O olhar de Yonmirei através dos olhos de Prosper não sai de minha mente, nem mesmo quando Don e eu atravessamos as luzes para viajar até o palácio abandonado. O desespero naqueles olhos me atordoou e esse sentimento ruim não passou até agora, por mais que eu repita mentalmente a mim mesma que vai ficar tudo bem.
Nossa irmã está viva. Nossa pequena, ingênua e poderosa Yonmirei não se foi como pensávamos. Depois que ela se sacrificou para dizimar uma legião de Sombrios que tentavam assassinar a família real durante a guerra, seu corpo foi completamente destruído. Don e eu ficamos completamente desolados, mas seguimos com nossa principal missão: proteger o futuro soberano de Centelha do Norte. Era nosso único e principal objetivo. O motivo pelo qual fomos criados. O motivo pelo qual ela foi criada.
Agora Yonmirei está, de alguma forma, selada dentro de Prosper.
- No que está pensando? - Don me pergunta, lançando-me aquele olhar de canto de olho que ele costuma dar quando não quer ir direto ao ponto.
Eu mal pisco e os portões do palácio, que um dia foi a construção mais gloriosa já feita na história, surgem diante de nós. Era aqui que a família mais nobre de Centelha do Norte vivia, a realeza que fazia parte do Conselho responsável por governar nossa nação. Só de olhar para esse lugar eu me sinto nostálgica, como se tivessem se passado cem anos e não dez. Don compartilha do mesmo sentimento.
- É como acordar de um sonho - ele diz mentalmente. Como somos gêmeos, a maioria de nossas conversas é por pensamentos.
- Por um momento pensei que este lugar estivesse destruído - digo.
A Grande Guerra entre Iluminados e Sombrios foi o evento mais cataclísmico que ocorreu na história de nossa existência e fez com que quase metade de nossa civilização fosse varrida da superfície de nossa terra. Cidades inteiras foram reduzidas ao pó e muito se perdeu de nossa flora e fauna. Apenas as construções protegidas por forças maiores permaneceram de pé. O palácio onde a realeza vivia parece ter sido uma delas.
- Precisamos encontrar os pergaminhos com a profecia - diz Don, incisivo e ansioso.
- Sim - concordo. - E depois encontraremos Belcifer.
Don me olha com dúvida.
- Belcifer? - ele pronuncia o nome do ancião em voz alta. - Acha que ele ainda está vivo?
Pestanejo.
Tem que estar. Ele costumava ser o homem mais sábio a serviço da nação. Não consigo nem sequer imaginar alguém como Belcifer morto. Parece um acontecimento banal e patético demais para alguém como ele.
- Vamos procurá-lo - respondo, também em voz alta. - Ele é nossa única chance de trazer Yon de volta.
Vejo o semblante de Don mudar quando menciono nossa irmã. Somos todos nascidos da mesma luz, no mesmo instante, mas sempre a tratamos como a mais nova de nós. Ela sempre foi querida. Sei exatamente o que meu irmão está sentindo agora.
Ele pigarreia.
- Pode encontrar os pergaminhos?
Respiro fundo, me preparando. E assinto. Eu me aproximo do muro de pedra e toco a superfície com as pontas dos dedos, fazendo uma varredura geral de cada centímetro do interior do palácio. Identifico cada parede, porta, cortina e objeto até encontrar, em um porão de pedra trancado, os pergaminhos que procuramos. Sinto a energia de todas essas coisas, como o que os humanos chamam de radar. Olho para Don e confirmo que encontrei.
É a vez dele de agir. Don atravessa os muros como o vento e mergulha por paredes, piso e escadas até chegar ao porão que lhe mostro em minha mente. Sinto cada movimento dele nas pontas de meus dedos, ainda em contato com o muro de pedra do palácio. Meu irmão é bastante prático e traz consigo todos os pergaminhos, sem parar para lê-los ou selecioná-los. Atravessando mais paredes, ele retorna ao lado de fora e logo está diante de mim. Retiro minha mão do muro. Tudo isso dura menos de cinco segundos.
- Eu trouxe todos - Don diz em voz alta, mostrando os rolos de papel de folha-d'água.
Ele me entrega alguns pergaminhos e eu começo a desenrolar o primeiro, sentindo minha temperatura corporal esquentar. Em minhas mãos estão segredos ocultos e protegidos por milênios. Iluminados e Cinzentos morreram defendendo esses documentos.
Vejo as primeiras palavras escritas no idioma antigo e uma gravura colorida no canto superior direito da página.
Simultaneamente, um forte e espantoso estrondo nos céus nos coloca em alerta. Olho para cima a tempo de ver a fumaça negra e espessa se espalhar. Algo assim só é causado por uma coisa.
- É uma Chama da Perdição! - exclama Don, tão surpreso quanto eu. - Não vejo uma dessa desde que...
Todos os músculos do meu corpo se tencionam. Onde há Chamas da Perdição, há Sombrios.
- Eles voltaram - murmuro, fitando o céu manchado pela fumaça negra.
Don se aproxima.
- Não é possível - ele sacode a cabeça, sacudindo os cabelos dourados. - A única maneira de retornarem é viajando pelas sombras, Beth. Não há mais portais de sombras em Nobre Vida.
- Como você explica isso? - aponto para o céu.
Don fita a fumaça e sua mandíbula se tenciona.
- Vamos até lá - ele determina. - Se suas suspeitas estiverem certas, eliminamos qualquer ameaçada rapidamente e retornamos para Prosper.
Faz muito tempo que não uso minha força verdadeira para combater Sombrios. Os que Don e eu encontramos na Terra foram eliminados com nossa energia limitada pela dimensão de lá, que não nos permite manifestar todo o nosso poder - para a própria segurança da humanidade. Aqui, somos plenos e completos outra vez.
Don agita a mão direita e abre um portal de luz. Nós atravessamos e antes mesmo de sair do outro lado, eu já sinto o calor da Chama da Perdição. É poderosa, o que quer dizer que foi evocada por um Sombrio poderoso. Alerto meu irmão mentalmente sobre isso e ele redobra seu uso de energia, preparando-se para entrar em ação assim que sairmos do outro lado do portal.
A primeira coisa que vemos é uma pequena cabana pegando fogo, rodeada por grama e arbustos também em chamas. O cheiro de morte da Chama da Perdição é quase insuportável e me faz cobrir o nariz. Don não se importa. Percorremos o local, procurando por algum sinal de vida ou algum sobrevivente, mas não há nada. Nem Sombrios, nem vítimas. Só fogo e cinzas.
- Estranho - Don se abaixa para tocar a grama chamuscada. - Sinto... sinto uma energia diferente aqui. Beth, venha sentir.
Aproximo-me dele e me abaixo para tocar a grama. As vibrações atingem meu corpo como um choque e, por um segundo, eu quase perco o fôlego. Sinto duas energias e ambas me deixam ainda mais espantada do que ver a Chama da Perdição explodir.
- Um ser humano esteve aqui - digo baixo e devagar, incrédula. Humanos não vêm aqui. Humanos não têm acesso nenhum a Centelha do Norte.
Don assente, encarando-me.
- Sim, foi o que senti.
- E há... há um Sombrio também.
Os olhos de meu irmão se arregalam.
- Um humano e um Sombrio? Tem certeza?
- Sim - minha voz treme e eu retiro minha mão da grama.
Um som estranho de água chama a nossa atenção e Don e eu caminhamos até nos depararmos com um pequeno rio, no qual uma garota e um garoto se debatem. Ele parece estar tentando acalmá-la enquanto a puxa para fora da água, mas ela está em óbvio desespero.
Eu hesito, mas meu irmão não. Don ergue voo e se lança contra o casal numa velocidade inacreditável que eu não o via usar desde que partimos daqui. O garoto ergue o rosto a tempo de vê-lo chegar, agarra a garota e salta de volta para a água no último momento, esquivando-se do ataque de Don. Eu cubro a boca, impressionada. Não é qualquer um que pode evitar ser atingido por um Guardião.
Don pousa na beira do rio e começa a adentrar as águas.
- Don! - eu chamo por ele e começo a caminhar até lá, não porque acho que ele precisa de ajuda, mas porque quero ver aqueles dois de perto.
O garoto emerge com a garota agarrada a seu pescoço, olhando para Don com um ódio muito familiar. Ele é um Sombrio. Ela é o ser humano. Don evoca as águas para tentar atacar os dois novamente, mas o garoto bloqueia seu ataque estendendo a mão e fazendo com que rochas submersas se ergam como um paredão entre nós e eles. É quase estupendo. Ele é um Sombrio extremamente forte.
Decido que é minha vez de entrar em ação. Já que os ataques físicos de meu irmão não surtem o efeito esperado, vou atacar a energia dos dois. Junto minhas duas mãos espalmadas diante de meu corpo em direção ao paredão e lanço minha Onda de Tortura - chamada assim porque é uma força invisível que afeta a energia de qualquer ser vivo, enfraquecendo-o até definhar e se transformar em pó. Parte de mim se sente um pouco mal por atingir a humana de maneira tão cruel, mas eu resolvo ignorar esse sentimento. Ela não devia estar aqui e não poderá retornar à Terra, de qualquer forma. É melhor que padeça rapidamente.