Passado Perverso (DEGUSTAÇÃO)

By GRB2015

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*COMPLETO NA AMAZON Lucas Yard tinha apenas dez anos quando foi encontrado morto em uma caixa de areia, mas c... More

Prólogo - Areia e Morte
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Capítulo XXIII + Aviso

Capítulo X

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By GRB2015


Painswick

Quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Manhã, 11h27

Foi uma semana apática, por assim dizer, como os primeiros ventos de uma tempestade que estava para despencar, como aqueles curtos segundos de silêncio antes do estrondo de uma granada que se arrebenta e estraçalha todos ao seu arredor com seus estilhaços. Com suas consequências.

Naquela manhã, depois de tomar o café da manhã do hotel, Harley Cleanwater voltou para seu quarto, abrindo a janela, sentindo o ar fresco depois da garoa da manhã, que se dissipou rapidamente, permitindo que ela olhasse para a rua sem se importar em molhar suas roupas.

Lá embaixo, tudo parecia normal. Poças de água, sacos de lixo, pessoas caminhando, um cachorro cheirando um poste, dois pássaros passando rapidamente contra o parapeito e fazendo-a dar um salto diante o seu bater de asas pesado.

Mesmo com a morte os rodeando, eles ainda viviam. Era assim que tinha que ser. As pessoas seguem em frente, ou assim tentam fazer. Porém, durante aqueles dias, Mary Yard não fez questão de colocar uma máscara feliz nem sequer vestir-se de maneira considerada apropriada.

Na verdade, todos os dias, perto da hora do almoço, com seu fiapo de sanidade, a mãe que perdera um filho segurava-se firmemente a um cobertor infantil, enrolado em suas costas, lágrimas escorrendo por sua pele seca enquanto os olhos vasculhavam as pequenas cabeças jovens que corriam para fora da The Croft Primary School na esperança de encontrar Lucas vindo até seus braços, com seu sorriso doce, braços magrelos que gostavam de abraçar suas pernas e uma risada encantadora.

Grande parte de sua mente – possivelmente a maior parte dela – aceitava que ele estava morto, porém uma camada quase imperceptível, como uma luz bruxuleante diante a escuridão, ensandecia seus pensamentos e a fazia estar ali, todos os dias.

Se a mente acreditasse que o garoto pudesse voltar, mesmo com ele já enterrado em um caixão de cimento, então ao menos havia um motivo para viver. Mary Yard tornou-se um organismo em estado de defesa, porque sem seu filho ela não conseguiu encontrar um motivo para viver.

E Harley se perguntava como Elena reagiria caso Ursel fosse encontrado morto.

Graças a visita ao pediatra da família Hargroove, a detetive chegou à conclusão de que não importava onde, ou como ou quando, era irremediavelmente verdade que, quando nos aproximamos de algo muito perfeito, encontraremos suas imperfeições. Um fio que escapa do tecido. Uma pincelada na direção errada. Uma mentira em meias verdades.

Agora só bastava saber se Elena desprender-se-ia de tudo isso diante a morte do filho, que, de forma horrenda e lúgubre, se tornava cada vez mais provável aos olhos da detetive.

E, naquela manhã, Cleanwater desejou que não estivesse certa a todo instante, porque seu celular vibrou em uma ligação, que em nada foi agradável mesmo sendo a voz de Eldric Heartland a recebê-la, o qual, secamente, lhe disse:

— Um corpo foi encontrado. — Ele respirou fundo antes de terminar. — Venha para a delegacia.

Então, quando ele desligou, Harley apanhou sua bolsa, certificou-se de que seus cigarros estavam ali e depois abriu o frigobar e jogou as garrafas de vodca para dentro, antes de sair, sabendo que precisaria de algo forte para mais tarde.

...

Harley não esperou pela permissão da recepcionista quando alcançou a central de polícia de Painswick, passando diretamente pelo balcão, cruzando o quadro de informações e se encaminhando para a sala de Lenny Lover, o delegado baixo e gordinho que a recebeu com olhos de rato raivoso assim que escancarou a porta de seu escritório.

— Mas que merda é essa!? — Sua voz soou mais fina do que ele esperava.

— Achei que já tivéssemos sido apresentados — zombou ela ainda que a piada voltasse-se contra si mesma.

— E nem por isso a senhorita tem direito de invadir a minha sala! — continuou, com razão, porém Eldric, sentado no lado direito com as pernas cruzadas, interveio:

— Fui eu quem a chamou, delegado.

Aquilo não fez Lenny Lover sorrir.

— E por que fez isso?

— Não é óbvio? — Harley encaminhou-se até a cadeira vazia na frente da mesa do delegado, jogando-se sobre ela, deixando a bolsa cair sobre o chão e cruzando os braços, estudando-o, vendo como o suor em sua testa brilhava e a pilha de cinzas sobre o cinzeiro em sua mesa mostrava o quanto ele já havia fumado. — Ursel Hargroove está morto.

Ainda que o delegado quisesse discutir e esbravejar, ele não o fez, contendo-se em morder a própria língua até arrancar sangue para, então, responder à detetive, cujo orgulho, presunção e arrogância lhe corroía até os ossos:

— Não foi comprovado que a criança encontrada é o filho de Elena.

Harley franziu o cenho e fitou Eldric de soslaio, vendo-o mudar de posição, endireitando-se por entre uma lufada de ar.

— Não? — O tom dela soou fraco.

— Não — insistiu Lenny sem sorrir.

— Mas está óbvio que é ele, não é? — Harley ergueu uma sobrancelha. — Ou os brilhantes cavalheiros estão achando que uma nova criança foi morta?

O comentário foi grosseiro e pontual, atingiu tanto Lenny quanto Eldric, que a encarou com um olhar que dizia: colabore.

— Na verdade, Srta. Cleanwater, eu creio que sim — admitiu o delegado apertando os olhos antes de coçar o nariz, os cotovelos sobre a mesa, a personificação do cansaço em suas feições rechonchudas e gordurosas naquele traje apertado.

— Seria apostar muito no acaso, delegado — ponderou ela considerando o pedido silencioso de Heartland. Naquele caso, talvez fosse melhor colaborar, realmente. — Uma nova criança morta em Painswick...

— É aí que está, Harley — interrompeu Eldric atraindo sua atenção conforme ele inclinava-se para frente, cortando o ar abafado com seus olhos intensos e sérios, empertigados na mesma medida que apreensivos. — Não foi aqui.

O céu da boca da detetive secou e ela sentiu o coração saltar uma batida conforme seu estômago colava-se às costas.

— Onde, então? — A pergunta escapou por entre os lábios secos, que já começavam a atiçar a mente com a ideia de agarrar uma das pequenas garrafas dentro de sua bolsa.

— Na aldeia de Millpool, Cardinham — completou o delegado Lover conforme inspirava fundo.

— Não é longe — ressaltou ela com as sobrancelhas arqueadas.

— Não, não é — concordou Lenny. — Mas isso leva o caso para outra jurisdição.

Harley sentiu a saliva arranhar conforme descia por sua garganta ardida, os olhos de Eldric parecendo acompanhar cada um de seus movimentos, como se ela pudesse ser a solução do quebra-cabeça confuso em sua mente.

— Como é? — A detetive agitou os cílios.

— Bem, Cardinham fica no meio do condado de Cornwall, e sua polícia trabalha em conjunto com a de Devonshire. — As mãos do homem se entrelaçaram. — Não há nada que possamos fazer diretamente, porque o corpo foi encontrado lá, porém eles contataram a polícia de Gloucestershire que repassou para a nossa unidade, já que, apenas em nosso vilarejo...

— Uma criança foi encontrada morta e a outra desapareceu. — Harley concluiu o pensamento. — Então pode ser Ursel...

— Ou outra criança. — Eldric tensionou o maxilar e sentiu o peso de suas palavras. — Isso, ao menos, nos mostraria o caminho que o assassino está fazendo.

Harley negou com a cabeça, sentindo os cabelos batendo contra o rosto conforme um sorriso surgia apático por entre seus lábios unidos antes de dizer:

— Não.

— A senhorita discorda? — Lenny ergueu uma sobrancelha e estreitou o olhar.

— Sim.

— Por quê?

— Porque eu acho que é exatamente isso que o assassino iria querer que pensássemos — justificou trocando olhares entre Lenny e Eldric, detendo-se para o segundo, por fim. — Ele quer nos afastar de Painswick.

— Srta. Cleanwater... — começou o delegado apenas para ser interrompido.

— Por qual motivo? — Eldric pareceu ignorar a presença de Lenny.

— Porque eu estou aqui.

Lenny riu com desdém e Eldric pareceu decepcionado com a resposta, seu pomo de adão subindo e descendo conforme a perna direita sacudia.

— Perdão, detetive, mas isso já é arrogância demais. — O delegado gesticulou com as mãos rapidamente, limpando o suor de seu rosto.

— Sei disso — afirmou ela sem constranger-se, na verdade, vendo como eles reagiram exatamente como ela previra. Harley sabia o tamanho de seu orgulho, mas também o de sua inteligência. — E reafirmo o que disse.

O sorriso no rosto do delegado desfez-se e ela aproveitou um momento de silêncio para continuar:

— A meu ver, Painswick é onde o assassino gosta de agir. É onde ele se sente confortável e, comigo aqui... eu sou um fator novo com o qual ele não contava.

Os homens permaneceram ouvindo-a, Eldric realmente considerando aquela hipótese conforme a força na voz de Harley aumentava ao prosseguir:

— Então, ele esconde o corpo em Millpool, para que pensemos que ele está levando seu caminho de horror adiante, para que outro departamento assuma o caso, para que percamos tempo. — Ela sentiu os seios erguendo-se conforme respirava fundo. — Ele quer nos atrasar, e não podemos permitir isso.

O ar tornou-se quieto, nem mesmo o exterior parecia ousar romper a linha de pensamento pela qual eles seguiam.

— Bem, isso faria sentido, se for Ursel. — O delegado, a contragosto, teve de concordar. — Mas se não for...

— Teremos de investigar, de qualquer maneira. — Eldric ergueu-se, as pernas esticando naqueles jeans pretos conforme ele caminhava até a mesa do delegado. — O nosso condado já nos eu permissão, poderemos ir.

Lenny encarou-o, depois fitou Harley e pareceu entrar em conflito consigo mesmo por alguns instantes, conforme reclinava a cadeira e apanhava uma folha em branco, sobre a qual começou a escrever algo com tinta azul, de uma caneta que apanhou do porta lápis ao lado de seu cinzeiro.

— O que é isso, senhor? — questionou Eldric conforme o delegado lhe entregava o papel.

— Uma carta de autorização assinada por mim dizendo que delego a você as minhas funções, assim, caso haja algum imprevisto, poderá contorná-lo facilmente.

O detetive assentiu e guardou a carta no bolso atrás de sua calça, a luz que entrava pela janela fazendo a fivela de seu cinto cintilar bem na altura dos olhos de Harley, que apenas desviou o rosto na direção de Lenny e perguntou:

— Por que a carta?

O delegado pareceu confuso.

— Ora, acabei de explicar...

— Sim, mas por que não é o senhor que está indo? — Harley queria pressioná-lo. Algo em Lenny Lover despertava o pior nela. — Uma criança surge morta em um condado vizinho e o senhor delega a outro a sua tarefa?

Ele rangeu os dentes e os dedos endureceram.

— Isso irá soar estranho, não?

— A imprensa não saberá sobre o caso, detetive Cleanwater — reforçou ele com seriedade.

— Bem, acho que isso agora cabe a outra jurisdição decidir. — Ela levantou-se, ficando ao lado de Eldric, lhe lançando um olhar que pedia para que ele ficasse atento ao que o homem dizia. — O caso está tomando proporções maiores do que esperávamos, delegado, talvez fosse melhor anunciar por si mesmo do que esperar por terceiros.

Mas o homem esticou as mãos sobre a mesa, alongando seus dedos calmamente antes de olhá-la e dizer:

— Ficarei para alertar Elena Hargroove que encontraram um corpo, prepará-la para o pior, detetive. — Os olhos dele permaneceram afiados como agulhas conforme erguia seu indicador em riste. Talvez ela também despertasse o pior nele. — Para você, ela é apenas uma cliente pagante, para mim ela é a minha família, ela faz parte da minha cidade!

Harley respirou fundo. A conversa já havia terminado por ali, nada mais lhe seria útil de ouvir, porém Lenny ainda tinha algo a dizer:

— Vão até Cardinham, descubram se o corpo encontrado pertence a Ursel Hargroove e retornem. — Ele aprumou-se em sua cadeira e apoiou as mãos sobre a barriga redonda conforme via-os saindo, porém assim que alcançaram a soleira da porta, ele continuou: — Por Deus e pela senhorita, detetive, espero que não seja o garoto.

A mulher parou por um momento.

— Vamos, Harley... — chamou Eldric já no corredor, porém a mulher não olhava para ele, mas sim na direção de Lenny, por sobre seu ombro, estreitando o olhar e franzindo o cenho ao perguntar:

— Por mim? O que quer dizer com isso?

Um sorriso tosco e ardiloso surgiu no rosto do delegado Lover.

— Ora, senhorita, se não for Ursel, então ainda terá o seu emprego, mas se for... não acho que Elena a irá querer por perto.

A atmosfera pareceu cair sobre seus ombros e seus olhos notaram pequenas partículas de poeira sobre o ar, separando-os, impedindo que as fagulhas de seus olhos o incendiassem diretamente.

— Tem certeza de que ela é quem não me quer aqui? — retrucou Harley por entre um sibilar dos lábios, de tal forma que Heartland não ouviu sua resposta. — Eu vou descobrir o que aconteceu com o garoto, delegado, mas não precisa se preocupar, vou permitir que leve o crédito e te coloquem em um pedestal, sei que é o que mais lhe conta. — A mulher segurou a maçaneta da porta com toda a sua raiva, até mesmo temendo que ela soltasse da madeira. — Afinal, é só por debaixo da luz que encontramos as falhas de alguém.

Então, com um baque estrondoso que fez as paredes tremerem, Harley abandonou Lenny Lover em sua sala quente, caminhando a passos firmes na direção de Eldric conforme digeria com acidez aquele comentário de mal gosto.

...

Era enervante ficar dentro de um carro e nada dizer, quase como se estar em um automóvel em movimento compelisse seus usuários a falar algo, de tal forma que isso refletia no modo como Harley ficava batendo as pontas dos dedos contra a porta, o pé direito sacudindo a perna conforme ela mordia o interior da boca olhando o exterior.

O vidro estava aberto de ambos os lados enquanto Eldric dirigia. A mulher não conseguia entender como um homem tão inteligente servia alguém tão inútil e asqueroso como Lenny Lover. O delegado tinha uma aversão a visitantes externos que a detetive nem conseguia imaginar como ele trataria alguém que viesse, realmente, do exterior, como um imigrante ou algo do tipo.

Lenny não parecia acreditar que não era Ursel.

Ou talvez fosse ela.

De qualquer forma, a estrada parecia longa demais para a detetive, que sentia-se não só desconfortável com a atitude nojenta e prepotente do chefe de polícia, mas também por Heartland, já que ele não parecia desconfortável com a viagem ou sequer com seu superior, de tal forma que, quando finalmente alcançaram uma linha reta, ela permitiu-se romper o silêncio:

— Ele é sempre assim?

Eldric encarou-a de soslaio.

— Como é?

— Lenny Lover. Ele é sempre tão escroto com as pessoas?

O tom dela não era zombeteiro e revelava nuances de estresse, uma raiva consumida dentro de si, mas que ele percebeu, de tal forma que não sorriu ou sequer moveu o rosto, apenas firmou as mãos no volante e respondeu:

— Ele é um homem complicado.

— É um homem que parece que ficaria mais feliz se eu fosse embora, sendo que, ainda assim, sou uma das poucas pessoas realmente trabalhando nesse caso.

— Você também não se faz fácil de agradar, Harley — ponderou erguendo a sobrancelha. — São duas pessoas difíceis.

Ela revirou os olhos, escorregando o corpo para frente, abrindo sua bolsa e apanhando a primeira garrafinha de vodca, virando-a nos lábios.

— Já? — perguntou ele com estranhamento.

— Já é quase meio dia, então, sim — respondeu com o dar de ombros conforme jogava a garrafinha fora no pequeno porta lixo preso ao câmbio. — Sem falar que... está sendo mais fácil, assim.

— Bebendo?

Ela anuiu com a cabeça e o silêncio se abateu sobre o carro novamente, dessa vez mais constrangedor e sufocante do que antes. Mesmo que estivessem trabalhando juntos, nem por isso eram amigos, os quais teriam longos assuntos a se tratar numa viagem, como histórias passadas que compartilhavam em memórias felizes.

Poucas eram as memórias felizes que eles tinham.

— Esse caso virá a público, sabe disso, não é? — perguntou ela depois de certo tempo, respirando fundo, encostando a cabeça contra a porta.

— Sei — admitiu com pesar. — Mas isso é uma coisa boa, não? Era o que você queria.

Ela sentiu como se aquele comentário lhe atribuísse certa culpa, porém relevou aquilo, os pensamentos saltando de um para o outro rápido demais.

— Só teria sido bom se Ursel não tivesse de morrer para isso — completou sentindo um tijolo em suas entranhas, o olhar de Eldric repousando sobre ela. — Não me olhe assim, Eldric, já deixei claro minha teoria de o assassino querer nos atrasar.

— Sim, mas... só estou tentando te entender em tudo isso.

Harley sorriu com o canto dos lábios.

— Tarefa difícil?

— Quase impossível — admitiu coçando o queixo. — Decifrar seus pensamentos é...

— É um perigo, porque nada de bom vem deles — retrucou rapidamente, interrompendo-o. — Eu espero o pior, na esperança de ser surpreendida pelo melhor, mas... ultimamente? Parece que o pior é a única regularidade em minha vida.

Um breve momento de silêncio conforme viravam em uma curva sinuosa e a detetive retomou a fala, sem lhe dar uma chance de falar:

— Mas... eu realmente odeio que mintam para mim, e sabe disso.

— Acha que o delegado está mentindo?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Viu? Não foi tão difícil concluir esse meu pensamento — zombou com cansaço. O caso estava exaurindo cada fibra de esperança dentro dela. — E a resposta é: sim, eu acho.

— Ele não tem motivo para isso, Harley.

— Nenhum motivo aparente — acrescentou rapidamente com um arregalar dos olhos.

— O delegado Lenny é muito conhecido na cidade, respeitável...

— E não há melhor forma para mentir do que essa? — A detetive ajeitou-se em seu banco e olhou-o diretamente. — Deixar que os outros criem uma imagem de homem bom entorno de si, então quando fizer algo de errado, a não ser que seja comprovado, ninguém acreditará.

Eldric considerou aquilo por alguns segundo conforme umedecia os lábios, os olhos vidrados na estrada e os campos abertos.

— Como o ditado do lobo em pele de cordeiro...

— Exato.

O homem engoliu com dificuldade um pigarro em sua garganta antes de falar:

— É exatamente isso que estou pensando a respeito do ex-marido de Elena.

Harley estranhou a frase, franzindo o cenho, surpresa, pois ela veemente pensava que Eldric seguia sua mesma linha de raciocínio.

— Como?

— Bem, era ele quem levava Ursel para o pediatra, até o divórcio ser realmente efetivado há três anos. O casamento acabou muito antes, e Ursel nasceu de uma tentativa do casal de reatar o amor, quem sabe? Ele ser o assassino faria sentido, ao menos, considerando o que me disse sobre Mary e Dariel terem tido um caso. Isso o ligaria a Lucas Yard.

— Mas qual seria a motivação?

— Não sei ainda, porém é mais uma possibilidade, claro, e já são muitas... — admitiu estando tão no escuro quanto a detetive. — Só estou pontuando que teremos de falar com Dariel, se quisermos mais respostas.

— Especialmente com Ursel sendo, de fato, o filho dele — finalizou a mulher.

Heartland teve de concordar, mas, embora quisesse um novo momento de silêncio, para alinhar seus pensamentos e tornar a visão de todo o caso mais ampla e menos confusa, ele sabia que ela não tinha terminado.

— O que te faz desconfiar do delegado, Harley?

Os olhos dela brilharam com a pergunta.

— Não desconfio dele como assassino, mas... parece que ele quer acobertar algo, não necessariamente o crime.

Eldric estreitou o olhar não conseguindo entender.

— Sinto que ele é um homem de segredos e ele tem medo de que o expúnhamos, só isso — explicou ela mais calmamente. — Afinal, em um caso tão importante como esse... por que mandar você, Eldric?

Ele arregalou os olhos e as sobrancelhas arquearam, de tal forma que ela se antecipou:

— Não quero ofendê-lo, mas sabe que o cargo dele é superior ao seu. Acabaram de descobrir um corpo... ele é quem deveria ir até Millpool, mas por que raios ele não veio?

Então, finalmente, Heartland teve seu novo momento de quietude, porque não soube como respondê-la.

...

Uma garoa fina os recebeu quando alcançaram a região de pesca de Cardinham, os saltos da detetive afundando por entre a grama úmida e tornando seu caminhar um desafio a mais a se enfrentar naquele dia, seus olhos atentos às pequenas poças formadas por uma chuva mais forte de dias anteriores.

— Bem, não há tantos jornalistas — ressaltou Eldric conforme olhava para trás, vendo-a arrancando o salto de dentro da terra com um grunhido nervoso.

— Uma das poucas vantagens de se morar afastado de tudo! — Seu tom saiu mais enérgico devido à frustração em seu caminhar. — Mas o delegado ficará enraivecido, com certeza.

— Posso te carregar no colo, se quiser — ofereceu ele com um sorriso ardido, o qual fez seus olhos brilharem naquele ambiente pálido e tristonho, onde o cinza mais belo se tornou feio.

— Você adoraria, não? — Mas ela não lhe deu este prazer, arrancando os saltos, segurando-os e ultrapassando Eldric, sendo ela a primeira a ter contato com o dono do lugar.

Era um sujeito de feições engraçadas, com um nariz maior do que qualquer outra parte de seu rosto e sobrancelhas tão finas que era difícil dizer se realmente estavam ali, mas que perdera todo o ar da graça com o horror que ocorrera naquele lugar, e ele em nada se tranquilizou ao ver uma detetive aproximando-se dele, os sapatos nas mãos e os olhos frios como a garoa.

— Senhor... — A voz dela esperou pela do homem.

— W-Woods. — Os lábios dele balbuciaram, nervosos. — Jackson Woods.

— Bem, Sr. Woods, meu nome é Harley Cleanwater e este é Eldric Heartland. — Ela apontou para o homem que acabara de chegar ao seu lado, passando as mãos sobre os fios de cabelo e expulsando a água sobre eles. — Somos os detetives da cidade de Painswick, e a polícia do seu condado nos contatou.

Novamente, Eldric percebeu que a mulher preferiu seguir pelo caminho no qual não falaria que fazia parte de uma iniciativa privada, ou seja, Harley poderia usufruir da carta que ele carregava em seu bolso.

Esperta! O detetive teve de admitir sem se surpreender.

— Gostaria que nos contasse o que houve.

Os olhos de Jackson Woods eram injetados em seu rosto, azuis, e alternaram entre as duas figuras paradas à sua frente e a janela embaçada, que mostrava apenas o delinear das poucas pessoas lá fora, próximas a um furgão e a um protótipo de ambulância, já que o segundo carro parecia tão apertado que o próprio homem sentira-se decepcionado ao vê-la chegando.

— Se está preocupado com a imprensa, Sr. Woods, saiba que falaremos com eles depois — explicou Eldric com calma, sua voz, firme e robusta, atraindo os olhos do homem novamente. — Mas entendo que... a atual situação não será boa para o seu negócio.

Jackson anuiu com o pesar de quem já ganhava pouco naquela época do ano e que, agora, ganharia ainda menos, coçando o nariz e ajustando seu colete verde-musgo, ajeitando a postura para dizer:

— Foi horrível... nunca, em todos os meus anos aqui, vi algo parecido...

— Está aqui tem muito tempo? — Foi Eldric quem perguntou, os olhos de Harley atentos ao arredor, desde as enormes e finas varas de pesca até latas metálicas amassadas, caixotes vazios, panos, luvas e iscas.

— Trinta e cinco anos! — admitiu sem saber o que fazer com as mãos, sentindo-as tremendo, mas incapaz de deixá-las atrás das costas, gesticulando de vez em quando. — Veja bem... meu pai construiu este pórtico junto ao pai dele, então...

— É da família — concluiu a detetive forçando um sorriso.

— Sim, sim... e, agora... ai meu Deus... — Foi então que Jackson Woods desabou em lágrimas de medo e horror, de uma vez, finalmente encontrando o que fazer com as mãos, apertando os olhos enquanto as bochechas tornavam-se vermelhas. — Eu não queria chorar, eu juro!

— Não tem problema. — Apesar do tom de Eldric sempre soar impositivo, ele conseguiu ser reconfortante naquele momento, apanhando um dos panos velhos sobre o balcão de varas e entregando ao seu dono. — Respire fundo, Sr. Woods, sabemos como é difícil.

— Não tão difícil quanto para a família, certamente! — replico, o nariz escorrendo e veias saltando em seus olhos. — Ah meu Senhor, o que falarão para a família? Como... como vão dar uma notícia dessas?

— Sr. Woods, tem de se acalmar...

— Era só um menininho! Como alguém pode fazer algo do tipo? Como!? Não fui eu que o encontrei, mas...

Harley sentiu a respiração pesar ao toar o ombro do homem.

— Vou levá-lo para fora, parece que há algum paramédico por lá, precisa se acalmar...

De fato o ar fresco auxiliou o homem a arrefecer seus nervos, ainda que lentamente, a respiração aos tropeços conforme Harley e Eldric se apresentavam novamente diante de dois paramédicos, um jornalista e um homem esguio, de olheiras profundas e queixo pontudo, que se apresentou como Josh Sallow, o homem que encontrou o corpo do garoto, o qual Harley não via em lugar algum, imaginando se, talvez, aquela primitiva ambulância já havia feito dois trajetos.

— E como o senhor o encontrou? — questionou Heartland assistindo ao modo como o homem se encolhia em um cobertor felpudo e os dois paramédicos auxiliavam o senhor Woods.

— Na verdade... não fui eu — negou e aquilo fez Harley franzir o cenho. — Foi meu sobrinho, Dewnans.

— Dewnans? — A detetive não reconheceu o nome carregado de sotaque.

— Sim... bem, ao menos em córnico. — Os olhos dele fitaram a mulher. — Em inglês, pronuncia-se Devon.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Podemos falar com ele? — perguntou, porém antes que o homem respondesse, ela sentiu como seus olhos a avaliaram desde seu cabelo até a ponta de seus dedos do pé, que sentiam a grama gelada contra eles.

— Acho melhor não — negou e, de imediato, Harley calçou seus sapatos novamente.

— Ele seria uma testemunha essencial... — Mas, assim que a mulher tentou insistir, Josh saltou para frente dela aos berros:

— ELE É SÓ UMA CRIANÇA! UMA CRINAÇA, TÁ BEM!? ESSA MERDA JÁ VAI TRAUMATIZAR ELE PELO RESTO DA VIDA!

— Okay, okay, sente-se... — pediu Eldric mais como uma ordem, colocando-se entre Harley e Josh, a mão em seu peito, empurrando-o suavemente para trás. — É importante que fiquemos calmos, todos... — Os olhos do detetive foram imediatamente na direção do jornalista, que tomava notas em um pequeno bloquinho amarelo.

— Nós só precisávamos de um dia bom... — A voz de Josh escapou melancólica, fraca, quase que por entre um respirar abobalhado, de tal forma que Harley apenas revirou os olhos, impaciente, sabendo que dele nada conseguiriam, resolvendo deixar Eldric ali e mudar de alvo.

O jornalista!

— Diga-me que você não está à beira de um ataque de nervos e pode me dizer o que está acontecendo. — A aproximação dela não poderia ter sido mais hostil, porém o jornalista reagiu de forma apropriada, baixando seu bloco de notas e encarando-a por detrás de seus óculos quadrados, que tornavam seu rosto maior do que realmente era.

— Não acha que é uma reação apropriada? A histeria? — O responder com novos questionamentos fez o maxilar da mulher endurecer. Era óbvio que tudo que ela dissesse sairia em alguma manchete, por aí, então ela teria de ser cautelosa. — Encontraram uma criança morta...

— E, ainda assim, você me parece surpreendentemente calmo — ressaltou arqueando as sobrancelhas.

— Nathan Dills nunca está estressado — respondeu suscinto, falando de si mesmo na terceira pessoa, como se isso fosse o primeiro sinal de seu ego inflado. — Não se pode conseguir a verdade em meio ao estresse.

— Então já está aí a resposta para sua pergunta — retrucou analisando-o do mesmo modo que ele fazia, vendo como seu terninho marrom e os sapatos de fivela faziam-na lembrar de Edgar Jenkis, o detetive da polícia de Castle Combe. Ela quis vomitar nesse instante.

— Não tente fugir, detetive, não ficaria bonito em uma matéria...

— Não sou eu que estou fugindo. — Ela negou com um movimento da cabeça. — Eu vim até o senhor, quero que me conte o que aconteceu.

— E o que me contará em troca?

Os olhos dela estreitaram-se.

— Nada em oficial.

— Então nada feito.

— Entende que chantagear a polícia não é a melhor opção, não é?

Mas Nathan riu disso.

— Srta. Cleanwater, deixe-me explicar algo... — Ele deu um passo para frente, seus olhos na altura dos dela com fervoro. — Eu sou um jornalista que se preza, um dos melhores, se me permitir dizer, e já fiz minha pesquisa sobre você assim que disse seu nome.

Harley engoliu em seco.

— Sei que é uma detetive particular de Castle Combe, então... não tente mentir — concluiu com um ar de superioridade que a fez cerrar os punhos com força, sentindo a unha cravando na pele como uma tentativa miseravelmente falha de relaxar.

— Se sabe que sou de uma inciativa privada, então também entende que as informações que tenho são ainda mais sigilosas.

— Mas está ao lado de um detetive oficial da polícia, então deve saber de algo a mais — ponderou conforme fitava as costas largas de Eldric atrás delas. — Voce é esperta, sabe que precisa de mim assim como preciso de você, se não quiser perder tempo com homens histéricos.

— Você precisa de mim? — A frase soou estranha na mente dela de tal forma que ela precisou perguntar em voz alta.

— Esses vilarejos... são medíocres! — resmungou olhando de um lado para o outro não a fim de se certificar que estavam sendo ouvidos, mas como se para constatar como verdadeiro o que dizia. — Não há oportunidade de crescimento profissional aqui! Nunca teve! Mas, com uma história como essa... posso ir para Londres, posso crescer e me tornar o jornalista que sei que sou.

Harley cruzou os braços e sorriu com os lábios colados

— Quer que sua carreira cresça em cima da morte de uma criança?

— Fala como se eu fosse o responsável por elas.

A detetive não conseguiu deixar de simpatizar com a astucia e sagacidade do homem, que não deveria passar dos trinta e cinco, apesar dos vincos ao lado dos olhos e do bigode chinês que se movia conforme falava.

— A notícia será dada uma hora ou outra, então quero que seja por mim — terminou ele, porém a detetive queria ver até onde a inteligência de Nathan Dills poderia ir e, ao mesmo tempo, descobrir o que ele sabia.

— Crianças morrem todos os dias, Sr. Dills, e nem por isso são feitas manchetes no The Guardian.

— Mas as crianças não são encontradas amarradas e nuas dentro de um lago — contrapôs ele rapidamente com orgulho, até perceber o que havia feito e uma sombra de decepção cruzar seu rosto.

— Nu, você diz? — Ela perdeu o sorriso, por mais que, por dentro, sentisse que havia feito seu trabalho direito e manipulado a conversa até ali, porque aquela pequena palavra soou como o puxar de um gatilho ao lado de sua orelha.

— Já chega! Não vou falar mais nada! — Nathan tornou-se abrasivo diante seu desapontamento, ameaçando caminha em outra direção, porém Harley deu apenas um passo sobre a grama, equilibrando-se melhor, desta vez, quando disse:

— Não está se preguntando o motivo de uma detetive de Castle Combe ter vindo até aqui?

Nathan parou, os olhos cabisbaixos e a boca repuxada conforme voltava a encará-la.

— É claro que pensei, mas de que adianta? Já tem o que quer, agora deixe-me em paz!

— Ainda não tenho tudo, Sr. Dills, e sinto que você sabe mais do que me contou. Aquilo foi apenas o começo... — Harley abaixou os braços em uma tentativa de parecer mais receptiva e apoiou o peso do corpo sobre a perna direita. — Tudo bem, eu aceito seus termos, uma informação em troca de outra.

Os olhos dele se arregalaram em esperança. Esperança de sair daquele buraco. Esperança de ser alguém na vida, alguém melhor! Uma esperança que Harley também já havia sentido um dia.

— Bem, o que está esperando? — questionou ele com um breve gesticular das mãos, apontando-as para ela.

— Que o senhor me dê uma informação — replicou como se fosse óbvio, dando de ombros.

— Ora, mas eu...

— Não, não, Sr. Dills, a informação do garoto estar nu eu consegui sozinha, sem sua ajuda — explicou calmamente, vendo como lampejos de raiva delineavam certas linhas do rosto dele. — Nosso acordo começa agora.

Ainda que ele espumasse pelo canto dos lábios rachados devido a vantagem que ela estaria levando sobre ele — algo que Eldric custou a perceber —, Nathan percebeu que ela era sua melhor opção.

— O sobrinho do Sr. Sallow encontrou o corpo do menino quando estavam pescando. O anzol prendeu na carne morta e puxou o corpo para a margem. A vítima estava com as mãos e os pés amarrados nas costas e não portava suas roupas. — Ouvir o modo seco com que as informações saíram fez o estomago de Harley embrulhar-se, especialmente ao imaginar como o aço cortou a pele fria. — É tudo o que consegui até agora.

Ela não se deu por vencida, porém decidiu colaborar, umedecendo os lábios e apoiando as mãos na cintura ao dizer:

— Fui contratada por Elena Hargroove para buscar por seu filho desaparecido, porque ela não achou que o trabalho da polícia estava sendo o suficiente.

— E estava? — As mãos já portavam o bloquinho amarelo e uma caneta azul mais uma vez.

— Certeza de que quer gastar sua pergunta com uma dúvida dessas?

Nathan engoliu em seco.

— Não sei de mais nada, detetive, é verdade.

— Mentira — replicou ela erguendo uma sobrancelha. — Você não me disse onde está o corpo.

— Isto é porque ele já foi levado para autópsia pela polícia de Devonshire — explicou sem rodeios até que aquela informação recaiu sobre os dois com estranheza, trazendo um gosto amargo para seus lábios. — Isso não é comum, não é? Tirarem o corpo da cena do crime... antes de vocês chegarem.

O coração de Harley bateu mais rápido e ela sentiu o sangue fluir com violência até suas têmporas.

— Eles devem ter tido um motivo... afinal o corpo estava na água, talvez fosse questão de preservar, não sei...

Mas a mente de Harley já corria por outras possibilidades, de tal forma que ela apenas girou nos calcanhares, indo em direção a Eldric.

— Ei! Você não me disse mais nada!

Então ela se deteve rapidamente, virando para ele, o amargor em sua língua conforme as palavras saíram com acidez:

— Pare e se pergunte: Castle Combe, Painswick, Millpool. Três áreas vizinhas com polícias de condados diferentes que só agora se conectaram. Acha que eu viria até aqui apenas por um desaparecimento?

Nathan Dills sentiu as pernas tremerem.

— Seja lá quem for essa criança... — Harley decidiu omitir o nome de Ursel por hora, apesar do jornalista já ter o nome de Elena. — ... saiba que ela não foi a primeira.

...

Quando Eldric finalmente entrou de volta em seu carro, onde Harley já o esperava, ele a encarou incrédulo, surpreso, as mãos se recusando a tocar a chave da ignição conforme a detetive apenas fitava a vista à sua frente: um lago tranquilo, onde o corpo de um garoto foi encontrado.

— Espero que você tenha um bom motivo para que não fiquemos aqui, Cleanwater — vociferou ele de forma furtiva, chamando-a pelo sobrenome de forma a alertá-la de seu desagrado.

— Não adianta ficarmos nesta cena do crime...

— É claro que adianta! — interrompeu-a ele. — Estava conversando o Sr. Wood, ele está mais calmo, disse que o local fica mais cheio em datas específicas, como páscoa ou dia dos pais...

— Isso em nada vai nos adiantar, Eldric, e você sabe disso! — A voz dela soou firme, os olhos desfocando do lago e voltando-se para ele. — O que quer fazer? Buscar a lista de todas as pessoas que frequentaram este lugar? Vamos perder semanas nisso!

— Pelo menos é a nossa chance de descobrir algo! Não podemos sair daqui, as respostas...

— Estão no corpo — concluiu ela interpelando-o conforme engolia em seco. — Precisamos do corpo, Eldric, e ele não está aqui.

Os olhos dele estreitaram-se para ela, frios, duros, os punhos agarrados ao tecido das jeans.

— O que quer dizer com "não está aqui"?

— Conversei com Nathan Dills, a única pessoa da imprensa que veio cobrir o que aconteceu, e ele disse que o corpo já saiu daqui com a polícia de Devon, Eldric, que já está com a perícia antes mesmo que olhássemos.

O ar materializou-se como um tijolo sobre o peito dele, e o homem sentiu como se estivesse afundando em seu assento, sufocando seus pulmões, que arderam como se estivessem em flamas.

— Se eles tiram o corpo, não temos uma cena do crime para ficar... se quiser podemos vasculhar o lago, mas...

— Não — negou veemente, os músculos do rosto contraídos em uma raiva crescente que Harley não sabia dizer quando explodiria. — Não podemos perder mais tempo, se eles tiraram o corpo, foi porque não queriam que víssemos algo.

A detetive concordou e seu coração pareceu reconfortar-se com o som da ignição do carro, as rodas esmagando a grama macia e voltando para a estrada sem explicar a ninguém o que estavam fazendo.

— Sabe para onde está indo? — questionou ela apesar de vê-lo tão frio e distante, ainda que estivesse ao seu lado. Algo dentro dele parecia ter mudado, assim como os rumos do caso.

— É claro. A polícia de Devonshire tem uma predileção pelo hospital público, iremos para lá. — Ele a fitou conforme sentia a boca secar, inexpressivo. — Por favor, me diz o que está pensando para que eu não atropele a primeira coisa que aparecer em nossa frente.

— Não acho que vá gostar do que eu vou dizer...

— Harley! — uma ordem inteira pareceu escapar por entre o nome dela, dito de maneira tão furiosa, os olhos vidrados na estrada; a mulher só conseguia desejar que nenhum animal aparecesse cruzando o pavimento, mordendo o interior de sua bochecha antes de responder:

— Estou convencida de que tudo é um mero espetáculo.

O som dos pneus era enervante, rápidos — até demais — e as mãos dela cravaram-se sobre as pernas, tentando manter-se calma, mas as figuras do exterior, mesmo que apáticas e repetitivas, ficavam cada vez mais disformes.

— Espero que não seja estúpida de me fazer pedir para explicar. — Sua voz saiu grosseira e ríspida, como uma lixa. — Harley? — A voz soou mais lívida, ainda que apreensiva.

A detetive teve de agitar os cílios para focar seus pensamentos. Nunca havia visto tamanha agressividade em tão poucas palavras e movimentos. Naquele instante, ela percebeu que Eldric não estava bem.

— Para mim, o assassino, seja quem for, quer que as pessoas vejam os corpos.

— Ah é? E para que isso? Por que arriscar ser pego? — Suas palavras soavam ignorantemente desacreditadas, porém, assim que Eldric lhe fez a pergunta, a voz do Padre Lewis ressurgiu na mente da detetive, de tal forma que a resposta apenas escapou pelos lábios dela tal qual acontecera com o padre:

— Para que as pessoas percam a fé... quando a próxima criança desaparecer. — A ponta dos dedos dela tremeu por alguns segundos quando terminou, porque uma possibilidade passou a ser certeza para eles:

Uma nova criança iria sumir, restando a pergunta que acompanhou a detetive até o fim do trajeto:

Quando?


*Eu AMO capítulos que me desafiam, e este foi um deles, especialmente pelo tamanho!!! Foram quase 7.000 palavras e eu tinha de tornar tudo instigante e dinâmico. Sinto que consegue, mas são vocês que me dizem: o que acharam? 

*Capítulo de hoje só foi postado por causa de um dos melhores pedidos que já recebi de uma leitora, então usem esta nota de rodapé para deixar seu agradecimento pela Mari <3 ahahah


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