Asas de Vidro - Quimera - Liv...

Od IsieFernandes

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"Onde estará Vincent?" É o que Amélia pensa quando acorda e percebe que está sozinha, com um livro descansado... Více

Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9 (parte I)
Capítulo 9 (parte II)
Capítulo 10 (parte I)
Capítulo 10 (parte II)
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19

Capítulo 15

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Od IsieFernandes

Precisei ir ao Café para acertar alguns detalhes da tarde de autógrafos e Lúcia foi comigo. Ela não tocou mais no assunto "aquele carinha é seu irmão", porém notei um sorrisinho ardiloso ao canto dos seus lábios. Maldita Lúcia! Era óbvio que eu e Fabien não tínhamos nada a ver um com o outro. Eu era nativa, caiçara, praiana, enquanto ele era um francesinho construtor de iates, cujo pai tinha incríveis alhos azuis penetrantes. Aliás, o próprio Fabien tinha olhos lindíssimos. Já eu... eu tinha olhos castanhos, como a maioria da população brasileira.

Ainda assim, quando ligaram da gráfica e disseram que o office-boy estava a caminho para entregar o banner que encomendamos, tratei logo de incumbir Lúcia de recebê-lo e me apressei em ir à sala de Benjamin. Bati na porta rapidamente e girei a maçaneta. Para minha surpresa, ela não estava trancada.

— Olá, meninos. — Coloquei apenas a ponta da cabeça para dentro.

— Entre, gata — Fabien disse e sorriu de modo cordial, porém Benjamin arregalou os olhos, como se eu os tivesse flagrado.

— Atrapalho? — Entrei, mas me mantive parada ao lado da porta, que ainda estava entreaberta.

— Não... — Ben respondeu, seus olhos ainda arregalados.

— Claro que não! — Fabien deu um salto do divã e veio até mim, tocou em minha cintura e fez um sinal com a cabeça, do tipo, "vai lá". Depois me empurrou à frente, pelos ombros, e fechou a porta. Eu avancei em direção a Benjamin e fiquei na ponta dos pés para beijar seus lábios.

— Que bom que você está aqui — ele disse, respirou fundo e, enfim, sorriu.

— Também achei ótimo você ter vindo, Amel. — Fabien caminhou até perto de nós e colocou uma das mãos em meu ombro e a outra no ombro de Benjamin. — Conta pra ela, Ben...

Olhei para Benjamin. Ele havia fitado os olhos em Fabien. Em sua face, uma estranha expressão de negativa.

— Conta! — Fabien insistiu.

— Agora não...

— Oi? — Balancei as mãos diante deles. — Eu estou bem aqui, entre vocês dois. O que Benjamin deve me contar, Fabien? E por que agora não, Ben?

Os dois se entreolharam. Enquanto Benjamin parecia engolir em seco, Fabien ria.

— Não é nada de mais — Ben respondeu.

Não acreditei. Se fosse algo simples, para que todo aquele suspense?

— É o seguinte, Amel...

— Despedida de solteiro — Fabien interrompeu a fala de Ben. — É isso.

Olhei para Benjamin. Estranhamente ele parecia tão chocado com a resposta de Fabien quanto eu.

— Eu propus ao Ben que te incentivasse a arrastar Julienne para Salvador no próximo fim de semana, pra que vocês duas pudessem fazer coisinhas de mulher lá no flat, enquanto eu, ele e Rafael fazemos uma festa. — Voltou a rir e começou a fazer a mesma dança maluca que fizera no meio do Fly do iate Ariadne no dia em que nos conhecemos. — Mas não se preocupe, ele só vai tomar algumas cervejas, um pouco de vinho, talvez algumas doses de caipirinha... Não vamos deixar que ele toque nas meninas.

— Honestamente, não acho que meu namorado vai querer participar de uma festa idiota dessas, ainda mais se tiver mulheres seminuas e bebidas. Vai, Ben?

Benjamin abriu um sorriso amarelo. Certo, ele queria.

— Ok. Então teremos uma festa das cuecas na Ilha e outra das calcinhas em Salvador, também com cuecas pelo meio, é claro. — Olhei para Benjamin e sorri com apenas uma das sobrancelhas erguida. — Quer saber o que eu acho? Que esse momento memorável merece um registro.

Peguei meu celular e o entreguei a Benjamin.

— Tire uma foto nossa, Ben. — Posicionei-me ao lado de Fabien. — Venha também, amor. Vamos tirar uma foto de nós três.

Mas o que eu queria mesmo era ter uma imagem minha ao lado de Fabien, para acabar de uma vez por todas com a ideia de que nós dois parecíamos irmãos. Quer saber se isso aconteceu depois que eu analisei muito bem aquela fotografia?

Não.

***

Erick Linhares era mesmo um idiota, mas não mentiu ao dizer que a ampola continha uma droga de efeito inverso. Fiquei paralisado quando Fabien sugeriu que eu contasse a verdade sobre minha natureza a Amélia. Para ser honesto, acho até que não conseguiria inventar uma desculpa aceitável, caso Fabien não tivesse me ajudado.

Então era isso que aquele imbecil pretendia: me desestabilizar diante de Amel e fazer com que eu mesmo destruísse o nosso relacionamento; como se os obstáculos que eu já tinha não me fossem suficientes. Ao menos eu me senti melhor em relação ao que houve na noite anterior. Amélia estava estranha, mas agora eu tinha certeza de que não escorregaria. No mínimo, o efeito da droga de Erick me garantiria tempo para pensar numa forma de guiá-la à verdade sobre mim.

Passamos o resto da tarde trabalhando juntos, o que Amel deve ter considerado como um bônus, pois não precisaria mais passar tanto tempo sendo perseguida por Lúcia. Bela distração! Sei que não fui honesto encurralando-a daquele jeito, mas tive que fazer o necessário para mantê-la afastada até meus nervos se acalmarem.

Após o expediente, seguimos para Cacha Pregos, embora Elaine tivesse nos oferecido um dos quartos de hóspedes da mansão. Era óbvio que Amélia não se sentiria à vontade lá, e que eu preferiria ficar sem meus eletroeletrônicos a ter que dormir debaixo das asas da minha mãe, já que Fabien fora a Salvador e eu não confiava em mais ninguém para refazer a instalação elétrica do meu chalé.

— Tem certeza de que está mesmo tudo bem? — perguntei pela milésima vez, antes de dar a partida no carro e sair a caminho de Catu.

— Sim. — Alisou meu braço com a ponta do dedo indicador, fazendo com que meus pelos se eriçassem. — Vai ser bom ficarmos separados por uma noite, afinal de contas, em poucos dias, dormiremos juntos a semana inteira. Eu vou bagunçar o flat todo e você vai ficar louco para me devolver aos meus pais.

— Eu jamais faria isso, mesmo se você queimasse todos os meus livros. — Liguei o carro.

— Eu te amo, Ben. — Inclinou-se para beijar meus lábios através da janela do motorista, o que despertou a atenção de duas nativas adolescentes, que conversavam sentadas no passeio, do outro lado da rua.

— Eu também te amo, Amel.

***

Jantei em companhia dos meus pais, mas não contei que havia decidido ir morar com Benjamin no flat — nós planejamos fazer isso juntos, durante o almoço de sexta-feira, horas antes de eu partir para Salvador com Enne. Depois passei um tempo na sala, acarinhando o pelo gostoso e macio de Algodão enquanto fingia assistir à TV e contava à minha mãe sobre a experiência que vivi com Elaine em Salvador. Quando minha mãe pareceu satisfeita, avisei que pretendia sair para caminhar. Agora que tudo entre mim e Benjamin estava bem, pouco me importava o que os moradores da vila pensariam ou diriam sobre minha queda da ponte-cais.

Segurei minhas sandálias e caminhei distraidamente pela beira da água por cerca de trezentos metros em direção a Berlinque, então cortei a areia cheia de conchinhas quebradas e cruzei o quebra-mar, a fim de retornar pelo calçadão. Havia pouco movimento na praça principal. Mais adiante, passei pela árvore atrás da qual me escondi quando vi Igor e Gina pela última vez, na noite anterior ao meu reencontro com Vincent. A lembrança me fez arrepiar... Eu o encontrara parado, próximo ao cajueiro, no quintal da minha casa. Ele estava diferente, bem-vestido e comportado. Conversamos por cerca de 5 minutos, ele foi embora e não nos vimos mais. Não soube mais nada sobre ele ou Pauline. Também não tive notícias de Igor, muito menos vi Repolho, o cachorro malcheiroso. Será que Repolho havia morrido?

Um suspiro de dó e, voilà, lá estava ele, largado no chão defeituoso, à frente de um dos quiosques de bebida.

— Olá, Repolho — eu disse, aproximando-me, contudo, parecendo estar de complô com meus vizinhos, ele se levantou e saiu.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Será possível que até mesmo Repolho continuaria me desprezando? Percebi um burburinho. Eram as pessoas em redor do quiosque. Senti vontade de xingar uma por uma, mas me controlei. A noite estava abafada, o ar soprava quente e inquietante, como em véspera de tempestade; fingi que queria apenas um coco verde.

O atendente fora meu colega de escola, e, além disso, ele era primo de Igor. Cheguei a pensar que ele falaria algo que não estivesse relacionado ao atendimento, mas não. O imbecil apenas me passou o troco, entregou o coco já pronto para ser consumido e apontou os canudos. Fiz de conta que não me importei, embora agora eu me importasse, e segui até uma das mesas de jogos, onde me sentei para tomar a água do coco.

— Oi, Amélia.

Olhei para trás e estremeci. Era CDJ, o cara mais arruaceiro de Cacha Pregos, escorado no tronco do pé de sapoti, o mesmo que chamara Benjamin de covarde por não ter revidado o soco que Igor lhe dera quando cruzávamos a ponte-cais, no Natal.

— Você não está com medo de mim... — Inclinou a cabeça para o lado, arregalando um pouco os olhos, mas de modo interrogativo. — Está?

— Não. — Porém percebi que minha face estava rígida. — Só estou curiosa. — Virei-me para frente. Não sabia dizer para qual de nós dois aquela conversa seria mais prejudicial. — Não imagino por que você esteja falando comigo. — Tornei a fitá-lo. CDJ não era feio, mas também não era bonito. Era o tipo desengonçado, meio alto e fora de forma, com cabelos um tanto crescidos, encaracolados e aloirados de nascença. — Ninguém por aqui gosta de mim.

— Nem de mim. — Deu de ombros.

— Mas você se juntou a Igor no dia da confusão entre ele e meu namorado.

— Eu busco aceitação. — Pegou um cigarro e o pôs na boca, contudo, antes de acendê-lo, estendeu a mão e sacudiu o maço oferecendo outro a mim.

— Não, obrigada. — Devo ter feito cara de nojo. — Eu não fumo.

— Hum... — murmurou ainda com o cigarro entre os lábios, depois o pegou e guardou de volta na caixa. — Então, agora não.

Não sabia que brutamontes eram capazes de fazer gentilezas.

— Você liga pra o que esses idiotas falam? — perguntou, me encarando com seus olhos amarelados.

— Se eu ligasse, não estaria conversando com você. — Logo percebi que havia respondido de modo grosseiro.

Ele riu.

— Eu também não. Por isso estou aqui. — Saiu de onde estava e se sentou no banco à minha frente. — Calor miserável, Amélia. Aposto que amanhã vai chover.

— Vai sim, CDJ, com certeza.

Ele riu baixinho, olhou para os dois lados e, apoiando os braços sobre a mesa, aproximou-se de mim.

— Quer dar uma volta de moto comigo? Eu sei que você se amarra em motos, e agora o seu amigo, quero dizer, o seu antigo melhor amigo, não te dá mais bola.

Apertei os olhos e o fitei com firmeza. Aonde será que CDJ pretendia chegar?

— Eu vi a forma como o pessoal olhava pra você e cochichava... Tanto quando você passou pela praia quanto quando você foi até o quiosque.

Eu não disse nada, estava entalada até mesmo para tomar a água do coco.

— É o seguinte, Amélia, você é bonita e inteligente, não tem que se importar com esse bando de idiotas.

— Eu não me importo.

— Ah... você se importa, sim. — Meneou a cabeça em afirmação, enquanto olhava para mim de modo astuto, como se soubesse exatamente o que eu estava sentindo.

— Não, eu não me importo. Pelo menos, não agora.

— Verdade? — Ergueu apenas uma das sobrancelhas, cheio de perspicácia. — Então por que você não se levanta desse banco e manda todo mundo que está nos observando, rindo e fofocando, ali... — Apontou na direção do quebra-mar. — ... ir tomar no... ir pro inferno?

Olhei para o outro lado da rua. Num dos bancos de concreto, entre a pista e o quebra-mar, havia cerca de seis adolescentes olhando para nós, apontando e rindo.

— Não sou igual a eles, mas... — Também sorri. — Do meu jeito, eu já estou mandando.

***

Cheguei a Catu e fui direto ao chalé. Os pontos de iluminação do terreno, desde a entrada do sítio, estavam infestados de formigas voadoras. O tempo estava abafado e, do outro lado do mar, acima da ilhota à frente, relampejava por entre as nuvens densas, sinal claro de que teríamos uma noite de muita chuva.

Passei de largo da casa de Elaine, destranquei a porta do chalé, peguei minha mochila e coloquei o essencial para passar a noite na casa de Amélia e seguir no outro dia para a livraria. Então enviei uma mensagem para Fabien informando que passaria a noite fora e retornei a Cacha Pregos.

Chegando próximo à casa de Amélia, percebi certa movimentação estranha. Ela estava conversando calorosamente com os pais sobre um cara chamado CDJ. Aquela sigla não me era estranha, porém, em vez de me apressar, parei num lugar mais tranquilo e esperei até que os ânimos de todos se abrandassem. Quando enfim o assunto central da discussão se voltou para nós dois, digitei uma mensagem para ela em meu celular e avancei.

***

CDJ tinha razão, eu ainda me incomodava com a forma idiota que os meus vizinhos me tratavam, mas não queria demonstrar fraqueza, por isso, mesmo me roendo de vontade de erguer o dedo médio num gesto feio direcionado àqueles 6 malditos adolescente, continuei fingindo interesse na conversa dele por mais uns 3 minutos, disse que estava cansada e fui embora.

O ar estava quente e já dava para ver os relâmpagos caindo sobre o mar, quilômetros adiante. Não havia mais dúvida, a madrugada seria de muita chuva. Segui meu caminho sob os olhares tortos de vários imbecis e comecei a cogitar se estava agindo corretamente ao não mandá-los ir para aquele lugar. Chutei uma pedrinha que se soltara do passeio e me distraí com o caminho que ela fez. Quando ergui os olhos, dei de cara com uma pessoa que eu não queria ver, pelo menos não daquele jeito.

Dona Arlete, minha querida mãezinha, estava parada na frente da nossa casa, com os braços cruzados e um olhar de fera.

— Por favor, mãe, não... — falei baixinho para que os vizinhos bisbilhoteiros, inclusive as duas idiotas que me espionavam enquanto eu me despedia de Benjamin mais cedo, não percebessem que nós estávamos nos desentendendo.

— É melhor você entrar. — Abriu espaço para que eu cruzasse o portão.

Segui direto à cozinha, usando o argumento de que precisava tomar um pouco de água para fugir, mas dei de cara com o meu pai sentado à mesa, com seus óculos de grau quase na ponta do nariz, digitando apressado em seu notebook. Ele olhou para mim por cima dos óculos, como fazia apenas quando queria me reclamar.

— Ah, não...

— Ah, sim! — disse minha mãe, entrando como um foguete na cozinha e vindo em minha direção. — Que história é essa, dona Amélia, de que você estava sentada à mesa da pracinha de jogos com ninguém menos que CDJ?

— É sério, mãe? Eu não acredito nisso. — Parei atrás de uma das cadeiras, ao lado de onde meu pai estava sentado. — Quem foi o idiota que já veio fofocar sobre mim?

— Não importa quem me contou, Amélia. — Ela deu a volta na mesa e parou do outro lado, à minha frente. — Eu só quero saber se isso é verdade ou não.

Olhei para meu pai, ele também olhou para mim. Ficamos em silêncio, os três.

— Responda — minha mãe insistiu. Eu apenas arregalei os olhos para que ela se lembrasse de que certas coisas não dizíamos na frente do meu pai.

— Responda, Amélia. — Ele tirou os óculos, os quais descansou sobre o teclado do computador, e me fitou, seu braço direito apoiado sobre a mesa e a mão esquerda segurando o próprio queixo.

Que droga! Eu teria mesmo que me explicar.

— É verdade, está bem? — respondi. Minha mãe bufou, olhando para meu pai e apontando para mim, como se quisesse dizer "Eu não te disse, Manoel?", enquanto ele apenas me fitou e franziu a testa. — Eu fui dar uma volta pela praia, depois parei para brincar com Repolho, sim, Repolho, o cachorro malcheiroso, mas até mesmo ele me desprezou. Havia algumas pessoas me observando. Eu quis me fazer de durona, fui até o quiosque e comprei um coco gelado, mas a droga do Rodolfo, o primo de Igor, nem me cumprimentou. Eu fiquei com tanta raiva, mas tanta raiva...

— Que se aproximou do primeiro marginal que encontrou pela frente e ficou batendo papo com ele, como se fosse uma safada.

Perdi a voz por um instante e acho que meu pai também se incomodou com a suposição da minha mãe, pois olhou para ela com um intenso ar de reprovação.

— É claro que não — voltei a falar. — Eu fui até a pracinha de jogos aqui ao lado, escolhi uma das mesas mais isoladas e me sentei. Então CDJ apareceu não sei de onde e começou a conversar comigo.

— E é óbvio que você gostou...

— Não gostei, mas também não detestei. Se a senhora quer saber, ele não foi nem um pouco desagradável. Demonstrou respeito por mim, tentou polir as palavras...

— E você se encantou por um bandido.

— Não me encantei por ele, mãe. — E por que eu me encantaria por CDJ ou por qualquer outro cara, se eu tinha Benjamin? — Mas também não acho que ele seja o bandido que vocês imaginam. Como eu disse, CDJ foi polido e me tratou muito bem.

— Acontece que não importa a forma como ele te tratou, Amélia, importa a forma como ele age no geral — meu pai concluiu e o silêncio na cozinha imperou.

Fiquei olhando para os dois. Minha mãe com um sorriso de vitória ao canto da boca e meu pai sério, como todo pai tende a ser nos momentos de exortação.

— Eu não consigo acreditar que vocês sejam assim. — Os dois se entreolharam, depois meu pai colocou os óculos de volta e fez menção de tornar a mexer no computador. —Será que vocês se dão conta de que estão fazendo com Carlos Daniel Jonas a mesma coisa que todos em Cacha Pregos fazem comigo?

— Carlos Daniel quem? — dona Arlete perguntou, cheia de acidez.

— CDJ é a sigla de Carlos Daniel Jonas, o filho do seu Pedro com a dona Janete.

— Eu nem sabia que aquele estrupício tinha nome...

— Com certeza tem, minha mãe. E eu não duvido nada que, nesse mesmo instante, estejam conversando num dos lares vizinhos da seguinte forma: "Você soube que Amélia estava traindo o namorado gringo com o malandro do CDJ?", "Não soube, não. Mas quem é Amélia mesmo?", "Amélia, a filha adotiva de Manoel e Arlete", "Ah, sim... Eu nem sabia que aquela vaca tinha nome"! — eu disse, irritada, e fiz menção de sair da cozinha, porém meu pai me segurou pelo punho.

— Desde quando você fala conosco dessa forma? — Ele fitou em meus olhos. Se fosse em outros tempos, eu sentiria medo e vontade de chorar. Agora não.

— Desculpem. — Retornei à posição anterior, ao lado do meu pai. — Eu só queria que vocês entendessem como eu me sinto em relação ao que vem acontecendo comigo desde que...

— Desde que você escolheu ficar com Benjamin — meu pai completou, o que foi muito estranho, visto que ele nunca conversara sobre o assunto comigo.

— Escute, querida, nós nos preocupamos com você. — Minha mãe arrastou uma cadeira como se fosse se sentar, contudo não o fez. — Eu sei o quanto você tem sofrido com tudo isso, e não quero que o clima piore. Ainda mais agora que as coisas entre você e Benjamin...

— As coisas entre mim e Benjamin o quê? — Não era possível que ele tivesse dado com a língua nos dentes antes da hora. Aquela sintonia entre ele e minha mãe realmente me tirava do sério.

— Bem... — Abriu um sorrisinho estranho de satisfação. — Pelo que eu soube, vocês dois...

— Eu não acredito que Benjamin te contou!

— Que Benjamin me contou o quê? — Minha mãe olhou para mim com ar de intensa curiosidade.

— Responda, Amélia. — Meu pai a acompanhou.

Abri meus lábios para responder, mas ouvi as primeiras gotas de chuva caírem, batendo no telhado e nas janelas, e me distraí.

— Estamos esperando a sua resposta — ele insistiu.

— Que eu aceitei ir morar com ele no flat — pronto, vomitei. Meus pais ficaram meio assombrados.

— E você nos conta isso assim? — Meu pai fixou os olhos nos meus. Pensei ter enxergado neles certa decepção.

— Nós pretendíamos contar juntos, num almoço na sexta-feira, só que... — O celular tocou em meu bolso, e era o toque personalizado para as mensagens de texto de Benjamin. — É ele.

Peguei o celular. A mensagem dizia: "Abra a porta para mim".

E isso significava que a minha mãe já devia ter fofocado com ele sobre minha conversa com CDJ também.

Droga, droga, droga!

— Eu não acredito nisso, mãe.

***

Chovia forte quando estacionei o carro na frente da casa de Amélia. Não demorou nada, ela atravessou o limiar da porta de entrada e surgiu na parte coberta da varanda. Como se não se importasse em se molhar, Amel apenas caminhou até o portão, que estranhamente estava trancado, para logo abri-lo e retornar à parte protegida da varanda.

Desci do carro com minha mochila pendurada no ombro direito, bati a porta e corri em direção à casa. Mesmo em meio aos pingos grossos da chuva, eu conseguia ver Amélia de braços cruzados e com uma expressão nada animadora.

— Oi — arrisquei logo que a alcancei, passando a manga da camisa pelo rosto a fim de secá-lo.

— O que foi, Benjamin Brandão? — Olhou fundo em meus olhos, como se estivéssemos no meio de uma discussão calorosa. — Vai brigar comigo também?

— Não, por quê? Eu deveria?

Ela pousou a mão na testa, enquanto expirava num tom de alívio, arqueando os ombros para baixo.

— Desculpe... — Deu dois passos à frente e ficou na ponta dos pés para enlaçar o meu pescoço. Um beijo rápido e terno depois, ela se afastou para me fitar, agora, com ar de tranquilidade. — Meus pais estavam me enlouquecendo só porque eu conversei com um carinha de má fama aqui da vila, mas, como você sabe, eu também tenho má fama diante dos vizinhos, então...

— Tem certeza de que foi apenas isso? — Sondei seu olhar. Obviamente eu havia escutado toda a conversa que Amel tivera com os pais, entretanto, como sempre, deveria disfarçar. — Eu não preciso ficar preocupado, preciso?

— É claro que não. — Tornou a me beijar de forma carinhosa, mas não consegui correspondê-la à altura porque senti a presença de seu Manoel, que se aproximara para nos espreitar pela fresta da janela.

— Tudo bem se eu passar a noite aqui? — perguntei quando o beijo terminou.

— Se você sobreviver ao interrogatório...

— Ah, meu Deus. Por favor, não diga que você...

— Sim, contei. — Sorriu como quem tenta disfarçar, segurou a minha mão e me encaminhou à porta. — Preparado?

Eu nunca me sentia preparado para enfrentar a família dela, mas havia aprendido a me comportar diante deles e já não sofria tanto com as possíveis ameaças das mudanças bruscas dos meus ciclos. Entramos e, menos de 5 segundos depois, fui interpelado por seu Manoel que, vestido em roupas relativamente normais para ele, veio até mim e me deu dois tapinhas no ombro.

— Quer dizer que você roubou mesmo a minha filha de mim, hein, rapaz?

— Pai?! — Amel agarrou o meu braço, como se isso pudesse me proteger das investidas de seu Manoel.

— Como vai? — Soltei-me dela para cumprimentá-lo, não nos víamos desde a noite em que eu a resgatei do mar; ele correspondeu. — Na verdade, eu não a roubei do senhor, eu a conquistei. — Abri um raso sorriso e senti que Amel também sorria ao meu lado. Ele nos acompanhou, embora de leve e com uma pequena erguida na sobrancelha esquerda. — Eu amo a sua filha, seu Manoel, e vou fazê-la muito feliz.

— Não tenho dúvida disso — soou dona Arlete, saindo de um dos quartos da casa. Ela gostava de fazer aquilo, ficar escutando em oculto e se manifestar no momento oportuno. — Agora chega de amolação. — Revirou os olhos e deu com a cabeça em direção ao marido. — Eu vou preparar a mesa do jantar, Ben. É melhor você ir se secar e trocar de roupa, antes que pegue uma pneumonia.

— Concordo plenamente, mãe — Amel disse e foi logo me empurrando rumo ao seu quarto.


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