O barulho dos pingos de chuva acalma meu coração. Foi um dia e tanto.
Ainda não consegui falar com mamãe, após terminarmos de lavar a louça o papai disse a ela que os dois precisavam conversar sobre o Liam e ela respondeu irritada que "esse assunto de novo não", aí largou a toalha de pratos sobre a mesa, subiu para o quarto e não saiu mais de lá; enquanto isso o papai segue vendo TV, esparramado no sofá da sala de estar.
Eu me ajeito na poltrona e encolho os joelhos, os olhos no laptop, revisando minha tese sobre os lêmures ratos pigmeus. Depois de um tempo mamãe desce e se senta com a gente, ela não diz nada, apenas se espreme ao lado do papai e deixa a cabeça pender no ombro dele.
Ele sorri para ela, e eu sorrio para os dois.
Porém basta recordar o que o Oli me disse e que em algum momento terei de confrontá-la para que a minha bolha de felicidade estoure. Por mais que eu tente não consigo visualizar mamãe com alguém tão sórdido quanto o sr. Stantford, ele simplesmente não é o tipo de pessoa com a qual ela se relacionaria, mamãe tem verdadeira aversão a pessoas arrogantes e esnobes feito ele.
Parece que alguém está jogando confetes celestiais sobre a terra. Consegue ver?
A mensagem pisca no canto direito da tela, me pegando de surpresa.
É o Oli.
Tento não chamar a atenção dos meus pais para o fato de que estou rindo feito uma boba quando levanto da poltrona, apressada para correr para o quarto e conversar com ele nem que seja apenas por alguns minutos.
― Eu estou indo estudar no quarto.
Mantenho a boca bem fechada para não rir, porque estou realmente feliz.
― Tudo bem, querida ― mamãe responde.
― Mas antes vem aqui e me dá um beijo ― papai pede, apontando a própria bochecha.
Afundo no colchão com o laptop sobre as pernas e começo a digitar: Que coincidência, aqui também está chovendo.
Oli: Sei disso Madison's Place é como um chamariz de chuva nesta época do ano.
Eu: Espera. Está aqui em Madison's Place? Está de volta!
Oli: De volta e louco pra te ver.
Meu coração faz uma pausa e em seguida dispara.
Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ele está de volta e quer me ver. Quais as chances disso tudo ser apenas um sonho? Nenhuma!
Eu: Nem acredito que está mesmo de volta. Também estou louca pra te ver, senti tanto a sua falta. Mas por que não me disse que estava retornando?
Oli: Queria fazer uma surpresa.
Eu: Você vai ao desfile do Dia do Fundador amanhã, não é? Podemos arrumar uma maneira de nos encontrarmos no parque.
Oli: É, com certeza eu vou. ― Oli para de digitar por um ínterim antes de perguntar: ― Falou com a sua mãe?
Eu: Ainda não tive oportunidade. Mas eu vou. E o seu pai falou mais alguma coisa?
Oli: Não. Nada.
Eu não sei por quanto tempo continuamos conversando antes de eu começar a ouvir uma série de gritos vindos lá de baixo. Num primeiro momento imagino que seja só mais uma das discussões de mamãe e papai, mas então os gritos se intensificam e junto com eles o barulho de vozes desconhecidas.
Salto da cama e disparo pelo corredor com o coração aos pulos, minhas pernas mal sustentam o peso do meu corpo conforme me precipito pela escada. Os gritos ficam mais intensos a cada passada ― gritos embebidos em lágrimas.
As luzes da sala de estar foram todas acesas e corro para o meio dela, onde meus pais estão. Mamãe chora e treme dos pés à cabeça e seus olhos se nublam ainda mais quando ela me vê. Papai passa o braço em volta de seus ombros numa tentativa de trazê-la para junto dele e fazê-la parar, porém, ela o repele.
― O que houve? ― pergunto, assim que recupero o ar.
Faço menção de me aproximar, mas sou repreendida por um gesto de mão de papai. Apesar de aparentemente mais controlado que mamãe, seu rosto perdeu toda a cor e, por mais que tente demonstrar firmeza, ele também está tremendo.
― Volte para o seu quarto, Viola ― me adverte.
Mamãe esconde o rosto entre as mãos e afunda no sofá, chorando copiosamente. É o retrato do desespero. Ela está se afogando em dor, e sinto que estou me afogando junto com ela.
― Para onde o levaram? ― sua voz ecoa pincelada por lágrimas.
― Ele foi encaminhado para o Memorial, senhora ― alguém responde com voz firme. Então eu me viro e vejo dois policiais parados na porta.
Ondas de gelo se elevam em meu interior, quebrando em minha alma e me fazendo arrepiar de cima abaixo.
Dessa vez nem os braços fortes de papai conseguem me impedir de chegar até mamãe e abraçá-la.
― Foi o Liam, não foi? O que houve com ele?
Com um suspiro pesado, mamãe responde:
― Seu irmão sofreu um acidente.
A dor se espalha por todo meu corpo, comprimindo meus órgãos e me impedindo de respirar normalmente. E enquanto a abraço tudo o que consigo fazer é movimentar os lábios e sacudir a cabeça em negação.
De jeito nenhum eu ia ficar em casa enquanto meu irmão luta pela vida. Nem sabemos ao certo o que aconteceu, os policiais não nos deram muitas informações, tudo o que nos foi dito foi que Liam sofreu um acidente e precisou ser encaminhado às pressas para o hospital. Imaginar Liam acamado em um hospital me deixa em pedaços e me faz pensar que assim como eu, todas as pessoas que eu amo são apenas um sopro, um fragmento no espaço tempo, uma partícula na história do universo; ainda essa tarde ele estava bem, dirigindo ao meu lado, falando coisas idiotas e me fazendo rir. Fico repetindo para mim mesma que ele é forte, que vai sair dessa, mas por mais que tente me manter positiva, o medo de perdê-lo às vezes me engole.
― Não pode ir mais rápido? ― mamãe soluça.
― Estou fazendo o possível ― a voz de papai oscila, acelerando o carro que mamãe emprestou da sra. Porter. ― Estamos quase chegando. Fica calma.
― Não me peça para ficar calma quando meu filho acaba de sofrer um acidente ― diz por entre os dentes.
― Ele também é meu filho, Eliza. Eu também estou preocupado, mas correr não vai facilitar as coisas para nós, muito pelo contrário.
― Ficar discutindo também não, então por que não param com isso? ― me intrometo.
Embora a distância até o Memorial seja de apenas alguns minutos, tenho a impressão de que uma vida inteira se passou antes de finalmente chegarmos. Mal papai para o carro, mamãe desabala pelo estacionamento; não parou de chorar um só momento no caminho até aqui, embora ficasse o tempo inteiro repetindo que precisava ser forte e que faria isso pelo Liam. Eu pego sua bolsa e saio correndo atrás dela, papai nos segue.
Quando chegamos à recepção mamãe já se encontra debruçada sobre a bancada em busca de informações, papai pede que eu fique onde estou e vai até ela. Sentindo as pernas fracas e o coração na boca, eu me sento em uma cadeira e começo a rezar baixinho.
Deus não vai tirar o Liam da gente, eu sei que não. O padre Cadence diz que todos temos uma missão neste mundo, e eu sei que a do Liam ainda não se concretizou.
A conversa com a atendente não dura mais que alguns minutos, ela sai de trás da bancada e nos guia por um extenso corredor branco até a sala de espera, onde pede que aguardemos até que o Dr. Karuma venha falar conosco.
Mamãe se desespera.
― Aguardar? Eu preciso saber como o meu filho está ― sua voz se eleva. ― Agora.
― Sinto muito, Eliza, mas terá que esperar. No momento ele se encontra na sala de cirurgia; assim que terminar o procedimento o doutor Karuma virá vê-los.
É a forma mais clichê de definir isso, mas o tempo parou. Sozinha com meus pais nesta sala, tenho a impressão de que fomos engaiolados em um pesadelo do qual não conseguimos escapar.
Mamãe soluça, os lábios crispados de preocupação. Ponho o braço no ombro dela e faço um carinho.
― Vai ficar tudo bem, mamãe ― começo a dizer. ― Liam nunca se renderia tão facilmente.
O jeito como olha para mim deixa claro que não está tão confiante disso, mesmo assim ela assente com a cabeça.
O papai saiu para pegar um café e ver se conseguia alguma informação sobre o real estado de Liam, e quase meia hora depois ainda não retornou, o que só serviu para deixar mamãe e eu ainda mais nervosas. Da minha parte, fico o tempo todo pensando que ele descobriu alguma coisa e não quer nos contar, e acredito que mamãe também tenha essa impressão.
Quando a porta da sala se abre e vejo o Dr. Karuma, meu coração fica pequeno e gelado, a sensação que tenho é que estou congelando de dentro para fora. Ele vem até nós e assim que o avista mamãe se apressa em encontrá-lo.
― Como ele está?
― Sinto dizer, mas as notícias não são as melhores, sra. Beene ― responde. ― O paciente sofreu múltiplas fraturas, teve o esterno e doze costelas quebradas, também sofreu uma séria perfuração no pulmão direito e teve o fígado praticamente destroçado.
De repente o rosto de mamãe perde toda a cor, ela cambaleia para trás antes de levar a mão à boca e desabar em lágrimas. Pra piorar não sei o que fazer para ajudá-la, pois me sinto tão impotente e devastada quanto. Levo o dorso da mão aos olhos a fim de enxuga-los, mas é em vão, as lágrimas não param de correr.
Doutor Karuma segura o cotovelo de mamãe, guiando-a em passos lentos até uma cadeira.
― Sente-se um pouco.
Mal mamãe se senta, papai entra correndo pela sala e se agacha à sua frente; as mãos dele fazem um carinho nos joelhos dela.
― Nosso menino, Fred ― ela soluça. ― Nosso pequeno.
Eu também me sento, as pernas fracas demais para sustentarem meu peso.
― Vai ficar tudo bem, Lizzie. Ele é um garoto forte, vai sair dessa.
― Tente se acalmar, sra. Beene, de nada adianta se desesperar.
― Como o Liam está? ― é a vez de papai questionar.
― Ele passou por uma intervenção cirúrgica para a retirada dos destroços que estavam alojados no pulmão e no fígado e colocamos um dreno no pulmão para evitar que o órgão seja ainda mais prejudicado. Devido à gravidade do quadro ele ainda não pode ser submetido à uma nova cirurgia, mas é quase certo que precisaremos recorrer a um transplante de fígado... e com urgência. A boa notícia é que conseguimos controlar a hemorragia e estabilizá-lo, mas Liam ainda necessita de sangue, ele passou por duas transfusões nas últimas horas e isso é apenas o começo.
Olá, gafanhotos!
Espero que tenham gostado do capítulo. Eu sei que foi curto, mas é o que estou conseguindo postar no momento.
Eu revisei, mas sempre deixo passar um erro ou outro.
Assim que melhorar volto com os gifs e notas.
Não esqueçam de apoiar o livro votando e comentando.
É isso. Cheiros e queijos!