Uma dor latejante me faz gemer alto. Em seguida, abri os olhos com dificuldade por causa da luz que machucava minha retina.
— Helena, finalmente! — Keanu apareceu na minha frente, mas vi apenas o seu vislumbre, logo após umas piscadelas, consegui enxergá-lo direito. Por trás dele vi um teto branco, sentei-me imediatamente, ignorando as dores que percorriam todo o meu corpo.
— Onde estou? Onde estão meus pais? — Perguntei. E foi aí que a realidade me deu um tapa na cara, lembrei de todo o ocorrido que preferia ter esquecido para sempre e comecei a chorar.
— Eles te amavam muito... Não se preocupe eu vou cuidar de você. — Keanu sentou ao meu lado e me abraçou forte, acabei temendo que ele partisse meus ossos ao meio.
Dez minutos se passaram e eu finalmente consegui cessar o choro. Meus pais não iriam querer me ver assim. A porta abriu-se e um homem de branco entrou, o médico, suponho.
— Senhorita Jones, está se sentindo bem... — Ele me olhou dos pés a cabeça, antes de continuar. — Fisicamente. — Percorri meu corpo, assim como ele, e me deparei com uns arranhões e uma mão enfaixada. — Um caco de vidro entrou. O corte foi profundo, por isso tivemos que dar uns pontos. Fora isso, você está perfeitamente bem e já pode receber alta, você tem muita sorte. — Sorte? Tive vontade de indagar, mas me contive. — Com licença.
— Obrigada, doutor. — Keanu fez uma pequena reverência com a cabeça e o médico saiu, nos deixando a sós.
Coloquei meus pés no chão frio e passei os olhos com cuidado pelo sofá a procura da minha mala.
— Aqui — Keanu pegou a mesma que estava embaixo da cama e a colocou em cima da maca. Tirei de dentro o necessário. Fiz menção de tirar o vestido horrível do hospital, mas lembrei que Keanu se encontrava atrás de mim. — Desculpe, vou estar lá fora se precisar. — Disse ele.
Tirei lentamente o vestido, por causa das dores no corpo e pus calmamente a outra. Sentei na cama e deixei minha postura relaxar. O que será de mim agora? Nunca morei sozinha. Nunca fui independente. Não tenho parentes vivos, exceto uma tia que só ouvi falar que tenho.
— Helena? Posso entrar? — A voz de Keanu atravessou a porta após um longo tempo.
— Pode — Levantei-me, peguei a mala com dificuldade e dei o meu melhor sorriso.
— Não precisa fingir que está bem. Me dê a mala. — Keanu retrucou. Não sabia que minha atuação era tão ruim assim. — Vamos para a minha casa. Você tem que descansar, pois amanhã teremos uma reunião com o advogado da família. Como você já é maior de idade, não precisamos ir a uma audiência no tribunal.
— Tá bom — Eu não dei a mínima para o que ele falava, pois estava imersa em meus pensamentos.
Atravessei a porta branca do hospital e me deparei com um corredor vazio. Só tinha estado naquele local uma vez, quando eu tinha 10 anos e tentava pegar um livro de Keanu que estava numa prateleira alta. Me recordei que subi numa cadeira e ela virou, fazendo eu me apoiar no braço esquerdo e quebrá-lo.
Fui em direção ao estacionamento com Keanu um pouco atrás de mim, a chuva caía forte, respirei fundo o cheiro de terra molhada que emanava de um jardim que não vi. Enxerguei o Audi de Keanu ao longe. Ele gentilmente abriu um guarda-chuva e me conduziu ao carro em silêncio. Entrei no mesmo sendo seguida por ele e a partida foi dada, os carros passavam rápido e a chuva caía forte, como sempre.
— Quanto tempo se passou... desde — Engoli em seco. — O acidente? — Keanu parou por causa do semáforo vermelho e puxou seu maço de cigarros favoritos, a Insígnia.
— Três dias. — Ele disse baixo sem me olhar nos olhos. Três dias. Fiquei em coma três dias. — A Rosa está louca pra te ver. — Keanu tentou me distrair. Cada palavra sendo acompanhada da fumaça do cigarro tragado. Abri um pouco a janela em busca de ar fresco.
— Estou com saudades dela. — Dou um sorriso fraco. Rosa é a funcionária doméstica de Keanu, a conhecia desde criança, uma senhora bastante simpática e carinhosa.
Não demorou muito até chegarmos na casa de Keanu, o grande portão de ferro logo foi aberto quando ele digitou sua senha de 8 dígitos. Seu enorme jardim de tulipas fazia um lindo contraste de cores. Desde criança, sempre gostei de tulipas e isso o encorajou a fazer esse labirinto de flores com um parquinho particular no centro. Nós sempre brincávamos de caça ao tesouro, sorri com a lembrança.
— Está sorrindo de quê? — Keanu perguntou curioso.
— Lembra que brincávamos de caça ao tesouro? — Fitei sua tatuagem de flor na lateral direita do pescoço.
— Como poderia esquecer? Não podia deixar você no labirinto sozinha que você chorava até alguém te achar. — Keanu sorri.
A medida que nos aproximávamos da sua enorme casa, lembranças invadiam meus pensamentos e me faziam sorrir. Já em frente à sua casa, podia-se ver sem esforços a garagem cheia de carros e motos antigas ao lado. Desci do carro e senti a chuva fria de dezembro cair no meu rosto, assim que adentrei o local, uma brisa quente me envolveu como uma mãe envolve a filha num caloroso abraço. Engoli em seco com o pensamento.
— A casa não mudou nada. — Sorri para ele quando entrou em casa com minha mala.
— Helena! Minha querida! — Rosa pulou nos meus braços e me abraçou forte. — Que bom que está bem! Sr. Reeves ligou para me contar do ocorrido, deve ter sido uma experiência péssima.
— Não quero falar sobre isso, Rosa. — Sorri calorosamente, louca para ela mudar de assunto.
— Venha até a sala de jantar. Preparei uma comida deliciosa para vocês!
Segui rosa até a sala de jantar enquanto observava a decoração natalina de Keanu. Ele nunca deixava mais ninguém decorar sua casa, apenas ele podia, com exceção da árvore que sempre montávamos juntos. A mesa estava posta com pratos variados, incluindo o meu favorito, costela grelhada. Minha barriga, nada discreta, roncou diante tanta fartura. Keanu e Rosa logo caíram na gargalhada. Era fácil fingir que estava tudo bem, o difícil era se convencer disso quando a solidão te envolvia.
O jantar estava uma delícia. Rosa tentou me animar, mas estava claro em seus olhos que ela estava triste. Agora estávamos na sala de estar conversando sobre filmes, olhei para o relógio e o mesmo indicava 21h. O expediente de Rosa acabava às 18h, com certeza ela ficara por minha causa, pois faltam apenas 4 dias para o Natal e ela costuma tirar folga até dia 5 de janeiro. Pelo menos, minha mãe me passara dotes culinários, e além do mais, Keanu é um ótimo cozinheiro. Não sabia até que dia ficaria com ele, nem como seria minha vida em diante.
— Helena, Keanu. Foi um prazer, mas não posso deixar meus filhos sozinhos até tarde em casa, vocês sabem que o mais velho tem apenas 15 anos e o pai foi um covarde em abandoná-los. — Rosa expressou sua indignação.
— Tá bom, Rosa. — Levantei-me do sofá e sussurrei um obrigada enquanto a abraçava.
— Tchau, minha menina. Se cuida.
— Gabriel a levará para casa. — Keanu disse referindo-se ao motorista. A observei ir em direção a porta e dei um breve aceno. Ficamos a observando entrar no carro e dar um breve aceno. — Já vou deitar, Helena. Você sabe onde é seu quarto. — Keanu, disse. Continuei parada olhando a noite fria enquanto escutava os sons de seus passos batendo freneticamente no chão de vidro das escadas.
A nostalgia me atingiu como um soco. Subi as escadas vagarosamente. Olhei para a parede do corredor e lá vi muitas fotos da minha família, todos sempre felizes. Observei fixamente uma foto que era a minha favorita, tiramos no natal passado, estávamos nos abraçando, um círculo feito de quatro pessoas em frente a lareira, ainda podia escutar nossas risadas se misturando. Tirei o quadro da parede e fui em direção ao meu quarto. Abri a janela e olhei para baixo abraçando a foto. Eu devia pular. A queda ia ser grande, então morreria na mesma hora. A chuva caía em mim, o frio fazia meus pelos se arrepiarem e a lua cheia iluminava os pingos da chuva e por fim, eu. Eles iriam querer isso? Que você tirasse a própria vida? Eles ficariam decepcionados com você. Mas eu não posso viver sem eles. Mas você deve, é seu dever viver, acha que eles queriam ter morrido? Você tem a chance de viver, não pode desperdiça-la assim!
A minha mente estava a mil, meu rosto estava dormente. Queria chorar, mas não conseguia, acho que não tinha mais lágrimas para derramar, então apenas sentei na cadeira em frente a janela e fechei os olhos em silêncio.