tudo um sonho perfeito e agora estou vivendo uma realidade ruim.
Malu e eu temos muita história, um conto diferente a cada ano. Ela está na minha vida há dezesseis anos, é mais da metade dos anos da minha existência.
Me pergunto até onde teríamos chegado se não tivéssemos nos envolvido romanticamente, se nossa amizade teria sido conservada. Já pensei nisso outras vezes, mas tenho suposições diferentes a cada vez. De qualquer modo, eu não mudaria o fato de termos nos apaixonado. Antes conhecer o amor do que nunca ter sentido.
Antes dela eu pensava que sabia o que era amar alguém e se entregar de verdade, já tive outros relacionamentos. Mas depois que tomei consciência da imensidão de nossos sentimentos, percebi que tudo o que havia sentido até ali tinha sido quase medíocre.
É o sentimento mais bonito da minha vida.
Elsa não é Sierra, quem entendeu, entendeu haha. Próximo cap também já está pronto, livre do bloqueio estooou. Então, se vocês encherem esse aqui de votos e comentários vou adiantar a postagem do seguinte. E está bem intenso, teremos o retorno de um certo personagem ai, na verdade, meio que dois. Soltei e sumi.
Beijos
Alice.