Ruídos de Saturno

By souhamucek

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O silêncio é o mais perturbador dos ruídos. Para um portador do espectro autista, esses sons podem ser ensurd... More

Dream Cast
Em Breve!
Prólogo
01. Avanço
02. Estratégia
03. Iris
04. Cores
05. Timbres
06. Atmosfera
07. Espaço entre nós
08. Buraco negro
09. Quebrado
11. Estranho bom
12. Amor
13. Tristes relatos
14. Aquarela
15. Fragmentado
16. Explosão
17. Retorno
18. Poeira Galática
Epílogo

10. Traços em branco

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By souhamucek


Sob a monotonia dos meus dias, vi os minutos incalculáveis passarem através das lentes da luneta. Vigiei a lua desde a manhã até a negritude invadir os céus. A escuridão se fez presente e combinou com meu vazio, preenchendo-me, pouco a pouco, como a manta inteira a crosta; de maneira que eu fosse o núcleo protegido.

No instante que contar as estrelas me cansou, vim para a cama. O lugar exato onde estou neste momento. Embaixo das cobertas macias, encarando a parede tatuada de pôsteres com partes da galáxia. O durex de um deles, inclusive, está a descolar, o que deixa uma das pontas soltas. Divirto-me em balançá-la com o indicador.

Contudo, o giro da maçaneta interrompe meu movimento outrora contínuo. Recolho a mão para baixo do edredom e fecho os olhos, fingindo não estar mais acordado.

O som da sandália de minha mãe contra o chão é reconhecível. Misturando-se no ruído, posso identificar alguns múrmuros por conta da bagunça. Ao julgar pelo barulho, ela arremessa a camisa que usei durante a manhã na mesa do computador. Escuto, a seguir, o tintilar de uns papéis.

— O que é isso? — sussurra consigo mesma, mas posso ouvi-la.

Curioso, abro um dos olhos e espio-a cautelosamente.

— Somos nós sob as estrelas... — analisa. — O que é essa bola atrás?

Mamãe gira em torno de si, a observar as paredes. Posso vê-la esboçar um sorriso, no ponto em que associa meu círculo torto à Vênus. Rapidamente, passa a folha para trás, avistando outro desenho. Ela varre os olhos pelos traços, enquanto solta outra risadinha.

Deduzo, devido à ordem em que os fiz, que a moça quem me deu à luz esteja a encarar minha viagem através do buraco negro. De fato, ficou confuso. Como representar algo desconhecido? São traços invisíveis. Uma nave rompida pela dúvida e um espaço vago, assim como a minha mente.

Outra vez, minha mãe muda de papel. De súbito, suas sobrancelhas se juntam; os olhos se espremem, arregalando-se em seguida. No susto, ela derruba tudo o que tem nas mãos. Uma delas cobre os lábios. Não sei se ela tenta inibir um possível grito ou está chocada com o garrancho. Para aumentar a minha dúvida, os olhos zangados marejam.

Agacha-se, a pegar os desenhos revirados e coloca-os na escrivaninha. Antes que eu possa prever, mamãe caminha em minha direção. Cerro os próprios olhos de imediato. Cuidadosamente, ela se senta na beirada da cama. O dorso de sua mão passeia pela minha bochecha. Ouço-a fungar. De repente, seus lábios me aquecem.

— A mamãe ama você.

Sua voz é tão baixa que pode, facilmente, ser confundida com um sibilo.

Outro beijo, desta vez na testa, faz-se presente, antes que ela se levante e deixe o cômodo. As regiões onde encostou há segundos estão umedecidas, o que me avisam que as lágrimas vistas presas em seus olhos transbordaram.

Às pressas, pulo para fora da cama e corro para ver o que a desesperou tanto. O desenho de cima é a minha representação em vênus, com um dos braços erguidos, afastado pela terra, marte e júpiter de saturno, onde, aprisionada pelos anéis, está Iris também com um dos braços estendidos.

Logo atrás deste, posso notar a marca úmida de dedos na folha em que retrata um menino sentado nos anéis de saturno, assistindo, cabisbaixo, a terra se desfazer com dois adultos sobre ela. Eu, solitário, a ver os meus pais destruírem o que demorei a conquistar.

Os traços são imprecisos, é possível chamá-los de rabiscos. Porém, de forma crua e sem ambição, representam o que abriga meu interior. Extravasei minhas emoções com a arte, assim como aprendi com Dr.ª Patricia.

Sobre a ponta do lápis, depositei o desabafo calado pela proibição das consultas.

Já de manhã, acordo com a certeza de que minhas horas serão iguais a todas as outras. Volto à minha rotina sem grandes acontecimentos. Ainda de pijama, pouco satisfeito com o sono sem sonhos, preparo-me para levantar o corpo cansado, quando a porta é aberta após duas batidas.

— Filho, está ocupado? — nego, com desânimo.

Sua expressão se mostra mais receosa que o normal. Nos últimos tempos, o receio está incluso em todas as nossas conversas.

— Eu... — mamãe começa — pensei um pouco sobre o que tem acontecido nesses dias e conclui que minhas atitudes não estão lhe fazendo bem. — ela move o corpo para o lado, dando passagem para a entrada enquanto seu tom de voz baixo se desfaz no ar. Meu coração acelera conforme percebo o que está acontecendo. — Deixarei vocês conversarem.

Olhar nos olhos de Iris, depois de dias os fixando na imaginação insistentemente por medo de esquecê-los, é, sem dúvidas, uma das sensações mais fortes que já passaram por mim. De repente, estou com medo, ansioso e, principalmente, movido pelas saudades. A dúvida do quando e do porquê ela se tornou importante a este ponto se faz conveniente, porém, será esclarecida em outra ocasião.

Sem dar tempo para que um de nós dê a primeira palavra, ando em sua direção, puxando-a para um abraço, quando estamos próximos o suficiente. Há muito tempo, aprendi que braços são a melhor forma de demonstrar a saudade de alguém. Como as pessoas mais próximas a mim são meus pais e eu os vejo todos os dias, abraços saudosos não são rotineiros. Por outro lado, posso afirmar que este é um dos melhores que já dei.

Seu cheiro suave alcança as minhas narinas com facilidade, contaminando cada célula. Os braços dela ficam travados, pelo momento de susto provocado com o ato, porém não tardam a me rodear igualmente.

Estar nos braços de Iris me leva a pensar que, se este instante durasse uma eternidade, eu não me importaria; jamais quebraria esta ligação. Infelizmente, o receio que há pouco apareceu toma força, e ela se afasta aos poucos, a criar um espaço entre nossos corpos.

— Sinto muito dizer isso, mas não posso ficar por muito tempo. Tenho aula na faculdade em alguns minutos. — seu tom de voz em transmitir tal informação é desgostoso, o que comprova não ter vontade de ir.

— Fa-faculdade... é lá que você aprende os planetas, não é? — a de cabelos amarelados assente. Ansiosa, sua mão direta se embrenha na minha, guiando-me na direção da cama até que estejamos sentados.

— Shawn, sua mãe conversou um pouco comigo. Ela ligou para o consultório e explicou que você não reagiu muito bem ao cancelamento das consultas. — concordo com a cabeça, a demonstrar interesse no que diz. — Disse também que você tem se alimentado pouco, agido de forma mais calada que o normal... algumas vezes até agressiva. Quer falar sobre isso? — pergunta, inteiramente preocupada.

— Não consegui entender muito bem por que ela não quer mais me levar.

O apertar delicado de sua mão na minha me motiva a abrir o que tenho guardado para mim.

— No começo, tentava entendê-la o tempo todo, pensava tanto que minha cabeça doía e, ainda assim, não a compreendi. Não gosto de não entender as coisas, isso me deixou irritado. Não gosto de ficar irritado. — tento explicar da melhor forma que encontro. Meus olhos estão concentrados em nossos dedos, eles permanecem entrelaçados uns nos outros.

— Como você se sentiu em relação a não ir mais às consultas? — sinto que essa pergunta, em especial, é a que ela mais deseja saber a resposta. Seus olhos, agora um pouco mais estreitados, transmitem-me esta sensação.

— Não sei direito. Ir até lá todas as semanas se tornou um cos-costume. — confesso. — Ainda tenho vergonha de conversar com a sua mãe, mas gosto das coisas que fazíamos. Eu... gosto de ir a um lugar onde as pessoas não me olham estranho. É importante. Saber que não aconteceria mais isso foi como um buraco negro aqui. — levo nossas mãos unidas à altura de meu coração, ao despejar os sentimentos que andei guardando por todos esses dias tirou um peso dos meus ombros. Sinto-me livre de sensações ruins pela primeira vez.

— Também não gostei de saber que não nos veríamos mais. Na verdade, detestei. Nós gostamos muito de você, Shawn.

Meus dedos estão mais agitados que o de costume, talvez o perfume novo tão próximo a mim seja o responsável. O fato é que, sem conhecer uma solução melhor para travá-los, utilizo-os para apertar os dela, ao ficar os olhos na imensidão azulada.

— U-uma das coisas que mais pensei é que tudo isso aconteceu porque eu te dei aquele beijo. — chacoalho a cabeça, em negação. — De... desculpe-me.

— Shawn, você não deve se desculpar todas as vezes em que se lembrar disso. Já passou. — insiste.

— Por que minha mãe ficou tão brava? Você me disse que beijar não era ruim, que não machucava. Você disse.

— E não machuca. — sua voz muda por conta do sorriso que toma conta dos lábios. — Beijar é um dos melhores atos que existem, e, acredite, o seu beijo não me machucou nem por um segundo. Sua mãe deve ter os motivos dela para não gostar. Ela ficou assustada e quis protegê-lo, é o que mães fazem.

Por um lado, ela tem razão.

— Se um dia eu fizer outra vez, prometo que não conto a ninguém. — o espanto em seu rosto é evidente, ele se expressa em conjunto com o avermelhar das bochechas pálidas.

Quebrando nosso contato visual, Iris se volta para o relógio de pulso, a saltar da cama após verificar o horário.

— Eu tenho que ir, estou bastante atrasada.

Suas palavras me pegam de surpresa, e, então, novamente, sem que eu possa fazer nada para impedir, a de fios dourados some de vista.

Meu primeiro instinto é pensar em como não quero perdê-la mais uma vez. Não quero que vá embora, nem quero voltar a me sentir um incapaz. Contaminado pelo desespero, sigo-a pela passagem há pouco utilizada, descendo as escadas com certa rapidez.

Para minha surpresa, Iris está na sala de frente para minha mãe, ambas de pé. Aparentemente, partilham uma conversa tensa.

— Quero que saiba o óbvio: só lhe aceitei na minha casa pelo Shawn. O afastamento estava fazendo mal ao meu filho. A última coisa que desejo é vê-lo infeliz, mas não pense que me esqueci do que aconteceu... aquele tal beijo que deu nele. — Iris ouve tudo atentamente, sem ousar revidar nenhuma vez.

As palavras rudes da mãe se embrenham em minha mente. Como um fio completamente tomado por nós, embolo-me. A ponta de meus dedos tremula. Abro meus lábios, à espera, apenas, da coragem faltosa. Sem admitir que mais nenhuma asneira chegue aos ouvidos da moça dos olhos brilhantes, fecho os olhos e permito que o coração comande a minha boca, ao disparar:

— Fui eu quem a beijou, mamãe.

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