Gatilho Verbal

Autorstwa xdanelias

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O Consultório do Dr. Psicólouco é o destino de vários loucos que, voluntária ou involuntariamente, precisam s... Więcej

Laudo 1
Laudo 3
Laudo 4
Laudo 5
Laudo 6
Laudo 7
Laudo 8
Laudo 9
Laudo 10

Laudo 2

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Autorstwa xdanelias

Depois de quase ser atropelado, o doido não queria mais continuar seu caminho rumo ao Consultório do Dr. Psicólouco. Não queria nem ter saído de casa, para começo de conversa. Entretanto alguns sons estranhos que ele andava ouvindo e que vinham do apartamento ao lado do seu o fizeram pensar que ir àquele local pudesse ser uma ideia melhor do que ficar em casa, tentando se isolar do mundo e isolar aquele som com alguns dós tocados em seu violão. Porém, sentia que se enganara.

Ele ficou confuso depois de deixar o asfalto no qual estivera caído durante cerca de dois minutos e meio. Segurava o seu violão fortemente contra o peito, feliz por ele não ter se partido e se reduzido a milhões de pedaços repletos de particularidades. Ele acreditava que seria extremamente estressante ter de catar todos os fragmentos do instrumento; de fato era muito bom tê-lo inteiro ainda, quase que um presente.

Caminhou lentamente na direção do tal endereço da Clínica de Psiquilouquia do Dr. Psicólouco com desespero e ansiedade. Esperava que o consultório não tivesse portas duplas, luzes muito fortes, filas grandes e muito menos senhas com números de três dígitos, o que seria o cúmulo. Preferia que fosse um local bem simples, vazio e calmo para que ele pudesse se concentrar em seu estudo constante da nota dó, que estava anexada há séculos nos violões e que era, sem dúvida, a única que realmente importava para aquele louco.

Não se lembrava do número da clínica, pois anotar números não era com ele, mas achava que conseguiria distinguir o que era clínica daquilo que não era apenas olhando. Por exemplo, o doido não teve dificuldades para perceber que a casa florida que via à sua frente estava longe de ser um centro de atendimento a malucos, uma vez que as flores podem incitar implicitamente a maluquice, pensou, assim como o cachorro que latia narcotizantemente no quintal vizinho, o que poderia irritar pacientes como ele próprio, um louco.

Ao avistar um local infelizmente grande, o biruta descalço percebeu então que se tratava de uma clínica, mas preferiu nem ler o letreiro que dizia que aquela era de fato a Clínica de Psiquilouquia do Dr. Psicólouco. Ao invés disso, seguiu sua intuição fragilizada e invadiu o território incerto portão adentro, aterrorizado com o barulho enferrujado que isso causou. Ele precisou tocar a nota dó de seu violão para esquecer aquele som horrível, tirá-lo de sua mente, porém, essa não foi uma tarefa fácil, já que tocar de pé não era algo realmente simples para aquele músico: envolvia uma série de coisas, como equilíbrio, concentração e memória.

Cada passo era uma tortura, era um passo a mais rumo a incerteza, ao movimento, às atitudes não calculadas e ao confronto com a complexa mente. Tudo aquilo deixava o doente ainda mais doido, o que não era bom, já que ele estava querendo mesmo era mostrar para si que era bastante racional, apesar de insano.

O primeiro problema encontrado foi um lance de três degraus de escada. Três era um péssimo número para ele, pois era o primeiro a aterrorizá-lo, a colocar em cheque a compreensão. Ele subiu cada degrau com um toque dó no violão, com a esperança de que isso o fizesse esquecer do número três. Mas a tentativa foi frustrada, infelizmente. Quando terminou a terrível subida, encontrou um novo e estressante obstáculo. "Portas duplas", exclamou baixinho ao encarar frente a frente um de seus muitos medos. Ele simplesmente deu meia volta, desceu os degraus, sem pensar, e se dirigiu ao portão em largas e desesperadas pisadas, ao concluir que seria um desafio atravessar não só uma, mas duas portas potencialmente perigosas para sua sanidade e seu equilíbrio emocional.

Apoiou o violão na coxa direita, que se encaixava relativamente bem nas silhuetas do instrumento, apertou com força a corda em uma casa específica com a mão esquerda e puxou a outra extremidade dela com o dedo indicador da mão direita. O som da nota dó calou a respiração ofegante e os pensamentos negativos do retardado, e ele se sentiu forte e capaz de cruzar as duas portas, sem problema.

Virou-se para encarar um de seus maiores medos, fechou os olhos e apertou o passo rumo às aterrorizantes portas. Ele tropeçou em um degrau e levou o maior susto. Tinha esquecido que havia três assustadores degraus naquela segunda vez que se aproximava das portas duplas, igualmente macabras. Apertando novamente a nota dó, desta vez com dificuldade, já que decidiu não usufruir do auxílio da coxa, ele encarou a breve subida e atravessou rapidamente as duas portas, que fizeram um barulho ensurdecedor para seus ouvidos já cansados.

Dentro do consultório, o louco percebeu que estava novamente ao chão, mas, dessa vez, não era um chão de concreto, mas sim de algo mais frio, do qual não se atreveria a tentar descobrir o material. Achou aquele piso confortante, apesar de tudo, e pouco conflitante com sua filosofia de vida, por isso, ficou deitado por algum tempo, relaxando e tocando a nota dó mais um pouco.

Ele ouviu sons horríveis que ficavam cada vez mais altos à medida que ele ia se levantando do chão, atento e pronto para usar seu violão como defesa. Os sons eram baques irritantes vindos de sapatos de salto estupidamente vermelhos, que iam contra os olhos assustados do doido. Ele não se atreveu a olhar quem era o dono daquele par de sapatos horripilantes, preferiu olhar para o teto alto e branco logo acima, mas disse "oi" como forma de enfrentamento corajoso, desistindo de deixar o chão.

"Mas que diabos...!", dizia a voz que certamente controlava o corpo que tinha seus dois pés enfiados naquele par de sapatos de péssimo gosto. "Esses doidos estão cada vez mais retardados... Bem que o Sr. Dr. Psicólouco me alertou...", prosseguiu.

Arlete precisaria de ajuda para lidar com aquele palerma que estava caído bem no capacho de entrada do consultório. Ela não poderia se atrever a estragar sua unha recém-pintada de vermelho ou gastar as solas de seus sapatos recém-adquiridos e, ainda por cima, largar seu posto de secretária. Ela teria de dar o sinal de emergência.

Rápida, ela correu até sua mesa, irritando bastante o doido caído com o violão, que tapou os ouvidos na mesma hora, e apertou um botão que ficava no verso da madeira que sustentava seu telefone e as papeladas com as quais tinha que lidar todos os dias. O botão emitiu um ruído que incomodou mais ainda o biruta, que começou a gritar como um tiranossauro e logo em seguida surgiram dois homens gigantescos da outra extremidade da sala de recepção.

Os homens eram idênticos, carecas, fortes e enormes, tanto de altura quanto de largura. Os dois vestiam branco e tinham os mesmos trejeitos, além de parecerem se mover em perfeita sincronia. Os homens, apesar de tudo, eram normais.

"Tem um idiota caído ali na porta de entrada", informou Arlete aos armários, que iam se movendo rapidamente na direção dela, apesar de que, mesmo assim, pareciam estar em câmera lenta, já que o saguão era tão grande que demoraram longos minutos para alcançar a secretária. "Por isso acionei o alarme", acrescentou ela, para quebrar o silêncio ocasionado pelo fim do alarme.

Mudos, os dois seguranças da clínica foram até o maluco e o agarraram, de modo que cada um ficou responsável por um braço do sujeito e um deles apanhou também o violão, carregando-o com a mão livre.

"NÃO!", gritou o doente mental. "Este é o meu violão! Devolvam! Vocês estão me narcotizando!", delirava. Ele jamais podia se separar daquele instrumento tão vital para sua sanidade. Era como se estivessem lhe arrancando um braço e, na verdade, ele realmente preferia perder um de seus braços do que aquele precioso instrumento.

Arlete suspirou aliviada. Ainda bem que havia aqueles dois homens gigantescos para lhe dar cobertura quando a situação fugisse do controle, pensava ela. "Tragam-no para cá", ordenoul, satisfeita com seu próprio timbre de autoridade, apontando com o indicador uma área perto de sua mesa.

Os homens esquisitos, porém normais, levaram o outro homem esquisito, porém louco, até a mesa de Arlete, sem soltá-lo nem por um minuto e esperaram que a secretária começasse a realizar os procedimentos que lhe eram cabíveis em situações como aquela.

"Trouxe o dinheiro para sua internação?", perguntou a secretária, olhando para os pés descalços e sujos do sujeito com indignação e repulsa.

"Eu... Liguei há pouco...", sussurrou o louco, apavorado com aquela situação, mas tristemente conformado, pois sabia desde que saíra de casa que aquele seria um dia horrível e cheio de imprevistos. "Vim me internar... quero... me curar, eu acho", complementou, sem tirar os olhos do chão, a menos para fitar, brevemente, seu violão, que estava protegido pelo punho de aço do enfermeiro do lado direito. "Meu nome é... S-s-s-s-s...", e não foi capaz de completar a frase.

"S-s-s-s-s o quê?!", questionou Arlete, mexendo nos papéis de sua mesa para ver se havia anotado em algum canto o nome do tal imbecil. "Ah, achei. É Ssss...", mas antes que pudesse completar, levou um susto que quase a fez dar de cara na mesa, pois suas pernas ficaram bambas e seus saltos novos quase se partiram com o espanto.

"NÃO DIGA MEU NOME!", berrou o tal do Ssss de forma alucinada.

"Tudo bem, não direi", respondeu a secretária, recompondo-se. "Bem, está na lista. Vocês...", e apontou para os dois homens enormes, porém normais, "podem levá-lo para alguma cela vazia", mandou. "Vou informar ao Psicólouco que temos um novo paciente na clínica", e riu de satisfação.

"Mas nessa tal sela não há cavalos, não é?", questionou Ssss, temeroso, pois não se dava bem com animais de espécie alguma. "E, por favor, eu não posso ficar sem o meu violão, entendem? É meu principal medicamento... eu me descontrolo sem ele... Por favor!", implorava, debatendo-se nos braços dos dois armários.

"Tá, tá, que seja!", respondeu Arlete, entediada, voltando sua atenção para outros assuntos, referentes à cor do seu novo esmalte.

"Obrigado!", gritou Sssss, com a voz ecoando de forma trêmula enquanto era arrastado pelo saguão. Seus pés em contato com o piso frio faziam um barulho horrível, que lhe deu agonia, e ele tentou dar passos ao invés de ser arrastado, mas os dois gigantes não estavam muito dispostos a esperar e continuaram levando-o suspenso, sem permitir que ele andasse decentemente.

Os dois conduziram o doido por um corredor cujo acesso exigiu que passassem por outras portas duplas, o que fez o novo paciente surtar e dar uns gritos. "Preciso do meu violão, agora!", dizia ele, sem saber que os enfermeiros não se importavam com o que ele precisava ou deixava de precisar. Cumpriam ordens, isso era tudo.

Depois de passarem por quatro portas, enquanto o louco gemia de desespero, os dois pararam na frente de uma que era a penúltima do corredor, a antecessora do quartinho privado do Dr. Psicólouco. Um dos grandalhões soltou Ssss, deixando que o outro o mantivesse onde estava, com o violão no outro braço. O normal com a mão livre pegou um molho de chaves do bolso e destrancou a porta com uma delas, depois, virou-se para Ssss e, junto de seu parceiro, enfiou o maluco dentro da sala, jogando-o no chão sem muita delicadeza.

"Ai!", protestava o maluco. "Me deem meu violão!", exigiu ele, caído, de costas para os dois, com o orgulho e a mente violentados. Os armários se entreolharam e riram, e um deles atirou o violão no chão, fazendo um ruído terrível, que ecoou pela sala durante tortuosos segundos. Ssss gritou ininterruptamente, tapando os ouvidos, e os dois armários trancaram a sala e foram embora.

A parte deles fora cumprida, o resto era tarefa do doutor. Em silêncio absoluto, os dois rumaram para fora do corredor, ignorando os gritos estridentes do doido que acabaram de trancar, que ecoavam pela clínica. Estavam acostumados com manifestações barulhentas como aquela e, se comparado a outros malucos que já passaram por ali, Ssss ainda não era dos piores.

O Psicólouco saiu de seu quartinho e o trancou, girando a chave duas vezes na fechadura, para garantir a segurança de seu diploma. Geralmente, sua secretária o avisava quando havia um novo interno na casa, entretanto, ela costumava fazer isso no fim do dia, para que doutor não precisasse se preocupar com o recém-chegado assim tão de repente. Era bem melhor não apressar os processos.

Mas, naquele dia, o Psicólouco estava inquieto e com vontade de exercer um pouco da função para a qual havia estudado por longos e tortuosos meses. Então, assim que ouviu os armários jogarem o novo biruta em uma sala vazia e, em seguida, o barulho dos cadeados, que indicava que o maluco estava devidamente trancafiado, ele resolveu ir até lá. Ficara tempo demais em seu quartinho, entediado. Enquanto ainda tivesse que ir de sua casa para o consultório, todo dia, não estaria satisfeito consigo mesmo. Gostava de ficar num canto escondido só para não ter que trabalhar, porém, para ser sincero, preferia procrastinar em casa: era bem mais prazeroso, sem falar que, em sua moradia, havia todo o conforto e a estrutura necessários para seus momentos de lazer.

Depois de pegar a ficha de internação do novo paciente com sua secretária, o especialista rumou direto para uma porta cheia de cadeados, onde os dois armários aguardavam seu comando. Para destrancar a porta que ficava ao lado de sua sala privada, ele tirou o molho de chaves novamente do bolso e começou a soltar os cadeados e fechaduras de um jeito monótono e sem pressa. Quando, enfim, terminou, atravessou o portal aberto e teve o cuidado lembrar os armários de trancar a sala do lado de fora e de abrirem somente quando ele pedisse. O Psicólouco encarou aquela sala cujo único móvel era uma confortável cadeira de mogno e tecido branco forrada com o algodão mais caro do mundo com olhares acostumados. A cela tinha janelas em forma de arcos compridos, por onde entrava a luz do dia, e, no canto mais escuro daquele lugar quadrado, estava o doido recém-chegado.

O diplomado foi então até sua cadeira, sem dizer nem sequer um "boa tarde" para o cara que havia sido, literalmente, jogado naquele outro canto da sala. É sempre bom manter distância, pensava o Psicólouco, afinal, se algum de seus pacientes se descontrolasse, ele devia estar bem longe para que desse tempo dos gêmeos enfermeiros virem salvá-lo de um perigo iminente. Seria mesmo um absurdo se um formado como ele fosse atacado ou ferido por um maluco qualquer, como era o caso do doido do outro lado da sala.

Depois de se sentar na cadeira destinada à ele, o trabalhador honesto percebeu que o homem no escuro estava tocando violão. Porém, ele não estava tocando decentemente, como faziam os músicos formados dos concertos incríveis que o Psicólouco tinha o hábito de assistir nos teatros e restaurantes chiques, destinados aos merecedores. Ele estava simplesmente fazendo seu dedo indicador direito dançar sob uma única corda, enquanto apertava, com o dedo indicador esquerdo, uma casa específica.

Elegantemente em seu móvel de mogno, o Psicólouco pegou sua prancheta de dentro do bolso do jaleco e sua caneta azul e, depois de apertar o botão que acionava a ponta, começou a fazer algumas anotações do comportamento ridículo daquele retardado. Ssss não encarava o diplomado, simplesmente continuava ali, tocando aquela nota ininterruptamente, alterando apenas as pausas e as durações de cada toque. Passado certo tempo, o Psicólouco resolveu falar.

"Então... Seu nome é?", perguntou em tom mediano. Ssss continuou tocando a nota e não deu a mínima para o doutor, que se sentiu imensamente ofendido com tamanha falta de respeito e repetiu a pergunta, de forma mais rude. Ainda sem obter resposta, o trabalhador respeitável e bem-sucedido anotou o mal comportamento do novo paciente e constatou que ele não seria capaz de curar-se se não mudasse sua postura alucinada e equivocada. Sem falar que aquele som ininterrupto de uma única nota sendo executada o estava dando nos nervos.

"Não consigo soltar meu violão", disse o doido, por fim. Embora aquilo não respondesse a pergunta do Psicólouco, o doutor ficou aliviado que, finalmente, o maluco tinha resolvido falar. Caso contrário, teria de ser mandando diretamente para a terapia de eletrochoque, que não era costumeira naquela clínica, ou seja, o louco teria de ser transferido para outro lugar, e o diplomado ganharia menos notas. "Será que estou ficando louco?", questionou-se o doido, sem parar de tocar a nota dó.

"Você é louco!", afirmou o Psicólouco, com todo o conhecimento que lhe fora conferido falando em uníssono com sua versão de voz calma e cordial. "Do contrário eu não estaria aqui, e do contrário não teria emprego, e do contrário não poderia ajuda-lo, pois do contrário, provavelmente, eu não teria um diploma", acrescentou.

"Diploma?", o louco repetiu, com indignação no olhar. O Psicólouco deu uma breve olhada no paciente que atendia e constatou que seu estado era deplorável. Ele estava terrivelmente pálido, tinha olheiras muito fortes em volta dos olhos esbugalhados de coruja. Ele usava uma touca, como se tivesse desistido de exibir sua cabeleira por algum motivo doutrinal ou artístico. Sua roupa era simples e escura, sem estampa alguma. Ele não usava sapatos, e seus pés sujos incomodavam demais o doutor. "Nunca vi um diploma de perto", e tocou a nota dó, "só espero que não tenha muita coisa escrita... Poderia me mostrar o seu?".

A pergunta do maluco foi de um atrevimento terrível. Em resposta a isso, o Psicólouco chegou a alterar seu tom macio de voz e alcançar ecos mais agudos, visivelmente incomodado. "Claro que não!", negou ele, enquanto o doido levava um breve susto e abaixava a cabeça, como um cão medroso, "Acha que diploma é como um desenho que você mostra para os seus pais esperando que eles te elogiem? Acha que meus pais me elogiaram quando mostrei meu desenho a eles?".

Ssss ficou confuso. Ele não gostava de perturbar os outros, nem tampouco de narcotizá-los. Talvez sua curiosidade tivesse despertado uma ira ou uma mágoa naquele doutor, e o doido se sentiu culpado. Por que fizera isso, afinal? De onde viera esse impulso de perguntar sobre o diploma dele? O próprio maluco não gostava de informação demais, por que é que havia perguntando? Talvez ele fosse uma eterna contradição mesmo. "Eles não te elogiaram quando... quando mostrou o seu diploma para eles?", perguntou o doido com um tom baixo. "Sinto muito", complementou, achando que era o mais educado.

"Cale a boca!", o Psicólouco achou aquilo um absurdo. Como aquele louco ousava ter compaixão por ele, um homem diplomado e infinitamente superior? "Acha que quero seus sentimentos? Quero analisá-los, não os quero emprestado! Se valessem de alguma coisa talvez eu pedisse!", urrou o instruído, enquanto Ssss se escondia atrás de seu violão e tentava abafar aqueles gritos tocando uma enxurrada de notas dó. "Aqui nesse universo sentimentos são o prazo de validade para a felicidade! Agora cale a boca e diga logo qual é o seu nome e seu problema!", pontuou, tentando se recompor, apertando o calmante botão da caneta azul diversas vezes.

"Tudo bem...", sussurrou o doido, decidido a cooperar. Sua vida solitária de apartamento nunca fora fácil. Nunca fora compreendido pelas pessoas que, na maioria das vezes, riam de seus hábitos desconexos e desengonçados. Mas ele nunca pôde evitar. Havia um grande barulho no exterior que interferia muito em seu interior, e era isso que o assustava demais. "Meu nome é S-s-s-s-s... Meu nome é S-s-s-s-s...", e calou-se, sem conseguir, mais uma vez, pronunciar seu nome.

"S-s-s-s-s não é seu nome!", afirmou o Psicólouco, consultando a lista em sua prancheta. "É o que está escrito aqui, mas não é possível que esse seja seu nome. Parece que você tem algum trauma em relação a seu nome e por isso não consegue nem ao menos pronunciá-lo", disse, usando outros loucos que passaram pelo consultório como referência para sua tese, pois todos eram muito previsíveis para aquele doutor competente e experiente.

"Sim... há... há um trauma... Eu acho...", e Sssss tocou novamente a nota dó de seu violão. "E eu não... não quero falar disso...", acrescentou, "E nem... e nem do meu problema...".

O Psicólouco já não aguentava mais perder tempo naquela sala. Estava arrependido de ter decidido atender o biruta naquele dia e ansioso para sair da cela. O que quer que aquele louco tivesse passado em sua vida, não era de seu interesse no momento. Ele só queria relaxar, comer alguma coisa, sair dali. Como era desagradável lidar com aquele tipo de gente, cheia de problemas, querendo resolver suas vidas tão medíocres e pouco significativas. "Vai me dizer sim! Preciso anotar tudo para que seus familiares me paguem! Eu sou o Psicólouco aqui, e por isso exijo que me diga o que não quer dizer, para que você tenha ao menos uma chance de sair curado daqui, embora, sinceramente, eu acredite que você é retardado demais para tanto...", e bufou, com impaciência. "Agora diga logo o seu nome!".

Sssss decidiu falar de uma vez por todas. Afinal, aquele doutor estava usando um aterrorizante excesso de palavras para formar suas frases e estava perdendo a paciência também, o que não podia ser bom sinal. Toda vez que o doido tirava alguém do sério, essa pessoa disparava contra ele palavras cada vez mais agressivas e cada vez mais complexas, palavras das quais muitas ele não conhecia, e preferia morrer sem nunca conhecer. De fato, certas palavras podiam muito bem matar. "Tudo bem, tudo bem...", disse o louco, querendo por um fim àquela tortura. "Meu nome é S-s-s... S-sódó!", concluiu em um berro, cansando-se de guardar aquele segredo macabro para si.

"Sódó?", repetiu o Psicólouco, soltando uma risadinha maliciosa, sem poder prever que o maluco ergueria a cabeça, o encararia pela primeira vez e, com todo o ódio, gritaria: NÃO DIGA MEU NOME, em alto e bom som. "Não disse seu nome!", gritou o Psicólouco, com um pouco de atraso, já que não esperava tal reação, fazendo o doido recuar e se apoiar na parede, o violão sendo usado como escudo. "O que eu ia dizer é que... você só toca a nota dó em seu violão, de fato...", disse.

Sódó encarou seu dedo indicador esquerdo, que pressionava firmemente a corda e depois seu olhar foi até a outra extremidade do instrumento, onde seu outro indicador segurava o fim da corda. "Oh sim. Meu violão...", murmurou o maluco. "Ele é meu problema. Eu... eu não consigo soltá-lo... Ele me completa, sabe? Eu nunca pensei em tocar outro instrumento, só violão. Coisas como... flauta ou... pandeiro... São tão complexas, não?", falou, com pausas que irritavam bastante o Psicólouco.

"De fato", concordou o diplomado ironicamente, anotando as bobagens que o biruta falava para poder, em breve, trocar aquelas singelas páginas por consideráveis notas. "Mas por que você não gosta que falem seu nome? Ou melhor, por que é que você mesmo não diz seu nome em voz alta sem fazer todas essas caras ridículas?", perguntou, falando tão rápido que o doido demorou para compreender a pergunta.

"Bom... na... na época da... esc-cola... Naquela época todos riam do meu nome. E não só disso", e Sódó se calou. "Por isso eu decidi que meu nome é Frederico. O problema é que mesmo pedindo para que me chamassem de Frederico, todo mundo sempre me chamou pelo meu nome real...", e tocou uns dós enquanto olhava para o chão, revivendo momentos péssimos de sua vida na cabeça. Ele, então, começou a tocar a mesma nota cada vez mais alto, para que seu cérebro se concentrasse no barulho deixasse de lado aquelas suas lembranças desagradáveis.

"Entendi", disse o profissional, terminando de anotar. "Bem, é óbvio que viver perto de alguém como você é insuportável e, muitas vezes, desafiador. Mas pode ficar tranquilo, pois aqui, trancado nessa sala, não vai incomodar mais ninguém com seus tolos questionamentos...", disse o Psicólouco, observando no ambiente se, de fato, as janelas compridas em arco estavam mesmo bem fechadas e também se havia algum buraco naquelas paredes pintadas de um bege bem sem graça.

Nas sombras, o paciente decidiu se explicar. "Na verdade, doutor...", começou ele, tocando alguns dós durante as pausas e falando sem, em momento algum, tirar os olhos de seu violão, seus dedos ou do próprio chão. "Hoje em dia tem muita informação nas ruas... é muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. São tantas coisas, tantos barulhos, tantas possibilidades... Não consigo me concentrar. Não há controle!", desabafou, esperando que o Psicólouco pudesse compreendê-lo, enquanto, na verdade, ele estava se sentindo um pouco sonolento, e, vez ou outra, dava piscadas demoradas. "Acho que quanto mais focada a vida, melhor. Por exemplo, comer sempre as mesmas coisas... tentar não mudar de lado da calçada... Assistir sempre a Cubo... Sabe, coisas... simples! Do contrário eu não consigo viver tranquilamente. Eu me sinto...", e um de um avião, sobrevoando a cidade, que, para o maluco, foi ensurdecedor, fez com que ele tremesse de medo e usasse mais dós do que o normal para abafar aquele terrível som. "Narcotizado!" concluiu.

"Hã?", exclamou o Psicólouco, despertando de um breve cochilo, com certa dor no pescoço, já que estava sentado. "Oh, sim, tudo bem, tudo bem, entendo, você é doido e etc...", e anotou coisas que o biruta não havia dito, mas que o sentenciariam como louco, de qualquer forma. "Bem, tudo o que posso dizer é que você não vai sair dessa sala até que cheguem pelo menos mais três novos pacientes aqui na clínica. Você compreende?", perguntou, pondo-se de pé, sem o intuito de se demorar mais naquele cômodo.

"Eu ficarei aqui... sozinho?", surpreendeu-se Sódó, com aqueles olhos esbugalhados encarando por apenas alguns segundos os olhos perfeitamente frios e escuros do Psicólouco. "Poderei ficar aqui em absoluto silêncio e tentar terminar de compor minha música?", perguntou.

O Psicólouco revirou os olhos. "Como quiser", falou, vendo as horas em seu relógio dourado de pulso. "Se quiser comer, beber ou ir ao banheiro, terá que segurar a vontade dos três, já que os enfermeiros o levarão para saciar essas suas necessidades apenas nos momentos que eu mandar, entendeu?".

Sódó concordou com a cabeça. O que mais poderia dizer? Ele era só um maluco que precisava de acompanhamento clínico, e aquele doutor parecia mesmo ter a capacidade de curá-lo, embora ele mesmo não acreditasse que, um dia, conseguiria se livrar de todo aquele desgosto de viver em um mundo tão grande e diversificado quanto aquele. Entretanto, ficar naquela sala, em silêncio e tranquilidade absolutos era uma ótima ideia! Aliás, era a única opção que tinha, e era a primeira vez em que a única opção que tinha era a mais adequada para o seu jeito de ser. Ele aprovou e sorriu brevemente, enquanto o Psicólouco o encarava, abismado com seus trejeitos e dós e anotava suas maluquices nas folhas de sua prancheta médica.

Alguns dias se passaram e Sódó se sentia bem e protegido dentro da sala na qual fora confinado. Os armários, como prometido, tinham horário para entregar a ele o almoço, que era simplesmente constituído de um prato de macarrão instantâneo, que não tinha gosto de nada, mas possuía uma textura simplória, que agradava o paladar do paciente. Mesmo tendo a opção de acrescentar um sachê de tempero, que era entregue junto com o prato, o maluco preferia não incrementar demais o alimento, e o comia do jeito que estava: sem gosto e sem graça, mas perfeito para ele.

Sódó fazia o possível para não ter que sair de sua cela, mas, vez ou outra, ele era levado ao sanitário e ao lavatório. Esses lugares eram imundos, feitos de azulejos encardidos, onde nem os armários se atreviam a entrar. E o pior de tudo é que Sódó não podia entrar com o violão naquelas áreas, o que tornava a experiência ainda mais torturante.

O paciente não tinha noção de hora, dia ou mês enquanto estava internado naquele consultório. Ninguém do mundo lá fora sentia sua falta e ele, tampouco, sentia a falta de alguém do mundo lá fora. Estava tão acostumado a se ausentar completamente que às vezes se questionava como seria sua vida se ele não vivesse daquele modo. Com certeza seria muito mais desafiadora e, por hora, era melhor que tudo seguisse do jeito que seguia. Ele havia, inclusive, composto uma música durante seu confinamento, e a tocava o dia todo, para abafar sons inconvenientes que escutava às vezes de sua sala, como o telefone de Arlete ou o barulho do Psicólouco apertando o botão de sua caneta azul diversas vezes.

O louco dormiano chão gelado todas as noites, abraçando seu violão. Às vezes ele nem dormia,e ficava a noite inteira aproveitando o silêncio que aquele momentoproporcionava. Tudo era bem mais tranquilo à noite, ele pensava, e era ótimopoder ficar pelo menos algumas horas sem tocar seu violão. Ele o auxiliavadurante o dia, nos momentos em que sons externos o desagradavam, como murmúriosde pessoas a rua, a passagem de um barulhento caminhão ou um gato que caíra dotelhado depois de arranhar um eletricista impaciente. Mas, à noite, oinstrumento podia repousar.

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